A agricultura nos processos
A agricultura nos processos

de desenvolvimento

João Ferreira de Almeida

Sociólogo

Professor catedrático do ISCTE


 



1. Introdução

No período posterior à 2.ª Guerra Mundial, o crescimento económico e o desenvolvimento social nos países directamente envolvidos no conflito fizeram acreditar, generalizadamente, que o crescimento e desenvolvimento se harmonizavam e se prolongariam de forma continuada.

Esse optimismo, partilhado e reforçado pelas análises dos economistas e de outros cientistas sociais, começou a empalidecer a partir dos anos 70.

Agora, nesta segunda metade dos anos 90, já dificilmente se pode ignorar, não apenas o fosso crescente entre grupos de nações na geografia mundial, como também a dificuldade revelada pelos próprios países mais desenvolvidos em superar a situação negativa dos seus «terceiros mundos interiores».

Precisamos, claramente, de diagnósticos mais rigorosos e de intervenções mais informadas e eficazes. Diagnósticos e remédios que, por um tempo puderam ter a arrogância das certezas, carecem hoje de revisão urgente.

Um dos sintomas de que o clima está a mudar - refiro-me ao clima teórico - é o surgimento, ainda relativamente recente, do livro sobre o crescimento, a competitividade e o emprego, produzido no âmbito na Comunidade Europeia.

A afirmação de base aí feita, como se sabe, é a seguinte: têm sido utilizados insuficientemente, quer do ponto de vista da qualidade, querda quantidade, os recursos de trabalho; em contrapartida usam-se excessivamente os recursos naturais e ambientais, incluindo as fontes energéticas disponíveis.

Falar do uso insuficiente do trabalho é o modo elegante de dizer desemprego e sub-emprego. O «emagrecimento» das empresas, que num ou noutro caso se pode justificar ao nível de cada unidade económica, traduz-se globalmente no aumento dos custos indirectos do trabalho e anula ganhos de produtividade. Degradam-se os sistemas de segurança social, agravam-se desigualdades e exclusões, perde-se a centralidade identitária do trabalho.

Enquanto, por outro lado, não forem incorporados nos preços de mercado os custos escondidos da agressão ambiental, dificilmente se atingirá também o objectivo do crescimento sustentável e a generalização das tecnologias limpas.

Todos os indicadores - desde os que se referem ao desemprego àqueles que respeitam à distribuição dos rendimentos e da riqueza das famílias - mostram que em Portugal, de 1990 a 1995, se agravaram distâncias e desigualdades sociais, se intensificou e se alargou a exclusão.

Quando se tem em conta o Território, também o panorama é pouco animador. Apesar de alguns efeitos e contágios positivos, mantêm-se ou acentuam-se as distâncias entre regiões. O interior do País, globalmente, continua a ter baixa vitalidade, continua a afastar--se do litoral mais desenvolvido, perde população, esvazia-se de oportunidades.

A primeira mensagem que gostaria de deixar, assim, é a de que se torna necessário reavaliar instrumentos de diagnóstico e de intervenção, ir construindo novos modelos de desenvolvimento. Temos sobretudo de aprender com o que não resulta e também com o que funciona, na tentativa de isolar factores de eficiência que possam ser criticamente transferidos - de forma experimental e adaptativa - para novos contextos.
 
 

2. Funções do espaço rural

O interior está sobretudo marcado por uma ruralidade que era outrora a regra no conjunto do país, mas que progressivamente foi sendo afastada do litoral. É também no interior que se encontra o essencial de uma agricultura raras vezes produtiva e modernizada.

Sem que se possa falar de uma inevitabilidade histórica, os espaços rurais têm-se relacionado na modernidade com outros espaços - urbanos, industriais - de uma forma dependente, assimétrica. É essa dependência que contribui para explicar as razões por que uma lógica produtiva essencial desses espaços - a lógica agrícola - tende a ser sacrificada nos processos económicos e sociais contemporâneos.

Tenho designado por funções externas do espaço rural esses modos de relacionamento. Enunciarei cinco dessas funções, que considero úteis para entender as evoluções mencionadas. Trata-se aqui apenas de alusões quase telegráficas.

A primeira função externa diz respeito à reserva, fornecimento e reabsorção de força de trabalho, de mão-de-obra.

O rural, com as suas tradicionais altas natalidades - elas próprias ligadas à lógica produtiva e social da agricultura - tem alimentado os outros sectores de actividade, industriais e de serviços.

Fá-lo por meio do êxodo rural e agrícola, por migrações e emigrações «definitivas». Mas fá-lo também, e cada vez mais em diversas regiões do país, através de migrações pendulares. Conservando-se a residência rural, parte das famílias deslocam-se para trabalhar em geral de forma assalariada, enquanto outra parte vai continuando a trabalhar a terra própria ou arrendada.

Se hoje a função de fornecimento de força de trabalho a partir da agricultura se encontra globalmente diminuída por virtude das quebras acentuadas de natalidade no mundo rural, as estatísticas mostram que vai crescendo, em todo o caso, a agricultura a tempo parcial e o plurirendimento de base agrícola.

E não se esgotou inteiramente ainda, por outro lado, a capacidade que o mundo rural e a agricultura familiar têm de reabsorver gente que o desemprego ou factores de outra natureza, expulsam da vida urbana.

Ainda que diminuída, a agricultura familiar continua a ter disponibilidade para «solidariedades horizontais» que funcionam como almofadas nas crises.

Uma segunda função externa do espaço rural, na qual nos não deteremos, é a de fornecimento de bens alimentares.

Se a agricultura tem sido a principal actividade nesse espaço há lugar, evidentemente, para acumulação de capital a montante e a juzante do processo produtivo agrícola.

Trata-se aqui de uma análise de tipo económico, e a saúde da agricultura pode vaticinar-se, por exemplo, a partir da evolução relativa do valor dos produtos agrícolas e dos respectivos factores de produção.

Quebra dos preços reais dos produtos de 1983 a 1992, preços dos factores superiores aos comunitários, taxas de juro muito elevadas, circuitos inadequados de distribuição, deficiências institucionais variadas, tudo ou quase tudo tem contribuído, nos tempos recentes, para a perda de atractividade da agricultura como actividade económica.

Uma terceira função externa do espaço rural é a reserva de espaço físico.

Sabe-se que a agricultura é grande consumidora de espaço. Mas ela trava um combate desigual com os processos industriais e terciários. Cidades-dormitório, zonas de tempos livres, estabelecimentos industriais e turísticos variados, são geralmente rivais imbatíveis da agricultura, à qual vão conquistando e digerindo progressivamente parcelas. A industrialização, a urbanização e a terciarização tendem, com efeito, a deslocar para o interior, a isolar e a empobrecer actividades agrícolas que costumavam beneficiar de rendas de localização. E esses processos têm vindo a acelerar-se, recentemente, no país.

Uma quarta função do espaço rural diz respeito à protecção e à reprodução ambiental.

A agricultura outrora dominante em vastas regiões do território, que obedecia a um regime de policultura e pecuária, implicava uma espécie de automatismo de protecção ambiental.

Era, sem dúvida, uma agricultura ecologicamente sustentável: limpavam-se pinhais e tapadas por força da lógica da própria exploração; vigiava-se a floresta pela presença e actividade do colectivo aldeão; alimentava-se a terra pelo seu uso produtivo controlado.

Factores internacionais e internos têm vindo a confirmar uma dupla evolução em sentidos opostos, de que os extremos são, por um lado, o abandono, por inviabilização económica, e por outro, a sobreintensificação, para manter competitividade.

Ironicamente, ambos os extremos geram agressão ambiental. A de-sertificação, a erosão de solos, o abuso de fertilizantes e fármacos químicos, a extensão da floresta rápida, os incêndios, a poluição da água e do ar, a redução da biodiversidade, constituem hoje alguns dos ingredientes dos crescentes problemas ambientais.

Seria desastroso que essas tendências se prolongassem. Por isso as medidas agro-ambientais previstas nos Regulamentos Comunitários de 1992 prevêem a extensificação, a conservação de sistemas tradicionais, a formação profissional adequada. Por isso na recente Conferência Europeia de Cork, em Novembro de 1996, se produziu uma declaração sobre o desenvolvimento rural na União Europeia em que se insiste no carácter único do tecido sócio-económico e cultural do mundo rural, se afirma a possibilidade de ele ser competitivo e se lhe atribui a função de intermediário entre a sociedade e o meio ambiente.

Uma quinta e última função externa do espaço rural é de natureza político-ideológica.

Esses espaços são muito heterogéneos, e ainda mais se se pensar em temporalidades relativamente alargadas. Mas em termos muito globais pode admitir-se que as classes rurais, e em particular as fracções camponesas têm desempenhado uma função de estabilização política e social.

Não se enganam inteiramente os discursos urbanos sobre a ruralidade ao falarem de «reserva moral» a opor às «classes perigosas». Os agricultores, a partir do seu modo de vida próprio, tendiam também a interiorizar e a praticar boa parte dessas «virtudes».

Progressivamente, contudo, à medida que se iam alterando os contextos e as lógicas de vida nos campos iam surgindo novos valores, induzidos também por novas socializações para que contribuíam a escola e os meios de comunicação social.

Múltiplos sintomas e manifestações acompanham, no sistema de valores partilhados, essa desruralização do rural. Entre elas está a pró

pria valorização do sistema de ensino, dantes evitado tanto quanto possível, por inútil e pernicioso. Mas estão muitos outros e variados valores, como a desvalorização simbólica generalizada da própria profissão agrícola, o surgimento de novas éticas de natalidade, a notória diferença no relacionamento com a poupança.

Os espaços rurais nunca foram imóveis.

É claro, no entanto, que no plano de valores e de comportamentos se assiste hoje, em Portugal, a evoluções porventura mais rápidas do que em qualquer outro período da nossa história recente.
 
 

3. Políticas e protagonistas

O mundo rural é um sistema aberto, inter-relacionado, não é um resíduo preservável ou descartável.

Demasiado tempo se confiou em prioridades urbano-industriais e em políticas meramente sectoriais. A aposta praticamente exclusiva em sectores-chave, o crescimento em condições de desarticulação social, gerou desigualdades agravadas e desequilíbrios regionais.

As políticas de desenvolvimento rural devem combinar estratégias globais com políticas territorialmente adaptadas e específicas. E o objectivo tem de ser o de compatibilizar a eficiência económica, a coesão social e a qualidade do ambiente.

Agora que o mundo rural e a sua componente agrícola parecem estar decididamente de volta à agenda política, vale a pena relembrar duas - entre outras - boas razões para que a agricultura não seja pensada apenas em termos de competitividade e de vantagens comparativas.

Por um lado ela, constitui uma reserva estratégica de produção irrenunciável em colectivos sociais de uma certa dimensão.

Por outro, a agricultura tem de continuar a cumprir - embora com lógicas e protagonistas parcialmente novos - a velha função de proteger e reproduzir a natureza e a paisagem.

As sociedades rurais já são multifuncionais e terão de acentuar ainda essa característica.

Nos seus espaços, a actividade agrícola há-de conviver cada vez mais com outras actividades económicas. A diversidade e as complementaridades geradas nesse convívio serão mesmo condição para suster o aprofundamento de desvantagens entre regiões e para evitar a expulsão e o esvaziamento populacional.

Esquematicamente pode afirmar-se que será verosímil e desejável que coexistam dois tipos de agricultura, com dois tipos diferenciados de estratégia.

Uma agricultura, dirigida por empresários, continuará a modernizar--se, a procurar inovar, a buscar especializações produtivas. Terá de ser capitalizada e rentável e funcionará de acordo com os padrões da racionalidade técnico-económica que os livros ensinam. Não poderá perder de vista, em todo o caso, a «amizade ao ambiente», já incipientemente premiada por ajudas comunitárias, que o Comissário Europeu Franz Fischler promete aumentar.

Uma outra agricultura, de incidência predominantemente familiar, desenvolverá racionalidades pluridimensionais, horizontais, diversificadas. Ela gere um conjunto de heranças culturais e paisagísticas que nos são indispensáveis.

Os seus protagonistas actuais e potenciais serão em parte resultado de reabsorções originadas no desemprego urbano ou na sua ameaça, serão alguns dos emigrantes que voltam a Portugal ainda em idade activa, serão muitos dos agricultores a tempo parcial que dividem as capacidades de trabalho familiar entre as suas explorações e o trabalho exterior à agricultura.

É certo que mesmo a agricultura de base familiar exige hoje saberes que estão para além das competências propriamente técnicas. Lidar com todas as burocracias, ou com as novas tecnologias em expansão, por exemplo, implicará aprendizagens e formações específicas desses novos protagonistas.

Mas é também verdade que boa parte deles estarão já parcialmente preparados, uma vez que, através dos seus trajectos e adaptabilidades variadas, eles ganharam saberes e competências novas que podem utilmente juntar às que transportaram do seu próprio passado e do enquadramento familiar de origem.

Se, em certas condições, e para além da dimensão directamente produtiva - que não pode ser subestimada - eles puderem contribuir para a organização equilibrada do espaço e para a preservação do ambiente, então esses agricultores prestam um importante serviço à colectividade.

Essa dimensão de serviço, essa «jardinagem da natureza», tem de se tornar visível e reconhecida, quer do ponto de vista material, quer do ponto de vista simbólico.

Reconhecendo à agricultura o seu insubstituível papel, valorizando e formando novos protagonistas e novas parcerias de desenvolvimento local, combinando actividades e processos económicos capazes de sinergias, os espaços interiores poderão suster a desvitalização que os vem aceleradamente afectando.