Pensar o futuro da Educação 

Rui Canário
Universidade de Lisboa
 
 

    Os discursos sobre a educação apresentam-se, hoje, no essencial, estruturados por certezas e por soluções. É importante, do meu ponto de vista, que nos desloquemos desse terreno, para o terreno das questões e dos problemas. Nesse sentido, parece-me fundamental, para «ganhar tempo», que discutamos os termos em que o debate educativo deve ser colocado. É na perspectiva de para isso dar uma contribuição que organizei a minha intervenção, em torno de quatro pontos: o primeiro é o das finalidades da educação; o segundo é o de questionar o conceito de «atraso» educativo que nos caracterizaria; o terceiro ponto diz respeito ao sentido do trabalho na escola e, por fim, procurarei questionar o modo como o sistema escolar se ocupa dos pobres e «excluídos».

Prioridade à educação. Para quê?

    Sobre a importância da educação e as respectivas razões o acordo é, aparentemente, unânime. Precisamente em nome dos actuais «consensos», o Livro Branco sobre a educação ao longo da vida, recentemente publicado pela Comissão Europeia, anuncia o «fim dos debates de princípios», considerando hoje como ultrapassados os debates sobre «a concepção das missões dos sistemas educativos e de formação». Ora, na minha maneira de ver, esse debate nunca foi mais necessário, nem mais actual, sobretudo se pensarmos que a educação deve permitir que as pessoas aprendam a determinar o seu futuro individual e colectivo.

    No quadro da actual política de construção europeia, a ênfase que é colocada na importância da educação e da formação, inscreve--se, fundamentalmente, numa perspectiva de sobredeterminação da educação por uma lógica de carácter económico que, cumulativamente, induz uma visão redutora e pobre dos fenómenos educativos. Para lá de algumas «belas frases» de circunstância, o discurso (oficial ou oficioso) sobre a educação ao longo da vida tem como eixo estruturante a ideia de que a formação corresponde, no essencial, à formação profissional e que a formação profissional deve servir as necessidades das empresas. No contexto actual, a educação (a todos os níveis do sistema educativo) passou a constituir um elemento central das políticas de gestão social do desemprego, integrando-se de forma perfeitamente harmoniosa nos objectivos das empresas. Assim, as finalidades de promoção social, cultural e cívica, que marcaram o movimento da educação permanente, tendem a ser paulatinamente substituídas pelas finalidades (aliás entre si contraditórias) de aumentar a produtividade e de criar emprego.

    A subordinação da educação à lógica mercantil, induz a que a própria educação se organize adoptando a racionalidade económica do mercado. A emergência de um «mercado da educação e da formação» constitui o corolário lógico de uma visão instrumental dos processos educativos. Este entendimento da educação como um instrumento, ao serviço de uma política económica mercantil, é complementada por uma visão predominantemente técnica das práticas educativas, marcadas por critérios empresariais de procura da «eficácia» e da «qualidade». Da parte do «cliente» ou «consumidor», tendem, naturalmente, a prevalecer estratégias de apropriação e acumulação individual de bens (neste caso simbólicos, sob a forma de certificados e diplomas), em que a lógica do «aprender a ter» se sobrepõe à lógica do «aprender a ser». A criação do «cliente» da educação e da formação tem, como reverso, que este se transforme, tendencialmente, num empresário de «si próprio», gerindo a sua carreira e o seu potencial como um capital, segundo os critérios do mercado.

    A educação e a formação ao serviço da trilogia da produtividade, da competitividade e do crescimento aparece, finalmente, como uma proposta muito pouco pertinente e realista, face aos problemas com que nos defrontamos. A formação constitui uma vantagem competitiva individual na obtenção de emprego, mas o nível geral de qualificações não determina o volume total de trabalho e muito menos a sua distribuição. Em suma, a formação não cria empregos. Por outro lado, mantendo-se a mesma organização social, o aumento da riqueza não garante uma distribuição mais equitativa, é o contrário que se tem verificado. A procura da competitividade, baseada no aumento da produtividade e do lucro aconselha estratégias de «emagrecimento» das empresas que estão na raiz da produção de «exclusão social».

    Não estamos, portanto, perante um mero problema de «eficácia» económica, em que à educação competiria assegurar uma mão-de- -obra cada vez mais qualificada, mas perante um problema civilizacional que recoloca no centro do debate as questões da distribuição das riquezas produzidas, a redução massiva e a transformação do trabalho, bem como a transformação da sua relação com os tempos de lazer, o desenvolvimento de valores e de práticas sociais não baseadas na competição e na procura do lucro e que possam prenunciar uma sociedade solidária.
 
 

O nosso problema é o «atraso»?

    Uma das formas mais comuns de diagnosticar a nossa situação educativa é a de partir do pressuposto de que somos, nesse domínio, como noutros, um país «atrasado». Aceitar sem discussão esse pressuposto significa aceitar transferir para a educação a «crença» ocidental no «progresso», tendo como referente o modelo «desenvolvimentista» cujo apogeu se situou nos «trinta anos gloriosos» que marcaram o pós-guerra. Implica ainda aceitar, sem crítica, uma relação linear e positiva entre educação e «desenvolvimento». O optimismo relativamente à escola, nos anos 60, fundamentava-se na ideia de que a um acréscimo de escolarização corresponderia um acréscimo de «desenvolvimento», traduzido num aumento da riqueza produzida. Por outro lado, a democratização de acesso à escola, conduzia a encarar a instituição escolar (regida por lógicas meritocráticas) como um potencial instrumento de justiça e igualdade social.

    O optimismo cedo deu lugar ao desencanto. Em sociedades cada vez mais escolarizadas aumentou a produção de riqueza, mas concomitantemente, cresceram as desigualdades, instalou-se o desemprego estrutural de massas, instalou-se a crise do mundo urbano, tomou-se consciência do pesadelo ambiental. É claro que a responsabilidade não pode ser atribuída à escolarização que é, no essencial um fenómeno positivo. Mas um balanço retrospectivo ajuda a identificar os limites de uma oferta educativa centrada no crescimento linear da oferta escolar, desvalorizando modalidades educativas não formais e contribuindo, pelas expectativas postas na escola e pela enfatização do valor de troca dos diplomas escolares, para a erosão e a crise da instituição escolar. No nosso país, a escola de massas é uma criação tardia, o que explica os baixos níveis de qualificação escolar da população. Justifica-se, portanto, que haja um esforço e um investimento para superar essa situação. Importará prevenir que o crescimento da oferta educativa não reproduza as políticas de mera expansão linear («mais escola»), favorecedoras do crescimento de um mercado educativo e de uma massa de «consumidores («corrida à escola») que reforce a lógica desenvolvimentista que está na base dos graves problemas sociais e ambientais que enfrentamos.

    A existência de níveis elevados de iliteracia, o desemprego juvenil, a segregação e exclusão escolar, a violência escolar no contexto de um acréscimo da violência urbana não são problemas característicos do nosso sistema escolar. Eles estão presentes, noutros países, num grau em muitos casos mais acentuado do que entre nós. Basta olhar para o «retrato» dos bairros suburbanos da Europa «desenvolvida» ou para os «ghettos» do centro das cidades americanas. Em comparação com aquilo que se passa nos EUA, onde a violência escolar atinge níveis inimagináveis para nós, a situação francesa ainda não é muito grave porque, como refere um autor francês, nas escolas «os homicídios ainda são excepcionais». Pensar em termos de «atraso» significa, por um lado, querer ser «como a França» ou «como os EUA» o que não me parece muito realista nem pertinente. Significa, por outro lado, omitir que a crise dos sistemas escolares é estrutural e que, na sua lógica actual de funcionamento, a produção de exclusão escolar e de exclusão social não representa uma «patologia» do sistema mas sim algo que lhe é intrínseco.
 
 

    Construir um sentido para o trabalho escolar

A insatisfação com a escola é generalizada, e tem razão de ser. Mas importa saber se na raiz dessa insatisfação está um problema de eficácia, ou um problema de legitimidade. Do meu ponto de vista, os problemas que afectam os sistemas escolares deverão ser entendidos não como disfuncionalidades passageiras, mas como a expressão de um défice de legitimidade que em parte se relaciona com a crise da relação historicamente estabelecida entre a instituição escolar e a unidade do estado-nação, articulada pela coerência entre um sistema político e um sistema de valores. Por outro lado, a crise de legitimidade da escola inscreve-se numa crise geral das instâncias tradicionais de socialização que veio pôr em causa o modelo clássico de integração normativa, em que a socialização aparece como um puro constrangimento externo.

    A unidade e coerência internas da instituição escolar que, durante muito tempo, asseguraram o sucesso do modelo clássico de integração normativa, tem vindo a fragmentar-se em múltiplas funções, analiticamente independentes, a que correspondem distintas lógicas de acção, cujo sentido é construído pelos actores sociais. Esta construção de sentido para as situações escolares é tão decisiva para os alunos como para os professores e só ela permite superar as estratégias de sobrevivência a que uns e outros se encontram, com frequência, reduzidos. Cada ser humano está, desde que nasce, «condenado» a aprender, ou seja, a atribuir sentido à realidade complexa em que se insere, fazendo-o a partir da sua história cognitiva, afectiva e social. Este processo de atribuição de sentido corresponde à construção de uma visão do mundo, isto é, de si próprio, da sua relação com os outros e da sua relação com o mundo. Esta perspectiva da centralidade da construção do sentido e da problemática da relação com o saber está omissa, e tende a ser contrariada, pela tentativa de querer resolver os problemas da escola a partir de um acréscimo de eficácia nos procedimentos de ensino. Esta perspectiva da eficácia do ensino coloca a tónica na «motivação» dos alunos que é a antítese da mobilização e do investimento pessoal que um processo de aprendizagem, como processo de autoprodução, implica. Se somos intrinsecamente curiosos e estamos condenados a conhecer porque estaria o trabalho escolar condenado a ser penoso?

    Tentar superar a actual crise de legitimidade da escola passa, a meu ver, por tentar fazer dela um sítio onde se possa desenvolver e estimular o gosto pelo acto intelectual de aprender. Isto quererá dizer que a aprendizagem se tornará importante pelo seu valor de uso, no presente, enquanto forma de «ler» e intervir no mundo e não, sobretudo, pelos benefícios materiais ou simbólicos que promete, no futuro. Em segundo lugar será importante que a escola seja um lugar onde se produza, isto é, onde se aprenda pelo trabalho, como forma de criação e realização pessoal, e não o sítio onde se aprende para o trabalho. É na medida em que o aluno passa à condição de produtor que nos afastamos da concepção cumulativa, molecular e transmissiva da forma escolar tradicional, evoluindo da repetição de informação para a produção de saber. Em terceiro lugar parece-me importante que a escola seja um sítio onde se ganha o gosto pela política, isto é, onde se vive a democracia, se aprende a ser intolerante com as injustiças e a exercer o direito à palavra.
 
 

A escola e a «nova» questão social

    A reconfiguração actual da «questão social» assume a forma de uma fractura dualista entre os que estão integrados e os que estão excluídos, que veio substituir-se à unidade conflitual que nas sociedades industriais modernas, tem oposto o trabalho ao capital. É esta «metamorfose» da questão social que conduz a que em países europeus, como a França ou Portugal, a imigração deixe de ser encarada como um fenómeno de natureza económica, para passar a ser percepcionada como um fenómeno étnico. É no contexto da «nova» questão social e dos efeitos cruzados do acréscimo de qualificações, crescente desvalorização dos diplomas, acréscimo das desigualdades e do desemprego estrutural de massas, que é preciso inserir e compreender a produção de exclusão relativa pelo sistema escolar, como algo que lhe é constitutivo. Os problemas escolares, particularmente graves, identificados na periferia urbana das grandes metrópoles (como é o caso da Grande Lisboa) são a expressão do agravamento da crise da instituição escolar, pelo efeito conjugado da crise urbana e da «questão» da diversidade étnica.

    Em relação a algumas das zonas consideradas mais «difíceis» do ponto de vista social e educativo têm vindo a ser desenvolvidas algumas iniciativas com a preocupação quer de introduzir estratégias de carácter paliativo, quer de discriminação positiva na atribuição de recursos. Sem colocar em causa a positiva intencionalidade dessas medidas e sem querer antecipar-me a uma análise rigorosa dos seus efeitos parece-me pertinente chamar a atenção para efeitos potencialmente perversos de políticas que, a pretexto de um «tratamento especial», podem vir a introduzir formas «doces» de exclusão. Estou a pensar numa medida particularmente controversa que consiste na criação de «currículos alternativos», «medida de excepção» para grupos de alunos com «problemas comportamentais e de aprendizagem». Na impossibilidade de desenvolver minimamente este tema, opto por deixar, sem mais comentários, o registo da informação que colhi numa publicação oficial do Ministério da Educação.

    A publicação Contactos. Currículos Alternativos, (n.º 1, 1997) editada pelo Departamento de Educação Básica, apresenta e divulga experiências consideradas como particularmente positivas susceptíveis de terem um efeito de exemplo. Uma delas diz respeito à apresentação da experiência de um currículo alternativo, desenvolvido numa Escola Básica 2.3 da região Centro. O público em causa é definido pelas seguintes características «dificuldades na expressão e compreensão oral e escrita; dificuldades no raciocínio lógico; falta de empenhamento, autonomia e hábitos de trabalho», tendo sido identificado um grupo de alunos «com grande desinteresse, apatia e predisposição para o abandono escolar precoce» em cuja intenção o Conselho de Turma organizou um currículo alternativo assim descrito:

    Por conseguinte, em virtude de o plano curricular vigente para o 8.º ano não ser adequado às características e interesses dos alunos em questão, o mesmo foi alterado na sua carga horária e disciplinar, tendo sido introduzida uma componente Pré-profissional nas áreas de Serralharia, Mecânica Auto, Introdução à Informática, Indústria de Candeeiros, Pintura Auto e Bate-Chapas Auto.

    Assim, foi suprimida a disciplina de Ciências Físico-Químicas, devido ao facto de esta ser uma disciplina de iniciação no 8.º ano e de serem necessárias dez horas para o funcionamento Pré-profissional. Foi aumentada uma hora nas disciplinas de Educação Visual e Educação Física, em virtude de estas disciplinas serem de cariz mais prático. Nas restantes disciplinas, foi reduzida uma hora na carga horária semanal.