A mitificação da Tecnologia

Clara Barros Queiroz
Universidade de Lisboa
 
 

    Tem sido afirmado repetidamente que o objectivo primário da educação é incitar a criança a criar--se a si própria, a sair de si mesma para poder ser um sujeito que escolhe o seu percurso e não um objecto que assiste submisso à sua própria produção. Em suma, a tornar-se num adulto participante na construção da sociedade. Bachelard formulou mesmo o voto de que a Sociedade fosse feita para a Escola e de que a Escola não fosse feita para a Sociedade.

    Assistimos, porém, ao caminho vertiginoso que afasta a Escola daqueles objectivos. Se bem que o alvo nem sempre tenha sido atingido, espera-se, cada vez mais, da Escola a sua eficácia na preparação de técnicos aptos a desempenhar o papel que lhes está reservado na sociedade tecnocrática. Um tal desejo de inserção na «sociedade que temos» ignora o essencial e vai de mãos dadas com um ensino que reduz o estudo da ciência a uma série de fórmulas úteis ou o estudo da filosofia a uma enumeração de teorias.

    A Escola tem, geralmente, rejeitado um tipo de ensino alternativo que vise o entendimento do processo científico/tecnológico, de como, em cada momento, ele se articula com a cultura, com a história e com o pensamento filosófico, das interacções que se estabelecem entre ciência, tecnologia e sociedade ou do modo como as primeiras podem influenciar e moldar a última.

    Fala-se de cultura científica do cidadão, de ciência viva, implementam-se semanas da ciência. Creio que tais atitudes e iniciativas não têm contribuído muito para um melhor entendimento do que é a ciência, com vista a um possível diálogo entre o perito (cientista ou não) e o cidadão. Sem um tal diálogo - em que todos sejam ouvidos e queiram ouvir -, por exemplo no campo da saúde, o tão falado «consentimento informado» é pura ficção. Julgo que o «espectáculo da ciência» - mais ou menos esplendoroso - não tem conseguido muito mais do que uma renovada propaganda das áreas de ensino das ciências e das tecnologias numa sociedade de competitividade, em que as universidades são avaliadas e financiadas, em grande parte, pelo número de estudantes que conseguem atrair.

    Os escassos minutos atribuídos para tratar de um assunto tão vasto como «A Educação e o Futuro» impõem-me a restrição a um único problema e que o faça de modo sintético. Escolhi chamar a atenção para aquilo que poderíamos designar tecnologismo, porque ele perpassa todas as instituições sociais - Saúde, Mass Media, Política, Escola. Que os meus colegas dos vários graus de ensino, que se debatem com tantos e tão graves problemas de falta de meios, se não riam de mim e, acima de tudo, me não julguem traidora. Na verdade, não teria cabimento afirmar que os meios tecnológicos de que os vários graus de ensino dispõem são excessivos.

    Quando falo de tecnologismo (parente bastante próximo do cientismo) refiro-me à crença na tecnologia dos mais variados tipos como meio de solução para os mais variados e complexos problemas. Vou mais longe e diria que a tecnologia, quando encarada de uma forma acrítica, deificada, pode não só deixar graves problemas por resolver mas criar outros. (Penso que esta afirmação não carece já de demonstração.) Curiosamente, para a resolução desses problemas são sempre apontados novos meios tecnológicos pré-existentes ou a desenvolver. Assim, a tecnologia alimenta-se a si própria e apresenta-se-nos como um aberrante organismo de crescimento descontrolado e ilimitado.

    «Para que serve aprender?», «o que é desejável ensinar?» são perguntas que, geralmente, ficam sem resposta. Em seu lugar apontam--se meios tecnológicos de ensino. Já se julgaram imprescindíveis, na sala de aula, os circuitos internos de televisão juntamente com todo o arsenal audiovisual; hoje parecem imprescindíveis os computadores. Exactamente com que finalidade e que efeitos resultarão da introdução dessas tecnologias não se sabe muito bem. Ignora-se que já alguém mostrou que «o medium é a mensagem» 1.

    E não me refiro apenas a máquinas; refiro-me também às tecnologias que a Sociologia, a Psicologia, as Ciências da Natureza, da Saúde, da Comunicação oferecem e cuja inocência varia, frequentemente, na razão inversa do seu esplendor. Elas podem situar--se na aparente limpidez dos números conseguidos por meio das tecnologias de estudo de mercados, de audiências, de taxas de inflação, de desemprego, de sucesso e insucesso escolar ou de ratios ideais professor/aluno 2. Por vezes, os dados assim obtidos são simplesmente redundantes por nos virem informar de factos que, através da mera observação, já conhecíamos; outras vezes, esses dados são destituídos de significado - embora o tratamento tenha sido científico - porque nada sabemos acerca do modo como foram obtidos, das perguntas que desencadearam as respostas, de qual o conhecimento prévio do assunto que os inquiridos possuíam, nem dos critérios e padrões utilizados para alcançar as conclusões. Sobre os perigos da utilização descuidada da estatística, conta-nos Neil Postman a divertida história daquele cientista que se afogou quando tentava atravessar a vau um rio com uma profundidade média de um metro e vinte.

    A mistificação atinge, porém, níveis elevados e inquietantes quando debates televisivos sobre, por exemplo, o problema do desajustamento escolar das crianças «superdotadas» conseguem prender audiências. Na verdade, nunca se fica a saber exactamente em que consiste o fenómeno da «superdotação», o que é, afinal, a tecnologia que permite medir o Q. I., qual a validade dessa tecnologia, nem que fins ela tem servido no decurso da sua já longa história. Tudo somado, o deslumbramento que a tecnologia exerce sobre o telespectador médio foi reforçado, a distância respeitosa perante o perito que a domina foi mantida e nada mais ficou do que a vaga e irónica amargura de que, tal como no totoloto, os filhos superdotados só acontecem aos outros.
 
    A minha experiência profissional na Universidade posiciona-me numa situação particular. Pertenço ao grupo de instituições que recebe os estudantes preparados pelos ensinos básico e secundário e que, por seu turno, prepara uma boa parte desses estudantes para serem devolvidos àqueles graus de ensino de onde provinham: mas, agora, já como adultos, formadores de uma nova geração de crianças. Este ciclo, que alguns, ironicamente, apelidaram de «incestuoso», perpetua vícios de forma, mentalidades, valores, mundivisões, se não ocorrerem rupturas nalguns pontos.

    É certo que o ensino pós-secundário, além de professores dos ensinos básico e secundário, lança na sociedade outros grupos profissionais: cientistas, médicos, advogados, economistas, gestores, industriais e, também (a agravar a situação de incesto), professores universitários - alguns dos quais poderão vir a ser políticos; mas isso em nada altera o círculo vicioso acima apontado. Pelo contrário, reforça-o, uma vez que as várias instituições e os variados actores sociais tendem a pedir à Escola respostas e atitudes conformes com o modelo que conheceram, por vezes mesmo quando não têm da escola mais do que uma má recordação.

    Pessoalmente, gostaria que dos ensinos básico e secundário saíssem jovens que, para além de saberem ler, escrever e contar, tivessem adquirido a prática de pensar. Numa palavra, que tivessem adquirido uma «tecnologia» que os ajudasse a participar na subversão do sistema 3.
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 



   

1) O desenvolvimento desta ideia de Marshall McLuhan poderia tomar muitas formas; recorro, por exemplo, a Neil Postman que passo a citar: «A oralidade salienta a aprendizagem em grupo, a cooperação e um sentido de responsabilidade social?» e o mesmo se poderia dizer do ensino experimental em grupo na sala de aula ou em laboratório. «A imprensa salienta a aprendizagem individualizada, a competição e a autonomia pessoal. Ao longo de quatrocentos anos, os professores, embora enfatizassem a imprensa, permitiram que a oralidade ocupasse o seu lugar na sala de aula e alcançaram, portanto, uma espécie de paz pedagógica entre estas duas formas de aprendizagem, pelo que o que é valioso em cada uma pode ser maximizado. Agora, chega o computador, acenando de novo com o estandarte do ensino privado e da resolução individual de problemas. O uso alargado do computador na sala de aula derrotará de uma vez por todas as reivindicações do discurso comunal? O computador elevará o egocentrismo ao estatuto de virtude? [?] a competição tecnológica desencadeia a guerra total, o que significa que não é possível conter os efeitos de uma nova tecnologia numa esfera limitada de actividade humana. Se esta metáfora apresenta a questão com demasiada brutalidade, podemos tentar ser um pouco mais gentis e suaves: a mudança tecnológica não é nem aditiva nem subtractiva, é ecológica. Utilizo ?ecológica? no mesmo sentido em que a palavra é usada pelos cientistas ambientalistas. Uma mudança significativa gera mudança total.»

2) Por oposição à crítica que faço à atracção provinciana pelo tecnologismo, que passa fronteiras e ganha terreno em Portugal, seria precipitado entender-se que defendo um ensino eminentemente livresco, logoteórico (se bem que muito preze os livros e o conhecimento teórico). O que proponho é que se recorra às tecnologias disponíveis sempre que se revelem os meios mais adequados para atingir objectivos previamente definidos, que se tenha em conta que as tecnologias não são neutras e, assim, podem comprometer os objectivos desejados, mas, sobretudo, que se não caia no logro de as apresentar (e de nelas acreditar) como objectivos e não como meios.

3) Não seria descabido pedir esse objectivo também ao ensino superior.