Aprender a Pensar 

Maria Odete Valente
Universidade de Lisboa
 
 
 
 

No início deste debate o Professor Rui Canário referiu que a questão central, que todos temos que colocar quando falamos da Educação e do Sistema Educativo, é a de responder afinal para que serve a escola. A Dr.ª Eduarda Dionísio sobre essa mesma escola pronunciou-se dizendo que ela não é seguramente uma salvação e que outros ambientes assumem maior relevância na vida dos jovens. Pois bem, entrando neste debate, gostaria de dizer que quando faço esta pergunta a mim própria, e, com a resposta que me dou, tento encontrar um bom critério para ajuizar sobre inovações, reformas, novos currículos, novas estratégias e métodos de ensino, novos programas de intervenção, acabo sempre por concluir que para ajuizar da vantagem e justeza das decisões, o critério que mais me satisfaz e ajuda inscreve-se e deriva da sustentação de que a escola tem uma missão singular, relativamente a outras instituições educativas, como a família, as igrejas, os partidos, os meios de comunicação, etc., e essa missão é a de levar os alunos a Aprender a Pensar. A pensar aberta e criticamente sobre si próprio, a pensar sobre os outros, a pensar sobre o mundo, sobre o conhecimento disponível, o modo como se constitui, como se utiliza ou se torna inútil, sobre o belo, sobre o justo, sobre a fragilidade e complexidade dos seres e das coisas. E reforçando a ideia, é no levar os alunos a aprender a pensar por si e com os outros, que me parece situar-se a função primeira da escola, da qual não podemos prescindir, mesmo quando lhe acrescentamos ou cometemos outras missões. E assim, ao pronunciar-me sobre questões de hierarquia das disciplinas no currículo escolar, ou sobre a necessidade de introduzir esta ou aquela nova área de estudo, o meu juízo forja-se tentando discernir em que medida essa mudança vai reforçar a capacidade de os alunos pensarem melhor, fecundando o agir pelo pensamento. Isto é, não basta que a escola seja uma oportunidade para pensar melhor. É igualmente importante que a atmosfera seja propícia ao envolvimento, ao desejo de partilhar, de trabalhar em comum e de transformar. Uma escola que passa todo o tempo a justificar os seus ensinamentos para um projecto de futuro, distante, não corresponde às necessidades dos jovens que querem viver o presente justificando-o e agarrando-o. Este envolvimento estrutura-se de várias maneiras, desde o modo como se trabalha em cada disciplina, tornando o tempo escolar uma oportunidade de construção de ideias, de gestos, de acções e invenções, de projectos transdisciplinares, de desempenho de funções em várias tarefas da escola, à organização da vida extracurricular, à partilha de decisões na estruturação das regras, enfim, de pôr em comum e discutir problemas, os dos alunos e o da sociedade, próxima e global. Existe uma tensão entre os educadores, pais e alunos quanto à oportunidade da escola ser local de discussão e de clarificação dos problemas pessoais sentidos pelos jovens no seu quotidiano. Apesar da complexidade das situações que podem ocorrer, torna-se cada vez mais necessário proporcionar estes tempos, no dia a dia escolar, aproveitando a vocação reflexiva da escola e o ambiente natural de dialogo entre pares para um aprofundamento das razões das varias condutas e juízos de valor. Esse olhar e tempo de reflexão sobre as suas vidas faz com que olhem para a escola como menos irrelevante e uma oportunidade de se reconhecerem na instituição e de se ajudarem uns aos outros, de experimentarem o saber ouvir e respeitar os outros. Apesar de nos discursos mais genéricos se proclamar que a escola deve contribuir para uma educação global, quando se trata de, em detalhe organizar, o espaço e o tempo escolar muito do que não se estrutura de forma disciplinar ficar para segundo plano, combinando justificações de origens diversas. De uns, porque desejam a escola, e pensam ser possível, desvinculada de opções ideológicas, mero local de instrução técnica ou de aprendizagem de linguagens, mas não de sentidos, de outros, porque acreditam que só as disciplinas têm a estrutura necessária para usufruírem do direito de ocuparem um tempo escolar. Assim o tempo se espartilha nas estruturas mais simples de gerir, sem a percepção do vazio que as circundam e da falta de alimento para uma educação pessoal e social, que convirá salientar não se esgota na instrução cívica.

A humanização da escola passa pelos ambientes gerados, pela organização das actividades e do valor que se lhes atribui para o currículo pessoal do aluno. Quem valoriza o aluno que trabalha no jornal da escola, que participa nas actividades menos regulares, que participa na organização da vida associativa dos estudantes, nos desportos, na vida artística da escola? Existe mesmo por vezes um sussurro anti-escola, que passa de aluno a aluno, de pai para filho, de professor para aluno, de desinvestimento na escola, quase sempre em nome de uma competição nos acessos a varias instituições onde igualmente não se busca tanto a qualidade e o bom critério de escolha e se escorrega para a maneira menos trabalhosa e quase sempre injusta de exercer uma selecção.

Claro que na criação de ambientes propícios a um grande investimento intelectual enraizado na discussão e no envolvimento activo em tarefas de desenvolvimento pessoal e social, o professor faz a diferença. Quanto mais este deixar de ser o protagonista do dizer, mais difícil a sua função, cada vez mais tornada uma missão em que à inequívoca vontade de gostar de ser professor e à capacidade de gostar de facto dos seus alunos, se junta um saber profissional enraizado na experiência, mas uma experiência reflexiva que desconfia dos seus preconceitos e aceita avaliar em cada instante o impacto real por oposição ao que é virtual e feito de convicções nunca sujeitas a investigação e avaliação Este saber profissional não é compatível com medidas de formação de professores cada vez menos exigentes tanto a nível da sua formação teórica como prática. Algumas formas de profissionalização situam-se claramente abaixo de um nível aceitável.

Gostaria ainda de deixar um alerta sobre as sempre procuradas «reformas da escola». A reflexão que tenho feito sobre os várias percursos de inovação em que me envolvi foi-me tornando cada vez mais viva a ideia de que os processos de inovação educativa ou são bem enraizados e sustentados no terreno ou estiolam e nada acrescentam, consumindo porém muita energia e recursos materiais.
A sustentabilidade é determinante num processo de intervenção que vise alcançar uma real transformação da vida e cultura escolar.
E para sustentar os processos, há dois aspectos fundamentais a considerar e a não perder de vista - intencionalidade clara ao longo de todo o percurso da intervenção e organização sistémica e sistemática Uma intervenção pontual e não regulada, não passa de acontecimento passageiro, perde-se, não deixa raízes estruturantes e a mais ou menos curto prazo fica à deriva, esgota-se e inutiliza-se a si próprio.

Por último, um apontamento em jeito de aviso à navegação onde todos estamos mais ou menos envolvidos. Trata-se de procurarmos antecipar os efeitos perversos das nossas acções, quase sempre cheias de convicções com boas intenções. Nos sistemas educativos são conhecidas várias dessas situações. O Dr. Sérgio Nisa trouxe a este painel de reflexões a problemática dos currículos alternativos, os quais me parece igualmente deveriam ser muito bem discutidos antes de implementados, para se estudar e avaliar em que condições específicas e com que cuidados esmerados se tem de trabalhar nas escolas, para se evitar que se transformem numa via de discriminação dissimulada com consequências futuras gravosas e difíceis então de compensar. Poder-se-ão acrescentar outros exemplos da nossa actualidade educativa, de entre os quais um dos mais preocupantes reside no sistema em vigor de avaliação dos alunos à saída do secundário, misturado e indiferenciado com o do acesso ao ensino superior com um sistema de numerus clausus mal fundamentado. Ensino superior que está severamente perturbado e descaracterizado por uma população empurrada para onde não gosta de estar (é preciso ter presente que cerca de metade dos alunos que entra no ensino superior público não frequenta o curso que colocou em primeira opção na sua candidatura ao ensino superior), impedida que foi de realizar num projecto de vida escolhido e por si desejado. Os reflexos e efeitos retroactivos nefastos que tem provocado em toda a vida escolar no ensino secundário são hoje bem visíveis, transformando este troço do ensino numa louca corrida dirigida exclusivamente para os exames de acesso ao ensino superior, onde deixa de haver tempo e lugar para a formação global do jovem, para a sua formação pessoal e para a participação na vida social. A competitividade passa a ser a regra e tudo o que se traduza em menos concentração de tempo na preparação das provas específicas de acesso é reduzido ao mínimo possível. E neste jogo entram alunos, pais, professores, ainda que todos contrariados. Não parece haver porém coragem ou lucidez para alterar substancialmente a situação. Pretende-se fazer crer que, pela via de restaurar e valorizar os exames e garantir que eles não provoquem escândalo mediático, se garante a qualificação do ensino e do sistema. Perde-se a noção da injustiça e brutalidade com que alguns alunos são tratados na competição que se gera em torno de uma décima, num exame quantas vezes de qualidade duvidosa ocasionando dificuldades e diferentes critérios na sua classificação. mas em qualquer dos casos uma peça menor para avaliar a capacidade de um aluno concluir uma licenciatura e vir a ser um excelente profissional O exemplo do acesso a medicina, por tantas vezes repetido, não nos pode deixar indiferentes e paralisados. Os efeitos perversos de que estou a falar são pessoais e institucionais. Os alunos ao terminar o secundário, por força do sistema de acesso, são sujeitos a mecanismos com impactos excessivos, brutais para alguns. Continuando o triste exemplo da medicina, é preciso que se saiba que há alunos que levam quatro, cinco, anos até desistirem e que se submeteram, ano após ano, a exames de acesso, tudo fazendo para entrarem no curso que lhes daria acesso à profissão que legitimamente quereriam ter, projecto de vida louvável e necessário, mas que apesar das suas excelentes classificações, ficam por décimos fora do sistema e afastados do que tanto desejaram e mereciam.

Institucionais porquanto é o ensino secundário, por força de um efeito retroactivo, já referido e o ensino superior por força da população que recebe que progressivamente se vão descaracterizando. E a qualidade do ensino que havia sido a bandeira a justificar todo este processo sai cada vez mais debilitada. Mas as circunstâncias que ocasionaram estes efeitos perversos podem ser alteradas com vontade e a iluminação necessária para compreensão destes processos.