A Educação e o Uso da Palavra 

Diana Andringa
Jornalista
 
 

    Perante o convite para falar aqui, a minha reacção foi de pânico. Temo que tivesse razão nessa reacção, porque a minha intervenção tem muito pouco que ver, temo, com muito do que foi dito até agora.

    A reacção que tive foi uma a que recorro em casos como este: consultar o dicionário de Morais. Admito que vos possa parecer uma perversão, mas o facto é que ler a definição exacta daquilo sobre que tenho de falar me transmite aquela sensação de segurança que, em criança, procurava no urso de pelúcia, ou na mão da minha mãe.

    Que diz, então, o dicionário de Morais? «Educação: Acção ou efeito de educar, de desenvolver as faculdades físicas, intelectuais e morais da criança e em geral do ser humano»; e só depois: «disciplinamento, instrução, ensino». Mais adiante, depois dos habituais exemplos colhidos na nossa leitura, de novo: «Conjunto de dotes intelectuais, das prendas ou artes manuais e das qualidades morais que em cada indivíduo se desenvolvem pelo estudo e aplicação»; e, só depois, «instrução, ensino que leva ao conhecimento especial de uma arte, de um ofício».

    Respirei aliviada: sendo que a Presidência Aberta é sobre Educação, e não sobre Ensino ou Instrução, permite-me que fale de coisas sobre as quais sei um pouco mais (ou desconheço um pouco menos) que sobre escolas e estabelecimentos de ensino. E que me permita logo dizer uma coisa sentida: a minha profunda pena do ministro da pasta que tem este nome - e que, em meu entender, andaria bem em exigir que o ministério passasse a chamar-se - e já não seria pouco! - do Ensino, ou da Instrução.

    É que, com o devido respeito pelo Senhor Ministro da Educação, me recuso a considerar que cabe ao seu único ministério a tarefa de «desenvolver as faculdades físicas e intelectuais e morais da criança e em geral do ser humano». E acho que o facto de ser dado a um ministério permite, de facto, que todo o resto do país se desligue da questão, com a vantagem adicional de ter sempre, à mão de semear, um conveniente bode expiatório.

    Assim, dei comigo no outro dia, face a dois telejornais que rivalizam na descrição detalhada da cotovelada de Paulinho Santos a João Pinto, a exclamar alto: «Coitado do Marçal Grilo!» (peço-vos que não tomem isto como sinal de menor respeito pelo Senhor Ministro: mas, quando falo sozinha, não tenho por hábito nomear as pessoas pelo cargo?). Então exige-se-lhe que imponha disciplina nas escolas, que impeça os alunos de cometerem desacatos, e serve--se a estes, diariamente, como exemplos, não a escrita de uma Judite de Carvalho, não a ciência de um António Damásio, mas a brutalidade de dois jogadores de futebol? Exige-se-lhes que sejam abertos à ciência e serve-se-lhes obscurantismo? Espera-se que ensine as crianças a dirigirem-se educadamente ao professor quando eles ouvem na televisão uma apresentadora dirigir-se a um entrevistado como «Agora fala o Zé!»? Que respeitem a disciplina de intervenção quando nos debates radiofónicos, televisivos e até na Assembleia da República, a regra é: «todos ao mesmo tempo e que ganhe aquele que falar mais alto?»

    Para não me acusarem de estar sempre a bater na televisão, deixo apenas como apontamento de passagem que já é espantoso que o Ministério da Educação consiga convencer os pais a deixarem os filhos cumprirem o ensino obrigatório quando, de uma série sobre jovens em idade escolar a passar na televisão pública, se deduz que estar na escola é apenas um bocadinho menos perigoso que viver-se num país em guerra: começa-se por se ser violado pelos professores, morre-se de overdose, é-se impelido ao suicídio pela queixa desatenta de uma professora distraída a um pai severo?

    E, para que não se pense que inocento o Ministério da Educação de muita coisa que, no entender de muita gente, corre mal lembro que também é difícil querer que os jovens se transformem em bons cidadãos, defensores do interesse público, empenhados na cidadania, quando os mais velhos lhes dão exemplos de actuações dúplices, de que a mais evidente será, talvez, o aumento das propinas, ao mesmo tempo que na Constituição se mantém a promessa de estabelecer progressivamente a gratuitidade de todos os graus de ensino».

    Sofram-me que traga aqui esse tema polémico, mas confesso que, independentemente de quaisquer outras considerações, me alegro sempre que vejo os estudantes revoltarem-se perante essa duplicidade: o que me preocupa profundamente é a massa dos que aceitam, sem protestos, a língua bífida dos seus maiores. (Diga-se, no entanto, que não imputo esse erro - porque o acho um erro - apenas ao Ministério da Educação, mas a todos os que, apoiando as propinas, não começam por assumir pôr fim a esse direito constitucional.)

    Por tudo o que atrás foi dito, gostaria que esta Semana da Educação lançada pelo Presidente da República, embora dedicada essencialmente ao Ensino Básico, não se ficasse sobretudo pela análise do estado das nossas escolas, das coisas boas e das coisas arrepiantes, e pelas habituais queixas sobre a degradação do ensino. Gostava que fosse, isso sim, uma ocasião para nos lembrarmos que a Educação é uma tarefa de todos nós - e, se calhar, um bocadinho mais daqueles que, como eu, trabalham nos órgãos de informação ou de Comunicação Social?

    Comunicação Social que, aliás, considero ter de, para o bem e para o mal, ser tida em conta por todos os que trabalham no Ensino.
 
    As coisas são o que são, e os nossos jovens passam certamente mais horas em frente ao televisor que nas salas de aula. E se A Rua Sésamo e o Jardim da Celeste contribuem, evidentemente, para a sua aprendizagem, muitos outros programas, mesmo os piores, se analisados, contêm ensinamentos. Aprender a lê-los, aprender a desconstruí--los, a identificar as mensagens ocultas parece-me essencial.

    Daí que considere indispensável, desde a infantil, uma educação para os media que lhes mostre como pode a mesma sala, consoante o órgão de informação, estar vazia ou repleta, como pode Trotsky, consoante as conveniências - e para citar um exemplo histórico - estar ou não estar ao lado de Lenine, como pode saltar-se para uma catarata de muitos metros de altura e chegar ao fim vivo, como podem ser falsas tantas afirmações proferidas com um ar supostamente científico, mesmo no horário nobre, mesmo nos principais canais de televisão.

    Admito ser a única pessoa que concorda com uma velha frase do doutor Almeida Santos, segundo a qual a televisão é a Universidade do País. É, pelo menos, a maior escola de pensamento. Como podem as escolas não ter, entre as suas matérias, o preparar os jovens para ela?

    Disse: preparar os jovens para ela e ocorreu-me um alerta. Alerta a propósito do discurso de alguns empresários ouvidos na rádio esta semana, que reclama do ensino a prática, a inserção no real, para que estejam aptos a integrar-se no trabalho mal a ele acedem (quando acedem?). Que dizem: «As escolas ensinam demasiada teoria, pouca prática», discurso que se estende já a alguns professores e até a alguns estudantes. Ora penso que há duas vertentes neste discurso: uma, positiva, que entende a prática como coisa indispensável, mas sem dispensar a teoria; outra, que entende as escolas como aviários de futuros trabalhadores, tecnicamente muito preparados, mas menos bem preparados intelectualmente.

    Não quero acreditar que, por muito que as coisas tenham mudado, possa ser este segundo o entendimento daqueles que, em 1969/70, recusaram ver as Universidades transformadas em lugar de formação de capatazes. E lembro que cabe aos empresários propiciarem estágios aos seus trabalhadores, e também aos jovens saídos dos estabelecimentos de ensino. Estágios a sério, e não a utilização de uma mão-de-obra barata e convenientemente preparada, paga a preços de miséria, eventualmente com uma refeição e o passe social - como acontece até em grandes órgãos da chamada Comunicação Social.

    Gostava agora - em último e não por último - de vos falar da língua portuguesa. Porque também em relação a ela tenho obrigações, porque também a ela fazemos mil e uma tropelias, nós, os que trabalhamos em órgãos de informação.

    Mas por outro motivo, também: porque é dela que guardo as mais profundas recordações do meu próprio tempo de escola. Algures, numa primária modesta de Rio de Mouro, a D. Maria a ler-nos, num português onde julgo lembrar-me haver um leve sotaque beirão,
«O Estatuário», do Padre António Vieira, fazendo-me perceber de repente quão fortes podem ser as palavras, como podem imprimir-se dentro de nós. No Ramalhão, a D. Bela a deixar-me inventar as minhas próprias interpretações para os versos dos Lusíadas, através de discutidas análises gramaticais, e a fazer-me ver, para lá da sua aparente severidade, que a liberdade passava por aí, pelas palavras.

    Outra recordação é muito recente, tem cerca de um ano, mas gostava na mesma de partilhar convosco, porque acredito na aprendizagem permanente e, nesse dia, aprendi muito - e recordei, com a emoção que sempre passa por isto, a beleza que é alguém saber pôr em palavras aquilo que nós sentimos, confusamente sabemos, mas não logramos articular.

    Por uma destas estranhas razões que nos levam a estar em sítios onde não temos a certeza de ser úteis, encontrei-me num júri a analisar provas de composição. Não sabendo bem que critérios adoptar, perguntei se podia ser severa com aqueles que usassem erradamente o português - nomeadamente, como hoje está tão em voga, usando palavras cujo sentido se ignora, ou intercalando vírgulas entre o sujeito e o predicado. E disse algo como, apesar de tudo, ser a língua a ferramenta de que aqueles que examinava iriam servir-se, pela vida fora.

    Um dos meus companheiros de júri deu um grito que me assustou: «Não diga isso!» E explicou: «A língua não é uma ferramenta ou um instrumento. A língua é o lugar onde o ser humano se identifica.»

    O meu companheiro de júri era o professor Joaquim Coelho Rosa. Pedi-lhe que, sobre isso, escrevesse um artigo para o jornal do Sindicato dos Jornalistas. Permitam-me que vos leia algumas passagens, que dizem, excelentemente, o que eu não saberia dizer--vos, embora quisesse, embora seja o que eu gostaria de dizer a todos os professores, aos políticos, aos juízes, aos jornalistas e outros trabalhadores da Comunicação Social, aos empresários que acima referi:

    «Perverter o uso da palavra é, sempre, perverter a própria condição humana de existência. Não é por acaso que todas as ditaduras e censuras se estribam no alibi da defesa contra o abuso da palavra para escamotearem a liberdade dos homens. Daí que, em democracia, haja duas preocupações importantes a tomar neste capítulo.

    A primeira é a do rigor no uso da palavra, sobretudo por parte daqueles que, por uma razão ou por outra, têm o privilégio (e o risco) de verem a sua palavra amplificada pelas próprias condições de exercício profissional, como é o caso dos jornalistas, políticos, professores e padres.

    A segunda é a de zelar, sobretudo através do rigoroso exercício da palavra, pela disseminação desse rigor em todo o tecido social. Não medimos, muitas vezes, o perigo terrível que ameaça uma sociedade em que não se pensa nem se fala com o mínimo rigor lógico e gramatical, em que tudo se diz sem a mínima preocupação de justeza e coerência conceptual. Uma sociedade que se acostuma a viver desse modo está à mercê do primeiro manipulador de palavras que lhe surja, pois ficou privada de qualquer critério para formular juízos de valor ou de pertinência.

[?]

    Parece, muitas vezes, que no tempo da ditadura, que mais não fosse para fugir à Censura, se era muito mais rigoroso e criterioso no uso da palavra. Paradoxo dos paradoxos, dir-se-ia que nós, portugueses, depois de nos ter sido permitida a liberdade, deixámos de cuidar do lugar eminente onde a liberdade se alberga e manifesta. Dir-se-ia que, malgré soi, a ditadura, ao obrigar à vigilância do discurso, cuidou mais da liberdade do que a democracia. Se assim é, acautelemo-nos, pois estamos maduros para nova ditadura.»

    Não sei se alguma coisa do que disse anteriormente pode ser útil a este debate, e corresponde à responsabilidade do convite que me foi dirigido. Mas peço-vos que guardem estas palavras do professor Coelho Rosa: porque, como ele, acredito que estamos a matar a democracia com a nossa desatenção pelas palavras. E isso compromete-nos a todos, jornalistas, professores, políticos, etc. É a base, certamente, da Educação, dessa que começa em casa, prossegue no pré-primário, se acentua no primário, e devia ser decisiva no secundário, antes de chegar ao superior e começar a decorar frases que o nosso desconhecimento da língua nos leva a repetir sem compreender, ou ao trabalho e começar a cumprir ordens injustas, apenas porque não sabemos pô-las em causa.

    Afinal, foi com o Padre António Vieira e com Camões que primeiro entendi a liberdade.