O Valor libertador do Conhecimento e das Práticas 

José Mariano Gago
Ministro da Ciência e da Tecnologia
 
 
 

    Julgo necessário combater o conservadorismo pessimista, recorrente na Educação, que sustenta que a Educação está sempre pior do que estava.

    Um amigo meu, que estudou o fenómeno na história alemã, diz que há registo escrito de que a situação está sempre pior do que estava, pelo menos nos últimos duzentos e cinquenta anos. Outros, que estudaram isso desde os gregos, referem registos de há, pelo menos, dois mil anos. Mas, tendo tido alguma formação matemática, parece-me difícil admitir que cole à realidade este princípio; ou, então, os critérios de aferição mudaram continuamente.

    Este conservadorismo não é inocente; porque apela a uma acção e essa acção é sempre, e em todas as épocas, a mesma: é o back to basics - ler, escrever e contar.

    Reduzir a Educação e a Escola ao back to basics - como resultado de uma angústia projectada que se quer partilhar com a sociedade, de que «isto está cada vez pior» -, é extremamente preocupante, do ponto de vista político e social, porque vai contra a grande herança socialista da Escola como elemento de libertação social e de combate às divisões sociais e aos preconceitos mentais em nome dos quais alguns cidadãos são oprimidos por outros.

    Deve, igualmente, ser combatido o idealismo pessimista que afirma que nada é possível porque, sendo a sociedade a desgraça que é, e a escola o reflexo da sociedade, é uma ilusão ter a ideia de que vale a pena combater na Escola. Eu continuo pacientemente na ideia antiga que conduziu, em parte, à escolaridade obrigatória, à democratização do ensino e à democracia política - imperfeita, imperfeitíssima - que é a do valor libertador do conhecimento e das práticas.

    Proponho-me abordar agora uma parte desta questão: a do valor político do trabalho educativo que não recuse, na prática, a relação com a matéria.

    A sociedade portuguesa é tradicionalmente arredia à proximidade da matéria, do concreto. Temos textos eminentes sobre esse problema, o de Anastácio da Cunha ou os de Verney quando, no séc. xviii, reflectem sobre a diferença entre o ensino em Portugal e nos outros países.

    Portugal é um país onde as classes médias, fraquíssimas, tendo permanentemente o medo de caírem no trabalho manual, apelaram sempre para uma visão da educação situada na perspectiva de fugir a tudo o que fosse contacto com a matéria. Privilegiaram sempre as linguagens formais - mais compatíveis com um Estado burocrático e uma vida económica tradicionalmente virada para o comércio, para a intermediação e pouco para a produção industrial ou agrícola.

    A Escola tem a ver com o futuro. Tem politicamente a ver com o futuro porque se ensaia na Escola, se prefigura na Escola, ou se recusa aí, a sociedade do futuro, isto é, a sociedade que está realmente a construir-se para o futuro, ou porque nos é imposta, ou porque vem da tradição ou ainda porque é sonhada como ideal a atingir.

    A Escola é um lugar real, mas também um lugar projectivo e de conflitualidade; e será sempre um lugar de conflitualidade por essa mesma razão que a liga ao futuro da sociedade. Uma conflitualidade de princípios, de ideais e, portanto, de arranjos e de combinações.

    A educação não é toda igual. A instituição escolar pode contribuir para sujeitar o indivíduo ao arbítrio, à violência, e, portanto, formá--lo para aceitar uma civilização assente em grandes exclusões sociais, e numa grande imprevisibilidade. Mas também pode formar para a liberdade e para o direito, mostrar que vale a pena proceder racionalmente e de uma forma democrática.

    Julgo que o que há de essencial em Portugal, neste momento, aquilo que está por decidir no nosso país, é o lugar do saber e do saber-fazer na sociedade e, portanto nas Escolas. Dessa decisão depende o lugar das práticas na Escola. No velho combate histórico que as práticas do saber têm travado com a retórica do saber aparente, isto é, com os nomes, as classificações, as repetições, as memorizações, há que decidir.

    Acho indispensável uma viragem. Vamos estar uns contra e outros a favor dessa viragem. Mas gostaria que este debate se travasse de uma forma tão clara quanto possível, pouco embrulhada e redonda, ao contrário do que é costume nos hábitos portugueses.

    A escolha a fazer implica uma opção a favor da organização da vida escolar, crescentemente, em trabalho de projectos. Implica uma relação com o concreto diferente da actual, designadamente no que diz respeito à relação directa, experimental e técnica, com a matéria. Implica que a experimentação seja considerada como o elemento central para a aprendizagem de todas as ciências, como aliás a experimentação no campo artístico, a qual partilha nesta matéria o mesmo combate com as ciências.

    Impõe-se a superação imediata de um bloqueio insustentável: em Portugal não é ainda obrigatório, no Ensino Básico, a experimentação na aprendizagem das ciências.

    Outra questão, que envolve as práticas, diz respeito à relação da Escola com a informação.

    Saber produzir, buscar, tratar, difundir informação são competências crescentemente necessárias na sociedade e abrem oportunidades para trabalho em torno de projectos na Escola, orientados para actividades e produtos colectivos organizados de professores e alunos. Estas práticas, que no princípio deste século a Pedagogia renovou, por exemplo, no jornal escolar e que viriam a dar origem, já no fim do século, ao desenvolvimento de novas áreas de expressão através das tecnologias de informação e da Internet.

    Hoje em dia o associativismo juvenil, designadamente a partir da Escola, mobilizado pelas tecnologias de informação e de comunicação, especialmente pela Internet, pode ganhar uma força nova à escala nacional e internacional. Tem na Escola um terreno de operação que pode ser explorado ou não. Defendo a abertura de par em par desta oportunidade nova e o seu enriquecimento no contexto da Educação e da formação de parcerias da Escola com o exterior.

    Queria finalmente acrescentar que estas questões são urgentes, não se compadecem com gradualismos, nem, na minha opinião, com o «deixar andar».

    Julgo ser indispensável assumir esta urgência por várias razões.
 
    Muitos estarão de acordo que haverá uma base social muito ampla para a assunção desta urgência: os mais mercantilistas porque, na competição internacional, compreendem que a manutenção dos factores de bloqueio apontados reduzem Portugal a uma periferia no que respeita à formação da força de trabalho na Europa; os mais humanistas porque percebem que a coesão social em Portugal e, designadamente, a relação do país com a emigração, pode pôr em risco essa coesão se a Escola não assumir o progresso de uma forma rápida.

    Não me canso de apelar para que a Escola Básica seja, para o Ensino Superior e para a Comunidade Científica um território de responsabilidade. Num país em desenvolvimento como Portugal, é ainda mais necessário que se entenda como a educação científica de base para os cidadãos (faça-se ela na Escola, ou através dos meios de comunicação de divulgação científica), é uma responsabilidade colectiva e, muito especialmente um imperativo para a própria comunidade científica.

    Gostaria de subscrever, para terminar, a citação de Verney trazida para a compilação agora editada pelo Conselho Nacional de Educação;

    Diz Verney: «Esquecia-me de dizer que o estudante deve ter alguma notícia da Botânica.» (Botânica está em itálico, portanto, julgo que é o que se poderá dizer da Zoologia, da Física, ou de outros assuntos «menores» científicos ou técnicos: a técnica de reparar bicicletas, o saber o que é um parafuso, etc. Coisas pouco «elegantes».) Retome-se Verney: «Esquecia-me de dizer que o estudante deve ter alguma notícia da Botânica não pelos livros, mas ter algum catedrático que lhe ensine. Sendo certo que, neste particular, vale mais meia hora de ?vista? do que dez horas de ditames.»