Uma abordagem

Uma abordagem

da política criminal

em matéria de droga

Carlos Rodrigues Almeida

Juiz de Direito na 4.ª Vara Criminal, em Lisboa

 

A droga constitui neste final de milénio, como nos dão conta os vários estudos de opinião ultimamente divulgados, um dos principais problemas que aflige a sociedade portuguesa. À droga se associa a degradação pessoal dos consumidores, as mortes por overdose, a transmissão de graves doenças infecto-contagiosas, a criminalidade e outros comportamentos desviantes, a impossibilidade de trabalhar, a exclusão social e os encargos para os sistemas de saúde e segurança social.

Por ela se responsabilizam os ciganos, os negros, os indianos e, em geral, os habitantes dos bairros degradados.

A ela estão associados o desespero das famílias dos consumidores, que se sentem impotentes para alterar o rumo dos acontecimentos, o medo generalizado dos restantes cidadãos, que temem que semelhante tragédia atinja os seus, os sentimentos de insegurança e intranquilidade que se instalaram na sociedade, que responsabiliza a droga pelo aumento da criminalidade, tudo isto motivando os clamores da opinião pública no sentido da erradicação do fenómeno da droga e punição de traficantes e consumidores.

A esta onda não podem ficar alheios os operadores do sistema político, que, frequentemente, clamam ou prometem o desejado endurecimento do sistema penal e processual penal, como o não ficam os tribunais que, pretendendo pacificar a comunidade e reforçar a sua confiança nas instituições, vão paulatinamente agravando as penas concretas aplicadas aos traficantes, traficantes-consumidores e consumidores agentes de crimes conexos.

Simultaneamente, o consumo progride e diversifica-se e o tráfico e os traficantes proliferam.

É oportuno parar para pensar.

É preciso avaliar a política até agora adoptada e, em função dos resultados dessa avaliação, decidir o caminho a seguir.

Importa, porém, antes de mais, assegurarmo-nos da legitimidade da intervenção do Estado nesta matéria e, comprovada esta, traçarmos os seus limites e objectivos.

A ilegitimidade é sustentada por todos aqueles que, adoptando uma perspectiva estritamente individual da questão, a consideram como envolvendo apenas uma opção do foro privado de cada um na qual ninguém, a não ser o próprio, deveria interferir ou por todos aqueles que, também numa perspectiva individual, consideram que o homem tem o direito a procurar a felicidade por todos os meios, incluindo pelos meios artificiais de que a droga é um caso paradigmático.

Não é essa, porém, a concepção que adoptamos.

O homem, não obstante o respeito que deve merecer a individualidade, a autonomia e a privacidade de cada um, é um ser social e só em sociedade pode subsistir e desenvolver-se. Se para o seu desenvolvimento há que garantir o maior espaço possível de autonomia individual, existem também limites e condicionantes da sua acção impostos pela sua própria inserção na sociedade. Só a partir de um individualismo exasperado é que se pode negar a legitimidade de a sociedade impedir a sua própria desagregação.

E é esse, de facto, o perigo que certas drogas envolvem. O seu consumo, com as características que ele tem hoje, não é um fenómeno individual e limitado, como foi outrora, mas é um comportamento disseminado de características epidémicas. Neste contexto, a lesão dos bens vida, saúde individual e liberdade, aliada à própria segurança das populações, ganha uma ressonância e dimensão sociais que é legítimo e imperioso que o Estado tutele.

Não se pode também esquecer que o Estado tem como obrigação constitucional a protecção de crianças e jovens com vista a assegurar o seu desenvolvimento integral, criando condições para a sua integração plena na comunidade.

Se, como se disse, a intervenção do Estado é legítima, tal não significa que todos os interesses e motivações sociais ligados ao fenómeno da droga sejam igualmente legítimos. Basta, nesta sede, e a título de exemplo, referir que o próprio conceito de droga é sócio-culturalmente definido, não sendo para a sua delimitação utilizados exclusivamente critérios médico-farmacológicos. Embora não se ignorem os efeitos psico-activos das substâncias, a dependência que podem gerar e a tolerância associada ao seu consumo, factores históricos, culturais, económicos, sociais, religiosos e morais contribuem também para a configuração do conceito. Só estes últimos, de facto, podem fundamentar a distinção entre as chamadas drogas lícitas e ilícitas, só eles justificam que o álcool e o tabaco beneficiem de um tratamento diferente, no fundo, não sejam considerados social e legalmente droga.

Queremos com isto significar que entendemos que, para além da protecção da vida, da integridade física e da liberdade dos consumidores, da segurança das populações e do desenvolvimento integral da infância e juventude, torna-se ilegítima a intervenção. Não se pode com ela pretender impor, nomeadamente, determinadas concepções morais ou religiosas.

Assim, os fundamentos que asseguram a legitimidade do Estado contribuem também para a definição dos limites dessa mesma intervenção. Como se disse, ela só é legítima se e na medida em que for imposta pela salvaguarda daqueles interesses.

Ao estabelecer os objectivos dessa intervenção é necessário, em primeiro lugar, ter em conta que o consumo de droga é um comportamento que tem acompanhado a humanidade ao longo dos tempos e, mesmo com as características que hoje apresenta, ele tenderá a perdurar.

Não é pois adequado traçar como objectivo da intervenção a erradicação do consumo e tráfico, parecendo mais realista visar conter o consumo dentro de níveis socialmente toleráveis e reduzir os seus efeitos sanitários e sociais.

Tais objectivos não podem, porém, ser alcançados a qualquer preço. Não se pode, para os atingir, eliminar ou sequer comprimir os direitos fundamentais conflituantes de forma a aniquilar o seu conteúdo essencial sob pena de, para além da ilegitimidade constitucional que sempre existiria, se pôr em causa a própria natureza do Estado de direito em que vivemos.

Também não se pode, com a própria intervenção, gerar consequências mais gravosas do que aquelas que tem o fenómeno que se pretende debelar. Há que procurar reduzir os feitos colaterais da própria intervenção.

Assegurada a legitimidade, definidos os limites e estabelecidos os objectivos, importa agora verificar se a actual política em matéria de droga os pode alcançar.

Se analisarmos a produção legislativa relativa ao direito da droga, que vem desde 1923/1924, vemos que ela sempre esteve ligada à assunção de compromissos internacionais pelo Estado Português e que ela sempre se caracterizou pelo privilegiamento da intervenção penal.

Quer tenha perspectivado o fenómeno, como aconteceu até ao fim da década de 60, na sua dimensão de ilícito fiscal, quer, posteriormente, tenha erigido a tutela da saúde pública como fim predominante, sempre, e com o correr do tempo, cada vez de uma forma mais completa, se puniu todo o ciclo da droga, do cultivo e fabricação à detenção e consumo, crescendo sempre o número de substâncias sujeitas a controlo e as penas previstas para a generalidade dos crimes.

Hoje o tráfico, do haxixe à heroína, é, em geral, punido com prisão de 4 a 12 anos, sendo o crime qualificado, depois das alterações de 1996, punido com prisão cujo limite máximo vai até 16 anos, podendo a pena de quem promover, fundar, financiar, chefiar ou dirigir associação criminosa atingir os 25 anos de prisão. Para além disso, pune-se o branqueamento e a detenção e tráfico de percursores com penas que podem ir até aos 12 e 10 anos respectivamente.

Investiram-se meios significativos na investigação criminal, reforçou--se a cooperação internacional, alargaram-se os quadros da polícias e das magistraturas, mas não se conseguiu conter o consumo ou refrear o tráfico.

Mas, mais do que isto, esta política provocou importantes efeitos criminógenos, propiciando condições para a criação de poderosas organizações criminosas, com a corrupção de pessoas e instituições e acriminalidade económico-financeira que a elas está ligada, e um aumento da criminalidade, essencialmente patrimonial, associada ao consumo.

Agravou a lesão da saúde dos consumidores provocada pela adulteração das substâncias a que o tráfico e consumo ilegais conduz, provocou mortes por overdose e permitiu a fácil transmissão de doenças infecto-contagiosas graves como a sida e a hepatite B. Assoberbou as polícias e os tribunais em grande parte com aquela criminalidade, com certo menosprezo pela investigação e o julgamento da grande criminalidade económico-financeira e da restante criminalidade praticada pelos estratos sócio-económicos mais favorecidos. Sobrelotou o sistema prisional, com a degradação humana a que essa sobrelotação conduz e o consequente fracasso dos propósitos ressocializadores propalados. Aprofundou a marginalidade de consumidores e de outros estratos da população e criou condições para o florescimento de contraculturas, com rejeição por parte dos que as integram de todo o poder público. Agravou a segregação das minorias, em especial das minorias étnicas, fortalecendo sentimentos xenófobos. Conduziu a uma punição socialmente selectiva e ineficaz dada a alta fungibilidade do pequeno tráfico.

Este modelo fracassou, não obstante o esforço feito pelas instâncias formais de controlo.

Não conteve o consumo e provocou efeitos colaterais indesejáveis.

Em face deste fracasso existe a tendência natural de, não colocando em causa o modelo adoptado, o reforçar pondo ao seu dispor mais meios humanos e materiais, alargando ainda mais o âmbito da proibição, aumentando, de novo, as penas e recorrendo, se necessário, à prisão dos consumidores, procurando assegurar a eficácia e funcionalidade do sistema à custa da compressão dos direitos, liberdades e garantias de arguidos e de terceiros afectados pelo processo.

Trata-se, porém, de um caminho perigoso.

Para além do esforço financeiro que envolve, que não é de subestimar, esta via passa necessariamente pelo reforço dos poderes policiais, com a notória dificuldade de controlo que o seu exercício já hoje apresenta, pela cada vez mais acentuada limitação dos direitos à reserva da vida privada, à imagem e à palavra, dada a necessidade cada vezmais frequente de recurso a escutas telefónicas, a intercepção de conversas entre presentes, a utilização de meios audiovisuais para registo de som e imagem e à violação de segredos, nomeadamente bancário e de correspondência, e pela diminuição das garantias processuais, de que é um prenúncio a tão falada inversão do ónus da prova da origem da fortuna dos suspeitos.

Tende-se, por vezes, a subvalorizar a violação destes direitos a pretexto de que se trata de direitos de pessoas que cometeram crimes. Mas nem isso é verdade. Vítima de abuso policial pode ser qualquer pessoa, uma escuta telefónica ou uma intercepção de comunicação entre presentes atinge, para além do suspeito, todos os que com ele comuniquem, enfim, as garantias processuais existem precisamente porque nem todos os processados são criminosos.

Subvaloriza-se também a gravidade dessas violações a pretexto de que elas apenas se aplicariam limitadamente, a título de excepção, num âmbito restrito e durante um curto período.

Porém, um regime de excepção, uma vez criado, tende sempre a alargar-se. Primeiro a outras formas de criminalidade igualmente graves e, depois, paulatinamente, a todo o sistema transformando-se na regra.

Não me parece, por tais motivos, que deva ser este o caminho a trilhar.

Não garante qualquer sucesso e acarreta custos muito elevados.

Não se apresentam também como viáveis, em face das actuais condições, os modelos opostos, ou seja, o da liberalização e o da legalização totais, mesmo que o sejam nos termos da teoria do comércio passivo.

Para além da incerteza quanto aos efeitos imediatos sobre o consumo, a sua implementação, para não implicar custos socialmente intoleráveis, imporia que a alteração fosse feita num grande espaço geo-político, que não poderia ser apenas constituído por um único país com a dimensão de Portugal.

Mas, acima de tudo, uma mudança tão radical numa área sensível como esta teria que ser sempre sentida como necessária e aceite pela comunidade. Teria que ter a compreensão e o apoio de amplas camadas sociais. Não se esqueça que as características e as consequênciasdo consumo da droga que a população em geral conhece e com que diariamente se confronta, sobre as quais se formam as suas representações, são as características e as consequências do consumo da droga, sobretudo da heroína, nas circunstâncias em que ele ocorre entre nós, ou seja, um consumo clandestino ou semiclandestino num sistema proibicionista em que todo o ciclo daquilo que se definiu como droga é criminalizado.

Na opinião pública, e não só, é frequente associarem-se os malefícios da droga aos malefícios que o seu consumo clandestino gera, como se uns e outros fossem directamente fruto da substância.

Se o modelo de «tolerância zero» faliu e o de «permissividade ilimitada» é, pelo menos no actual contexto, dificilmente realizável, há que construir uma nova política assente na colaboração interdisciplinar de todos os que se debruçam sobre este fenómeno, nos resultados da investigação social que vem sendo desenvolvida e na experiência dos operadores que, no terreno, contactam com o problema, sem desprezar os contributos resultantes de uma ampla discussão pública.

Não tendo a veleidade de pretender substituir o saber e o trabalho interdisciplinar e suplantar os consensos que o debate vier a propiciar, parece-me, no entanto, que não me posso furtar a dar o contributo que mais de uma década de reflexão e concreta aplicação do direito penal da droga podem propiciar.

Assim, parece-me que uma política racional e eficaz, não prescindindo da intervenção penal, não lhe pode pedir que desempenhe uma função para a qual o direito penal não é adequado.

Uma política em matéria de droga, como, em geral, qualquer política criminal, tem de actuar sobre os factores que contribuem para o desenvolvimento e aprofundamento de comportamentos desviantes. Por isso, uma política em matéria de droga tem de ser, antes de mais, uma política social de longo prazo, de carácter preventivo, com entrosamento das políticas de educação, de formação profissional, de emprego, de habitação, de urbanismo, de rendimentos, de família, de saúde, de integração social e cultural das minorias étnicas, capaz de combater a marginalidade e a exclusão, terrenos férteis à delinquência e à toxicodependência.

Só uma tal política pode, a prazo, inverter o actual panorama em matéria de droga.

Há, porém, que actuar no imediato.

Se é a vida, a saúde e a liberdade do consumidor, a segurança das pessoas em geral e o integral desenvolvimento da infância e juventude que constituem os bens jurídicos e os bens jurídico-penais dignos de tutela, a intervenção do Estado deve procurar salvaguardar tais interesses recorrendo ao direito penal apenas se e na medida em que existir carência de tutela penal, ou seja, na medida em que a criminalização dos comportamentos se torne necessária e seja adequada ao fim em vista, não provocando efeitos secundários intoleráveis.

Nesse sentido há, em primeiro lugar, que analisar a susceptibilidade de lesão daqueles interesses que cada uma das substâncias actualmente incluídas no conceito de droga representa a fim de, em função dessa avaliação, delinear a política concreta para cada uma, que pode e deve ser diversa consoante o diferente grau de danosidade da substância.

Penso que algumas das substâncias actualmente sujeitas a controlo, de que a cannabis é um exemplo paradigmático, não representam um perigo para aqueles bens jurídicos de molde a justificar a intervenção do direito penal, pelo menos quando o seu consumo seja feito por maiores e em privado.

Não obstante saber que ainda subsiste alguma polémica nos meios científicos sobre os efeitos do consumo dos derivados da cannabis, parece-me relativamente segura a afirmação que ele não é susceptível de pôr em perigo a vida e, se comparado com o consumo de álcool e de tabaco, as consequências para a saúde dos consumidores e para a segurança das populações não são mais gravosas do que as destas substâncias, sendo a dependência que gera, a existir, apenas psíquica e em grau moderado.

Também não justifica a intervenção penal a ideia de que o consumo dos derivados da cannabis constituiria um primeiro passo numa escalada da droga. Se é verdade que muitos dos consumidores de heroína consumiram em momentos anteriores derivados da cannabis, também é verdade que consumiram e consomem álcool e tabaco, não sendo por isso que estas substâncias são ilegalizadas. É, por outro lado, seguroque a grande maioria dos consumidores de derivados de cannabis nunca evoluíram para o consumo de heroína. Se nesta sede os derivados da cannabis apresentam especificidade, ela apenas deriva da ilicitude que está associada ao seu consumo.

Por tudo isto parece preferível legalizar e controlar o cultivo, fabrico, transporte, comercialização e consumo de tais produtos, garantindo a sua qualidade e, no caso dos canabinóides, o seu teor de THC, promovendo, em simultâneo, campanhas de sensibilização das populações, e em particular da juventude, no sentido de defenderem a sua saúde e recusarem o consumo de qualquer substância psicoactiva, mas deixando à livre opção de cada um a decisão final. De resto é sempre preferível um consumo legal e em privado, socialmente integrado, que evite o abuso, a um consumo clandestino ou semiclandestino, gerador de segregação e susceptível de penalização.

Quanto a estas substâncias a intervenção do direito penal deveria cingir-se à punição das transacções efectuadas fora do circuito legal estabelecido, nomeadamente da venda a menores. Proibidos ficariam também todos os actos de promoção do consumo, em especial a publicidade.

Em segundo lugar haveria que descriminalizar o consumo de todas as drogas.

A punição é segregadora, contribuindo para a marginalização e exclusão social do consumidor, dificultando a sua protecção social e o encaminhamento para um processo terapêutico. Parece-me, pelo contrário, que deve procurar fortalecer-se os elos de ligação do toxicodependente à comunidade, aumentar os pontos de contacto, propiciar o apoio.

Aliás, uma punição quase simbólica como a hoje consagrada entre nós é apenas isso, um símbolo e, como tal, só por si, ilegítima como finalidade penal.

A intervenção do direito penal tem que visar a protecção de bens jurídicos, tem que ser instrumental da sua tutela, não se pode limitar a assinalar valores. De que serve uma curtíssima pena de prisão, que, em princípio, não deve ser aplicada, ou uma pena de multa até 30 dias, que a maioria dos toxicodependentes não pode pagar? A criminalizaçãode comportamentos que não conduz a uma efectividade da proibição apenas contribui para o descrédito do próprio direito penal que o cidadão vê constantemente violar. É antipedagógica, não reforça a confiança na ordem jurídica, não tem qualquer efeito pacificador. Mas, mesmo que se pretendesse tornar efectiva a punição de uma percentagem significativa dos actos de consumo essa pretensão era injustificada, ineficaz, injusta e socialmente inaceitável: injustificada porque implica que se canalizem importantes recursos para a punição de condutas que só mediatamente põem em perigo bens alheios; ineficaz porque não dissuade consumidores e candidatos a consumidores; injusta porque o consumo é, em si, mais um sintoma de uma situação problemática do que um comportamento lesivo de outrem; inaceitável, porque contraria os valores de humanidade e solidariedade que devem estar presentes em toda a política social e estimula a intolerância e a discriminação.

Os efeitos criminógenos suplantariam mesmo qualquer efeito positivo que uma tal medida conseguisse alcançar.

E a punição não do acto de consumo mas dos comportamentos do consumidor que põem efectivamente em perigo bens jurídicos de terceiros ou da comunidade também me parece desnecessária dada a natural pu-nição dos consumidores pelos crimes de dano conexos com o consumo.

Quanto muito poderia sancionar-se, mas apenas como contra-ordenação, o consumo público e ostensivo de tais substâncias na medida em que se considere este comportamento como um estímulo à difusão do uso de drogas.

Como é evidente, a não criminalização do acto de consumo não significa que o consumidor não seja punido pelos crimes conexos cometidos, quer se trate de criminalidade induzida, quer de criminalidade funcional. No que respeita à criminalidade conexa deve-se continuar a incentivar o tratamento, subordinando a suspensão da execução da pena de prisão, com ou sem regime de prova, à sua realização voluntária. Porém, para que os insucessos não sejam geradores de profunda frustração e não motivem o abandono desse caminho, há que ter a noção clara de que o sucesso da terapêutica se afigura muito maior no caso de o agente do crime ser um toxicodependente-delinquente do que no caso de ser um delinquente-toxicodependente. Quantoa estes últimos os factores da delinquência ultrapassam em muitos os que estão na génese do consumo e a intervenção não pode ser apenas médico-psicológica.

Há, de resto, que continuar a aumentar a oferta terapêutica, quer em regime ambulatório, quer em regime de internamento, não se podendo esperar que os débeis e ambivalentes propósitos de recuperação de um heroinómano persistam ao longo dos meses que dura, em muitas instituições, o tempo de espera por uma primeira consulta.

Temos, porém, que reconhecer que nem sempre a conjuntura é propícia para se despertar a motivação necessária para o tratamento e nem sempre são favoráveis as perspectivas abertas. Dada a situação de dependência física e forte dependência psíquica, todos temos consciência de que, inevitavelmente, em muitos casos, o toxicodependente prosseguirá o consumo. Assim, parece claramente preferível que o Estado forneça gratuitamente droga de qualidade garantida, em dosagem conhecida, para o consumo desse toxicodependente do que, fechando os olhos, espere que ele se abasteça e a consuma num bairro degradado, quantas vezes lesando, para tanto, terceiros, que possa morrer de overdose ou que seja infectado ao partilhar seringas.

Não é nada de novo em termos internacionais e, entre nós, é apenas o desenvolvimento da razão que levou à distribuição gratuita de seringas.

A distribuição gratuita de droga, nomeadamente de heroína, a comprovados toxicodependentes, para além de diminuir o risco de lesão dos bens jurídicos protegidos, pode contribuir para a diminuição da criminalidade e, em especial, dos crimes patrimoniais associados ao consumo.

Embora se discuta a relação entre a droga e o crime, parece-me aceitável a conclusão, confirmada em diversos estudos empíricos, que o consumo de droga é um factor relevante da delinquência em relação a determinados universos populacionais, a delinquência é um factor influente no consumo de drogas de outros universos populacionais e, relativamente a outros, existem factores comuns que estão associados ao consumo de drogas e à delinquência.

Seja como for, parece-me igualmente irrefutável a constatação empírica, que a minha experiência também corrobora, que a droganaqueles casos (admito que não seja a maioria) em que não é o factor determinante da prática dos crimes funcionais é, sem dúvida, mais um factor relevante para o aumento de número de crimes praticados por cada agente. Assim, a distribuição gratuita poderia fazer regredir este tipo de criminalidade.

Mas poderia também fazer diminuir o tráfico de droga, não só por restringir a procura, mas também por diminuir o envolvimento dos toxicodependentes no tráfico. Como se sabe, os toxicodependentes são aproveitados pelos traficantes como mão-de-obra barata para a realização das tarefas mais visíveis e, por isso, mais sujeitas à repressão.

Tal medida permitiria, assim, reduzir o nível global de criminalidade o que, além de aumentar a segurança e o sentimento de segurança das populações, faria baixar a pressão que ela exerce sobre as instâncias formais de controlo, permitindo uma reorientação dos meios disponíveis.

Para além disso, a distribuição de droga subtrairia uma fonte fácil e segura de lucro dos traficantes, retirando poder económico à criminalidade organizada neste sector.

Reduzir-se-iam, assim, os efeitos perversos da criminalização, criminalização essa que, no essencial, não poderia deixar de ser mantida pelo menos enquanto perdurassem as actuais condicionantes.

No combate ao tráfico ilícito se empenhariam os meios disponíveis, utilizando para tal os meios legítimos do direito penal, com as garantias do processo penal próprias de um Estado de Direito.

Em traços gerais é esta a via que, em meu entender, deve ser seguida.

Certamente que lhe poderão ser assacadas imperfeições, poderá temer--se a margem de risco que uma distribuição controlada de droga e nomeadamente de heroína envolve, podendo recear-se um aumento do consumo das substâncias legalizadas, pelo menos numa fase inicial.

Parece-me, contudo, que tais perigos são bastante menores do que aqueles que a actual política acarreta.

Como se disse, não podemos esperar que o direito penal erradique um comportamento que a sociedade indirectamente estimula ao apontar objectivos inalcançáveis para a maioria da população e ao gerar o subsequente sentimento de frustração.