Discurso de encerramento da Semana da Educação 

Jorge Sampaio
Presidente da República
 
 

    Minhas Senhoras e Meus Senhores,

    Com esta cerimónia, termino uma das jornadas mais importantes do meu mandato. Percorri o país visitando escolas e instituições, promovendo debates, falando com crianças, jovens e adultos. Vi situações difíceis e experiências de grande mérito. Quis aproximar--me das pessoas e das suas dificuldades, envolvendo todos os parceiros sociais num debate que é decisivo. Ouvi o descontentamento, mas raramente me deparei com o desencanto.

    Não evitei nenhum problema. Bem pelo contrário. Contactei de perto com as mais graves situações sociais: escolas urbanas rodeadas pela droga e pela delinquência; crianças rurais isoladas pela pobreza; jovens marcados pela ausência de futuro devido a uma deficiente formação escolar; adultos que não possuem os instrumentos mínimos de cultura. Se não são estes os problemas do país, então quais são os problemas do país?

    Não quis criticar nem elogiar o Governo. O meu dever como Presidente da República é alertar para os problemas concretos dos portugueses. Mas entendo que é meu dever fazê-lo, sinalizando experiências e iniciativas. Desloquei-me a «escolas difíceis», habitadas por pessoas que procuram as melhores soluções. Entendo que esta é a maneira certa de mostrar os problemas, sem cair na lamúria.

    É preciso ter a coragem de reconhecer que as nossas prioridades estão, muitas vezes, invertidas. Entretemo-nos com o espectáculo do acessório e não olhamos para o essencial. Damos voz aos que mais falam e empurramos os esquecidos para um silêncio cada vez maior. Sinto que é necessário salientar a importância da educação pré-
-escolar, básica e secundária. O que está em causa é o futuro individual de cada um e o destino colectivo do país.

    No final desta Semana estou mais preocupado e mais confiante.

    Estou mais preocupado, porque tenho uma percepção mais exacta da forma como os problemas sociais se reflectem na Escola e do modo como nela se produzem fenómenos de exclusão. No Porto, li a redacção de uma criança que vê drogados a injectarem-se quando vai para as aulas. Em Baião, observei as consequências do trabalho infantil e as resistências que algumas famílias levantam à escola. Apercebi-me que há ainda quem considere que basta legislar para que os assuntos se resolvam. Quando, na verdade, tudo fica na mesma. Apesar dos avanços, há ainda muito a fazer.

    Mas também estou mais confiante, porque visitei iniciativas de grande mérito, dinamizadas por profissionais responsáveis e competentes. Muitas das soluções de que carecemos já existem nas nossas escolas. É importante dar-lhes visibilidade e apoiá-las. E criar as condições para que cada instituição encontre as suas próprias respostas.

    Minhas Senhoras e Meus Senhores,

    Ao anunciar a realização da Semana, mencionei três preocupações principais. É chegado o momento de vos dar a minha opinião sobre o que vi e ouvi.

    * Em primeiro lugar, quero dizer-vos que adquiri um conhecimento mais nítido das dificuldades em assegurar uma educação básica de qualidade para todos.

    É difícil realizar uma acção educativa em comunidades que não valorizam este esforço. É difícil agir junto de alunos que perderam a confiança na Escola. É difícil ensinar populações tão heterogéneas.

    Mas, sejam quais forem os obstáculos, recuso-me a aceitar que os jovens saiam da escola sem terem adquirido um mínimo de competências. A nossa primeira tarefa é assumir a responsabilidade por estes jovens, respeitando os seus próprios percursos educativos. Dizer que a escola deve ser uma «oficina de humanidade» significa, antes de mais, cuidar destes alunos. Não compreendo, nem aceito, quaisquer tendências para o facilitismo ou para a desculpabilização.
 
    Se muitas crianças podem contar com a ajuda familiar, outras estão totalmente dependentes do que aprendem na escola. Visitei «clubes» e «salas de apoio» que procuram enquadrar estes alunos, aumentando o tempo de presença no espaço escolar e organizando momentos de estudo, de trabalho e de convívio cultural.

    É preciso declarar o direito das crianças a uma escola que cultive a democracia e a tolerância, que defina responsabilidades, que ensine com rigor e promova o gosto de aprender.

    * A minha segunda preocupação diz respeito à definição de novas relações entre educação e trabalho.

    É necessário que as pessoas e as comunidades compreendam a importância da formação escolar. E que a escola compreenda a diversidade de culturas que existem na sociedade.

    Para além de um reforço das vias profissionalizantes no ensino secundário, parece-me indispensável incluir na formação de base uma sólida cultura técnica e tecnológica, bem como     experiências concretas de trabalho.

    Mas as habilitações dos jovens nem sempre são reconhecidas nas organizações de trabalho. A fraca oferta de emprego qualificado é uma das razões que conduzem a um desinteresse pela formação.

    Sem uma mudança das escolas e das políticas de recrutamento das empresas, é difícil encontrar novos equilíbrios nas relações entre educação e mundo do trabalho.

    O que está em causa é a possibilidade de os jovens decidirem o seu futuro. Não há nada pior do que querer ter uma profissão e não o poder concretizar. Devemos criar condições para que a ninguém seja negado o direito de alcançar amanhã uma situação diferente da que possui hoje. O que só será conseguido se dermos a atenção devida à educação de base, à formação profissional, à transição para a vida activa e à formação contínua.

    * Permitam-me, por último, que partilhe convosco algumas reflexões sobre a educação e a formação ao longo da vida.

    As estatísticas são conhecidas, mas durante muito tempo foram olhadas com algum «cinismo»: o problema resolver-se-ia à medida que as novas gerações escolarizadas fossem     substituindo as mais antigas. Hoje os números viram-se contra nós. Para além dos 300 000 jovens com menos de 25 anos que não cumpriram a escolaridade obrigatória, há situações de grande debilidade na faixa etária dos 30 e dos 40 anos.

    Não basta esperar. É preciso agir. Infelizmente, não tem havido iniciativas políticas nesta área. Vi o entusiasmo com que homens e mulheres, de idade avançada, se dedicam à aquisição dos instrumentos básicos de cultura. Vi o esforço que fazem para valorizar as suas vidas. Mas hoje não são só os «velhos», são também os «jovens», que necessitam de novos processos de educação de adultos.

    É preciso tomar medidas urgentes para que acabem as manchas de analfabetismo e de ignorância que ainda existem em Portugal.
O Estado tem de fazer mais. Mas é essencial, também, incentivar e apoiar práticas associativas e cooperativas, bem como alargar o esforço das empresas neste domínio.

    Eis alguns aspectos que foquei ao longo da Semana. Muitos outros ficam por sublinhar, nomeadamente o estímulo aos hábitos de leitura e à criação de bibliotecas escolares, o incremento das práticas de experimentação e a construção de laboratórios ou o desenvolvimento do ensino artístico e da educação para as novas tecnologias. Mas as realidades são tão vastas e complexas que é impossível tudo abarcar.

    Minhas Senhoras e Meus Senhores,

    Tenho repetido nos últimos dias que não basta apelar à «responsabilidade de todos» e que é urgente celebrar compromissos concretos nos planos social, profissional e local.

    * Começo por apelar à necessidade de compromissos sociais. Nada será alterado se a sociedade não compreender o significado da educação e da cultura. É uma perigosa ilusão pensar que as dificuldades estão, sobretudo, nos edifícios, nos programas ou nos regulamentos. Temos de ter a coragem de ir ao fundo dos problemas. Portugal mantém défices importantes no sector educativo. Em espaços marcados pela ignorância não é possível uma acção coerente e eficaz.

    Cada um tem de assumir as suas obrigações. A começar pelo Estado, que deve reforçar o seu compromisso com a escola pública, afastando quaisquer tendências neo-liberais. A continuar pelas famílias, que devem valorizar a ideia de educação e incentivar o estudo dos seus 2 filhos. A acabar nos profissionais da educação, que devem contribuir para uma aproximação da escola às comunidades locais.

    Nos lugares que visitei senti a presença forte das autarquias e o papel importante que já desempenham no esforço educativo. Mas constatei uma certa ausência dos agentes económicos. Parece-me essencial que exista uma maior ligação entre as empresas e as escolas, porque não no quadro de um programa de mecenato escolar. Uma medida deste tipo permitiria fortalecer as solidariedades locais, criando melhores condições de trabalho para professores e alunos.

    * Quero agora falar dos compromissos profissionais.

    As referências à dimensão social das escolas não podem conduzir à desresponsabilização dos professores. Bem pelo contrário. É no plano concreto do trabalho escolar quotidiano, no acto de ensinar e aprender, que se devem concentrar os nossos esforços.

    O papel dos professores é cada vez mais decisivo. O que obriga a construir uma nova cultura profissional, que conceda grande importância à formação e à avaliação, sem nunca esquecer o compromisso responsável com os alunos.

    As escolas não são apenas lugares onde se dão aulas. São espaços de estudo e de trabalho, de vivência democrática e de formação cívica. Não vale a pena cairmos na ilusão dos regulamentos. É na concepção da escola como espaço participado de reconstrução da cultura e de promoção da cidadania que podemos encontrar as respostas para os problemas da indisciplina, da violência e dos códigos de conduta.

    Os professores devem ser apoiados, nesta multiplicidade de tarefas, pelas comunidades locais. Na situação actual de mobilidade permanente do corpo docente, é impossível consolidar e avaliar o que se vai fazendo. Prolonga-se, assim, a instabilidade que tem caracterizado muitas experiências nos últimos anos. A cooperação só terá êxito se for possível garantir uma maior continuidade dos projectos educativos.

    * Finalmente quero assinalar a importância dos compromissos locais.

    O objectivo é tornar a Escola mais independente de lógicas centralizadas e burocráticas, mas mais dependente dos processos e das decisões locais. A autonomia não deve conduzir a Escola pelos caminhos da lógica empresarial, mas antes acentuar o seu significado como realidade comunitária e como projecto cívico. O que nos faz falta é um novo pensamento educativo, é um espírito de dinamismo e de adaptação local, que seja libertador de energias sociais e pessoais.

    Trata-se de devolver a Escola à sociedade, responsabilizando a sociedade pela Escola. É essencial que esta «restituição» se realize no curto prazo e, para isso, as medidas previstas no diploma de autonomia e gestão das escolas constituem um importante contributo. As comunidades locais não podem enjeitar as responsabilidades que lhes pertencem na formação das crianças e dos jovens.

    É também neste contexto que quero fazer um apelo ao voluntariado de todos os que desejam participar nas tarefas de apoio aos alunos e na sua formação escolar e cívica. A responsabilidade individual e colectiva pode mudar a face da escola, e melhorar a sua imagem, tornando-a mais próxima das comunidades.

    Minhas Senhoras e Meus Senhores,

    Foi uma semana apaixonante, marcada pela existência de problemas gravíssimos, mas também por encontros com gente notável, quase sempre desconhecida. As condecorações que atribuí no início desta cerimónia pretenderam, justamente, distinguir estes educadores, que lamentavelmente tantas vezes deixamos no esquecimento.

    Mas o dia de hoje foi também voltado para o futuro. Recebi em Lisboa cerca de 500 dirigentes associativos do ensino secundário. Pediram-me que apoiasse a realização de um Encontro Nacional das associações de todo o país, o que faço com o maior gosto. Apelar à participação de todos - e também dos estudantes - foi a intenção principal desta iniciativa presidencial. Quero agradecer, muito sinceramente, a todas as pessoas e instituições que colaboraram na sua realização. Não posso deixar de fazer uma referência especial ao trabalho dos jornalistas. Durante estes dias contribuíram para chamar a atenção do país para a educação. O programa tinha como pano de fundo dar visibilidade a um sector tantas vezes ignorado ou apenas lembrado pelas más razões. Como Presidente da República, quero dirigir-vos palavras de agradecimento, porque sem o vosso trabalho tudo teria sido mais difícil.
 
    Estou certo que estas jornadas pela educação permitiram mostrar ao país a Escola que temos. Com as suas dificuldades e carências, mas também com os seus aspectos positivos. Não podemos ser apenas «testemunhas» críticas do que se vai passando. Num desígnio nacional como a educação ninguém tem o direito de ser mero espectador, nem de olhar apenas para os problemas. É do contributo de cada um que surgirão as soluções que nos faltam.

    Termino dirigindo-me aos alunos, os verdadeiros destinatários da nossa acção. Quero que saibam que o Presidente da República não os esquece, que se preocupa com as condições de que cada um dispõe para construir o seu próprio futuro. Quero que percebam que o país conta convosco. E que o vosso primeiro contributo é dado na Escola. Eu tenho confiança em vós. Eu tenho confiança em Portugal.