A Escola: uma ponte entre o Estado e a Sociedade Civil

Roberto Carneiro
Universidade Católica Portuguesa
 
 
 

    Tomarei como ponto de partida, os desafios que o Senhor Presidente lançou no início da sessão. Inspirar-me-ei, nomeadamente, naquele em que falou da necessidade de uma forte descentralização, noção com que estou de acordo, apenas acrescentando: uma descentralização com regulação.

    Ninguém estará interessado numa descentralização anárquica.
O Estado não se pode recusar ao exercício da função de regulação necessária e, só por essa via, se responderá adequadamente à necessidade de trazer a comunidade para a Escola.

    Nesta transição difícil de milénio e de século recoloca-se, com premência, o problema central do diálogo entre o Estado e a Sociedade Civil. Ao reflectir sobre o futuro da educação surge-me, quase que intuitivamente, uma proposta de terceira via: a educação, a escola, seria a ponte do diálogo privilegiado entre o Estado e a Sociedade Civil.

    Isto é, numa visão moderna, ou até pós-moderna, a escola não é Estado, não se pode reduzir a um terminal burocrático tentacular do aparelho público situado em cada localidade, mas também não pode ser uma instância totalmente privatizada e sujeita ao livre jogo da oferta e procura de mercado.

    É nesta relação difícil e tensa entre Estado e Sociedade Civil que se coloca uma nova maneira de ver a Educação, tributária de uma concepção eminentemente comunitária.
 

Os professores como empreendedores sociais

    A formulação de uma tese de charneira para a função educativa tem profundas consequências ao nível da actividade dos professores.

    Na verdade, se a sua inserção tem lugar na interface entre Estado e Sociedade Civil passa a exigir-se aos professores que sejam também empreendedores sociais, isto é, criadores de riqueza social, formadores de capital social.

    Se aos empreendedores económicos se atribui a criação de riqueza económica, compete aos educadores a indeclinável missão de criar riqueza social.

    Todos os interessados na educação - os professores, os agentes educativos, os pais, as comunidades - são convocados à capitalização social crítica que proporciona sentido de coesão, base de confiança mútua, estabilidade comunitária, amadurecimento cultural, em suma, tudo aquilo que hoje se considera essencial ao desenvolvimento das populações e dos povos.
 
 
 

A desmonopolização da educação

    Nesta linha de raciocínio, diria que não vejo solução para o futuro da educação sujeitando-a continuadamente a fórmulas monopolistas de prestação.

    É preciso desmonopolizar a educação, seja em relação ao Estado, seja em relação a quem quer que queira ter um sentido proprietário exclusivo sobre uma tão delicada e vital função social.
 
    Dessa desmonopolização resultará naturalmente, como corolário imediato, a desmassificação do sistema educativo.

    Aquilo com que todos nós sonhamos no sentido de valorização da diversidade, de acolhimento das diferenças, exige como prévia condição essa desmonopolização e a urgente desmassificação da Educação.
 
 
 

O Ministério das Pessoas e os múltiplos talentos
 

    O Ministério da Educação, nesta nova forma de ver o serviço educativo, é essencialmente um Ministério das pessoas. Efectivamente, se a Educação é muito mais do que mera instrução, então ela deve ajudar as pessoas a realizarem a sua fundamental viagem interior, sem a qual dificilmente encontrarão um sentido para a vida, uma visão da existência, um inteligibilidade     para o mundo.

    Falar de pessoas, de pessoas concretas e não abstractas, e não apenas de currículos teóricos ou de políticas globais, impõe uma pergunta capital: Onde estão as pessoas na educação? Onde estão os seus dramas? E as suas tragédias? E os seus problemas? E as suas questões concretas? As suas legítimas aspirações? Os seus projectos de vida? As suas derrotas e vitórias íntimas?

    E ao falar de pessoas, únicas e irrepetíveis, vem-nos à mente aquelas que não são apenas portadoras de inteligência cognitiva, mas aquelas - todas - que são dotadas de múltiplas inteligências e múltiplos talentos, os quais têm sido sistematicamente coarctados, reprimidos e minimizados no nosso sistema educativo.

    A inteligência comunicacional, as inteligências do coração - a inteligência afectiva e a inteligência emocional - a inteligência estética, a inteligência moral, ou a capacidade de discernimento, reclamam novos equilíbrios na educação e diferentes gestões do que é verdadeiramente importante numa escola.
 
 

O culto da diversidade

    Este mistério das pessoas diversas, este comunitarismo radical vivido na fronteira de uma relação difícil entre Estado e Sociedade Civil, esta desmassificação de um ensino tragicamente prisioneiro dos gigantescos aparelhos burocráticos, leva-nos à aceitação, ou melhor, ao cultivo da liberdade e da diversidade no sistema educativo.

    A Educação tem obrigatoriamente de aceitar o diverso, como uma riqueza essencial do seu múnus, ou então está a fazer tudo menos libertar, emancipar de servidões, cortar com preconceitos.

    Por isso, o respeito pela diversidade é central à questão educativa e nenhum sistema social, digno do seu nome e da sua humana condição, pode fugir a uma ordem pluralista de concepções e de modelos.
 
 

A dimensão subjectiva do conhecimento

    Avançando um passo mais, importa reconhecer que desse princípio da diversidade decorrem consequências vastas.

    Uma das mais radicais, consiste na aceitação pura e simples de que o conhecimento - melhor, o saber - ao invés das convicções acumuladas durante mais de duzentos anos de positivismo racionalista, não reveste carácter predominantemente objectivo. Isto é, dito de outro modo, o conhecimento total não é necessariamente o conhecimento codificado; bem pelo contrário, ele é continuamente produzido, transmitido e partilhado essencialmente numa dimensão subjectiva, ou seja numa dimensão incontornavelmente humana e através de processos intensamente sociais.

    Daqui resultam consequências vastíssimas para todo o processo educativo: na construção curricular, na formação de professores, na gestão dos estabelecimentos, nos processos ensino/aprendizagem. É que, se o conhecimento tem uma fortíssima dimensão subjectiva - que incorpora a natureza diversa de cada um - então tem que se aceitar na moderna teoria pedagógica a tese da posicionalidade.

    Neste entendimento, a posição de cada um - a base étnica, o génder, o escalão etário, a origem rural ou urbana, a história de vida - é essencial para o processo de construção do seu próprio conhecimento, para a cognição, a percepção e a transmissão do conhecimento assim cerzido.
 
 

O novo conhecimento

    Esta é uma consequência dramática de uma educação para a diversidade: a emergência do novo conhecimento (o new knowledge), aquele que valoriza as pessoas construtoras do conhecimento, as suas memórias, e as suas histórias culturais.

    O conhecimento mais importante não é algo que esteja necessariamente num livro, num currículo. A função essencial de um professor não é a de administrar conhecimento objectivo e «enfiá-lo dentro da cabeça» de uma criança ou de um jovem.

    A boa escola é aquela que capitaliza plenamente das memórias diversas que nela confluem e que constrói a sua gnose com base nas hermenêuticas múltiplas que nela podem encontrar espaço e tempo de expressão livre.
 
 

Aprender diferentemente

    Assim sendo, teríamos necessariamente de aceitar, como passo lógico subsequente, a superação da hegemonia dos modos escolares tradicionais de aprender.

    Existem variadíssimas fórmulas hoje que permitem aprender diferentemente do passado. As novas tecnologias, a Internet, o multimédia, favorecem trajectórias pessoais, itinerários individuais, caminhos variados para aceder ao saber, para produzir o seu próprio conhecimento e para o partilhar. Mas o mais importante não são as tecnologias em si mesmas, mas os novos caminhos que abrem no acesso a fontes diferenciadas de conhecer e de saber.

    E quando o Senhor Presidente diz «a comunidade tem de vir para a escola» eu diria também «a escola tem de ir à comunidade»: aprender com ela, com a autarquia, com a instituição cultural, com a fundação, com a empresa, aprender essas diferentes maneiras de criar saber, de criar conhecimento e de os partilhar.

    Este é, pois, o tempo das parcerias, das alianças novas, das responsabilidades partilhadas.
 
 

Uma nova equação do trabalho, uma geração de criadores

    Para terminar, penso que é incontornável no futuro, como já o é no presente, um grande drama, que é o da relação entre a educação e o lugar do trabalho humano na sociedade vindoura.

    Estamos no termo de um ciclo, de um ciclo dramático de 300 anos em que os modos de produção económica - cada vez mais tecnológicos - se fizeram sistematicamente contra a quantidade de trabalho humano.

    Com efeito, a evolução das economias tem vindo a excluir a quota-parte de participação de trabalho humano na formação do produto final.

    Todavia, esta tendência reflecte uma tipologia do passado, feita de trabalho humano rotineiro, pesado, pouco criativo.

    Surge, em contrapartida, uma grande oportunidade de novos modos de produção, em sentido lato, de trabalho humano, agora de índole acentuadamente criativa. Não temos de existir, como dizia o nosso distinto e saudoso Mestre Agostinho da Silva, necessariamente para trabalhar; ao contrário, nascemos para criar, e a escola tem de ajudar a formar criadores. Criadores que estejam aptos a participar na mais fantástica gesta do Universo que é a da sua permanente criatividade.

    O trabalho humano de criação é um percurso que exige a pedagogia do esforço e da exigência, não a pedagogia da facilidade, para ir ao encontro, aliás, de uma tese que o Senhor Presidente recentemente comunicou aos Portugueses.
 
 

Uma cidadania de deveres

    O aperfeiçoamento da democracia - e dos modos colectivos de viver - pressupõe a necessidade de um esforço colectivo de reivindicação democrática dos direitos, sem margem para dúvida. Mas importa também reconhecer o desafio maior de implantar uma cidadania de participação, ou seja uma cidadania dos deveres. De nada vale insitir apenas no «eu quero», se não se é capaz de afirmar «eu participo, logo existo» ou «eu tenho a obrigação de participar no esforço de criação comunitária».

    Para isso, seria indispensável instituir como obrigação o dever de aprender ao longo de toda a vida, a par do tradicional direito à educação.

    São estratégias inclusivas que, na minha opinião, passam por uma revisitação das finalidades essenciais da educação.

    Por muitas «voltas que dê ao miolo» eu chego sempre ao mesmo: acho que a missão essencial da Educação é dizer às pessoas que não estão sozinhas no mundo, ensiná-las que não vivem ensimesmadas sobre si próprias no planeta, que estão com outras, e com elas partilham um destino comum.

    Se isto puder ser apropriado totalmente na educação, a nova ideia de parcerias, de sociedade civil, de ponte entre o Estado e as comunidades, resultará quase por acréscimo.

    Teremos, porventura, desvendado uma pequena janela a partir da qual será legítimo acalentar novos horizontes de educação para o futuro.