Educação
Educação

e perspectivas de desenvolvimento

do «Interior»

Rui Canário

Professor da Universidade de Lisboa

Presidente do Conselho Científico do Instituto das Comunidades Educativas


 


Como promover o desenvolvimento das zonas rurais do interior? Esta interrogação (que corresponde a uma preocupação justa) tem subjacente um pressuposto que não é questionado: o modelo de desenvolvimento (implicitamente considerado como bom) que está na base da comparação entre um litoral urbano «desenvolvido» e um interior rural não desenvolvido e que, desejavelmente, se deveria «aproximar» dos padrões que caracterizam o primeiro. Ainda não há muitos anos, no nosso país, a ausência de desenvolvimento nas zonas rurais, podia ser avaliada, entre outros indicadores, pela ausência de infra-estruturas básicas, como por exemplo a água canalizada. Hoje, felizmente, a maioria das vilas e aldeias dispõe desse tipo de equipamento. Porém, o que pensar do facto de uma sede de concelho (Golegã), situada numa das zonas agrícolas mais ricas do país, estar privada desde há um ano de água potável devido ao uso (e principalmente ao abuso) de fertilizantes na cultura intensiva do milho? (Público, 2 de Julho de 1997).

É um exemplo que ilustra bem os limites dos conceitos de progresso e desenvolvimento ainda dominantes. Questioná-los criticamente constitui uma condição necessária para tentar contribuir para elucidar o papel que a educação pode desempenhar nos processos de desenvolvimento das zonas rurais. É no sentido de contribuir para esse debate que organizei uma intervenção breve, estruturada em torno de oito pontos principais.

O problema

Quando se pensa e se discute o desenvolvimento do interior, estão presentes duas ideias, nem sempre muito explicitadas. A primeira é a de que o interior, não desenvolvido, constitui «o problema»; a segunda corresponde a equacionar a solução com base na reprodução dos modelos e padrões que caracterizam o desenvolvimento urbano. Ambas as ideias me parecem erradas e, por isso, o primeiro esforço a fazer reside, a meu ver, na reequacionação do problema.

«O que é que está a acontecer à pobreza? O que é que está a acontecer ao desemprego? O que é que está a acontecer à desigualdade?? Se um ou dois destes problemas centrais estivessem a piorar, especialmente se estivessem os três a piorar, seria estranho chamar ao resultado "desenvolvimento", mesmo que o rendimento per capita duplicasse». Estas questões (Friedman, 1996) foram colocadas há quase trinta anos por um estudioso do desenvolvimento, mas são nos dias de hoje de uma acrescida e perturbante actualidade. O crescente, e, para alguns, catastrófico agravamento dos problemas sociais e ambientais, à escala do planeta, traduz uma falência do modelo desenvolvimentista que configura, se levado às últimas consequências, uma forma de «suicídio colectivo» que põe em causa a própria sobrevivência da humanidade. Ora esta crise é essencialmente uma crise do mundo urbano e industrial (edificado com base nos valores mercantis) e não uma crise do mundo rural tradicional que tende, aliás, a ser pura e simplesmente eliminado. Com efeito, a maioria da espécie humana vive já em grandes metrópoles urbanas, cujo desenvolvimento se acelerou na segunda metade deste século e continuará a acentuar-se no futuro. Percebido durante muito tempo como um sinal de inequívoco «progresso» o crescimento urbano cedo deu lugar à inquietude. Os grandes problemas com que estamos confrontados são o resultado de uma crise da civilização urbana, no quadro da qual devem ser interpretados os problemas da educação e, nomeadamente, a crise da instituição escolar (Henriot-Van Zanten, 1991).

Nesta perspectiva, os problemas do interior são a consequência das «soluções» adoptadas no litoral urbano. A desertificação tendencial do

mundo rural e o consequente crescimento das metrópoles urbanas, na medida em que aumenta a quantidade e o volume das transacções monetárias faz crescer o PIB, ainda considerado como o principal indicador do desenvolvimento. As assimetrias de desenvolvimento, quer à escala de um país, de uma zona transnacional ou do planeta são parte integrante do próprio modelo de desenvolvimento que, baseando-se na competição e no lucro, não pode ser igualitário. A ideia de um desenvolvimento uniforme à escala mundial que permitiria o alinhamento dos países e regiões pobres pelos padrões de desenvolvimento das zonas ricas não é possível, nem desejável. Não é desejável porque tal significaria o agravamento drástico dos problemas ambientais. Não é possível porque os recursos naturais são finitos e o desenvolvimento na sua versão economicista tende a agravar todas as desigualdades, inclusive no seio das nações ricas altamente industrializadas através da emergência de um «quarto mundo», associado a fenómenos de dualização e exclusão social.

O mito da «recuperação do atraso» (por parte de países ou regiões pobres) implicaria, no quadro da racionalidade económica mercantil resolver paradoxos, como por exemplo o de conseguir que todos os países tenham um saldo positivo na relação entre exportações e importações. É claro que não há, relativamente às zonas rurais, um problema de «atraso» mas sim um problema de modelo de desenvolvimento que é global e afecta, em simultâneo, todas as regiões.
 
 

Os recursos

O discurso mais característico sobre os problemas das regiões rurais do interior é um discurso, regra geral, centrado sobre as carências. Isto é, toda a ideia de desenvolvimento é associada à existência de um acréscimo de recursos, nomeadamente de carácter financeiro. Esta perspectiva tende a transferir para entidades exógenas a responsabilidade de promover o desenvolvimento e favorece lógicas de dependência, quando não de fatalismo. O discurso centrado sobre as carências, que é comum quer às instâncias do centro quer às das regiões periféricas, ditas não desenvolvidas, pode assumir duas facetas, aparentemente contraditórias mas, de facto, indissociavelmente complementares:

A primeira corresponde ao desenvolvimento da chamada mentalidade do «assistido» que no nosso passado recente tem sido fortemente favorecida pela transferência de importantes massas monetárias através das ajudas estruturais provindas da Comunidade Europeia. Muitos portugueses tendem a profissionalizar-se como especialistas na obtenção de subsídios. A sua justificação exige (ou pensa-se que exige) a amplificação das maleitas e das desgraças.

A segunda faceta é a da estigmatização e da leitura «pela negativa», por parte das entidades financiadoras e promotoras das ajudas ao desenvolvimento, em relação aos seus destinatários, quer se trate de grupos sociais, instituições, comunidades ou regiões. No campo da educação, o efeito perverso deste tipo de caracterização pela negativa está presente em programas destinados, em princípio, a corrigir desigualdades, traduzindo-se por reacções negativas da parte das entidades ou zonas escolhidas para serem «ajudadas». É o caso, quer em França, quer em Portugal de zonas rurais que não aceitam de bom grado ser classificadas como zonas de «intervenção prioritária», é igualmente o caso de situações de conflito, tendo como base uma apreciação negativa por parte de interventores externos de que é característico o caso do conflito de Courel, opondo a população local às professoras.

Ora, tal como nenhuma acção educativa é pertinente se for fundada numa visão negativa do sujeito, também os processos de desenvolvimento, que cada vez mais deverão corresponder a processos educativos, não podem ser vividos na negatividade. Em desenvolvimento e em educação os principais recursos são, obviamente, as pessoas. Onde há pessoas a acção educativa é possível e a compreensão e transformação da realidade social pode tornar-se obra colectiva, baseada nos princípios da endogeneidade, da globalidade e da participação.
 
 

Uma cultura de desenvolvimento

A acção educativa tem um importante contributo a dar aos processos de desenvolvimento global, integrado, qualitativo, das regiões rurais. Não, fundamentalmente, na perspectiva de a educação constituir um pré-requisito para o desenvolvimento, mas sim na perspectiva de o processo de desenvolvimento coincidir com um processo colectivo de aprendizagem.

As zonas rurais de hoje correspondem a «concentrados de problemas» que convergem para situações de colapso social e económico.
A sobrevivência destas «ilhas de irracionalidade» apresenta-se como uma questão crucial em termos civilizacionais na medida em que, como afirma Alberto de Melo (1991, pp. 150-151), elas aparecem, por um lado, como «bastiões de resistência contra a tendência corrente de massificação, de normalização e de unidimensionalidade» e, por outro lado, como «laboratórios virtuais de experiências alternativas, de natureza social e económica, capazes de associar todas as dimensões humanas e societais do desenvolvimento». A sobrevivência do mundo rural e dos seus habitantes como os nossos «guardadores de paisagens» configura-se não como a preservação do passado, mas sim como a salvaguarda do futuro.

A inversão do movimento de colapso que afecta as zonas rurais tradicionais não é fácil: a perda de identidade, a descrença, o conservadorismo, a baixa auto-estima colectiva constituem o reverso do isolamento, das perdas demográficas, do encerramento de serviços públicos, da ausência de perspectivas de emprego. Esta inversão só pode ter êxito se contar com o envolvimento e a participação dos interessados, a partir da construção de uma visão positiva sobre as suas potencialidades e sobre as suas perspectivas de futuro que dê fundamento a tomadas de iniciativa. É nesta perspectiva que aparece como decisiva (ainda segundo Alberto de Melo) a emergência de uma «cultura de desenvolvimento» em cuja indução terá papel fundamental a acção educativa.

Esta acção educativa, à semelhança do que se pretende sejam os processos de desenvolvimento, perspectiva-se como uma acção educativa globalizada, capaz de colocar o enfoque nos processos de aprendizagem, valorizando as vivências experienciais, a interacção colectiva e encarando a formação como um processo de auto-construção, por parte dos próprios sujeitos. Um segundo nível de globalização consisteem potenciar a diversidade de modalidades de aprendizagem, combinando modos de trabalho autoformativos com modalidades de heteroformação (aprendizagens com pares, aprendizagens escolares) e com dimensões de ecoformação (influência do meio ambiente em que as pessoas estão inseridas). Um terceiro nível de globalização, consiste na articulação fecunda entre diferentes graus de formalização da acção educativa.

Habitualmente subestimada, a educação não formal e informal, em que os efeitos importam mais que as intenções, constituem a matriz fundamental das nossas aprendizagens mais significativas. Daí a importância estratégica da acção educativa não formalizada, nomeadamente da animação sócio-cultural, no reforço do potencial educativo de uma região e na criação da tal «cultura de desenvolvimento». Nesta perspectiva torna-se visível não apenas a importância das instituições educativas não escolares (museus, bibliotecas públicas, associações culturais, etc.), como também a dimensão educativa de instituições cuja vocação fundamental não é essa (autarquias, empresas, etc.). O investimento na educação não formal e informal aparece, assim, como uma dimensão que pode ser decisiva na indução e consolidação de uma dinâmica local de desenvolvimento integrado.

Escolarização e desenvolvimento

Durante os «trinta anos gloriosos» que marcaram o pós-guerra, verificou-se um crescimento exponencial da oferta educativa escolar, no quadro das políticas desenvolvimentistas da época (anos 50 e 60).

O optimismo relativamente à escola fundamentava-se na ideia, sustentada pela teoria do capital humano, de que a um acréscimo de escolarização corresponderia um acréscimo de desenvolvimento, traduzido num aumento da riqueza produzida. Por outro lado, a democratização do acesso à escola (a todos os níveis), tendo como referência o princípio da igualdade de oportunidades educativas, conduzia a encarar a instituição escolar, regida por lógicas meritocráticas, como um instrumento de maior justiça e igualdade social. Estas expectativas positivas

não se concretizaram e a euforia cedo deu lugar ao desencanto. Não há dúvidas de que nas nossas sociedades, cada vez mais escolarizadas, aumentou significativamente a produção de riqueza, mas é igualmente verdade que se verifica um acréscimo das desigualdades, o crescimento da «velha» e da «nova pobreza», instalou-se o desemprego estrutural e de massas e ou o crescimento de formas precárias de emprego.

É claro que, neste quadro negro de problemas, a responsabilidade não pode, nem deve, ser atribuída à escolarização que é, no essencial, um fenómeno positivo. Este balanço retrospectivo pode e deve ajudar--nos a reconhecer os limites de uma expansão da oferta educativa centrada no crescimento linear da oferta escolar, subestimando outras modalidades de acção educativa e contribuindo, pelas expectativas postas na escola e pela enfatização do valor de troca dos diplomas escolares, para a erosão e a crise actual da instituição escolar. Quer isto dizer que o desenvolvimento educativo das zonas rurais do interior não passa, necessariamente, pela aplicação da receita desenvolvimentista dos anos 60 («mais escola»), com os resultados parcialmente frustrantes que se conhecem. Acresce que esse tipo de desenvolvimento educativo é coerente com os processos de crescimento económico que estão na base das nossas dificuldades sociais e ambientais de hoje.

No nosso país são ainda muito baixos os níveis de qualificação escolar da população: 74% da população tem como nível máximo de escolarização seis anos da escolaridade básica, um quinto dos jovens não conclui a escolaridade obrigatória de nove anos, a educação de infância abrange apenas cerca de metade do universo possível, apenas 5% da população possui um nível superior de escolarização. Este défice global de qualificações escolares é, naturalmente, mais acentuado nas regiões rurais. Justifica-se, portanto, que ao nível do país, em que se verificou um atraso histórico na construção de uma «escola de massas», e em particular nas regiões mais deprimidas do interior, seja feito um esforço e um investimento na promoção da oferta educativa escolar, quer ao nível da educação de infância, quer da escolaridade básica, quer do ensino superior que pode ter um papel importante no desenvolvimento regional e local.

Importa que esse crescimento da oferta educativa escolar, necessário e inevitável, não reproduza as políticas de mera expansão linear, favorecedoras do crescimento do mercado educativo e da massa de «consumidores» de escola, reforçando uma lógica desenvolvimentista que, precisamente, está na raiz da crise do mundo rural. Torna-se, portanto imprescindível que a oferta educativa escolar possa fazer parte de políticas educativas integradas e, ao mesmo tempo, de políticas integradas de desenvolvimento regional e local. A perspectiva com que foi criado o ensino superior politécnico e a multiplicidade de dimensões e funções que lhe foram cometidas poderia ser uma referência interessante para repensar o papel das instituições do ensino superior, ao serviço das respectivas regiões.
 
 

Escutar o «interior»

As perspectivas de desenvolvimento do «interior», pensadas a partir do centro, equivalem, frequentemente, a encarar as zonas rurais como «desertos» de ideias, de realizações, de projectos, de instituições. Uma atitude mais atenta permite, no entanto, desmentir este preconceito. Nos vários domínios da vida social, económica, cultural e, nomeadamente no campo educativo, as zonas rurais do interior constituem reservatórios de criatividade, onde múltiplas experiências, extremamente interessantes, podem ter um papel prospectivo fundamental.

O conhecimento dessas experiências pode e deve alimentar estratégias indutivas de produção de mudanças a partir do exemplo e do «contágio». É no sentido de poder aproveitar este capital de experiências que defendo a ideia de que é preciso aprender a escutar o «Interior». Limitar-me-ei ao exemplo de dois projectos de intervenção em meio rural, a que estou mais directamente ligado, através do Instituto das Comunidades Educativas (ICE). Refiro-me ao projecto das escolas isoladas e ao projecto da educação de infância itinerante.

A rede escolar do 1.º ciclo é constituída maioritariamente, nas zonas rurais, por escolas de um ou dois professores e com um número reduzido de alunos. São muito numerosas as escolas de professor único, exercendo a sua função em condições difíceis e de grande isolamento profissional. Esta realidade tende a ser encarada pela administração como a sobrevivência de uma realidade obsoleta (a pequena escola rural) que deve dar lugar a uma «racionalização» da rede escolar que permita a realização de economias de escala. É nesta perspectiva que, periodicamente, a administração central vem exaltar os malefícios das escolas rurais de pequena dimensão, apresentando a sua existência como uma espécie de praga a exigir uma campanha de profilaxia.

Acontece que o encerramento de uma escola rural, é um passo importante para apressar a morte da aldeia e da respectiva comunidade. Ou seja, o futuro das pequenas escolas rurais está longe de ser um problema interno ao sistema escolar, ou de ser um problema «técnico». O futuro dessas escolas está estreitamente associado ao futuro do mundo rural e este dependerá do tipo de sociedade que estamos empenhados em construir.

O projecto das escolas isoladas (D?Espiney, 1994; Canário, 1996) teve o mérito fundamental de propôr uma «outra» forma de ver o problema. Ele não reside no isolamento dos professores, nem sequer no isolamento das escolas, mas sim no isolamento das comunidades. A questão da escola rural é a questão da sobrevivência e desenvolvimento do mundo rural. A estratégia de acção adoptada consistiu, fundamentalmente, na tentativa de devolução à escola de uma função social de pólo de animação e de desenvolvimento local, permitindo uma maior contextualização da acção educativa escolar, bem como da sua combinação com a valorização do património cultural local e do reforço das identidades. O trabalho desenvolvido na região do nordeste alentejano (Amiguinho, 1995) pode ajudar a dar alguns exemplos:

Primeiro exemplo: o encerramento de serviços públicos, como é o caso da distribuição postal, é um forte estímulo ao êxodo rural. A partir da questão «Onde está o carteiro?», três pequenas escolas desenvolveram um projecto comum que, a partir da acção convergente da escola e da comunidade local, permitiu o «regresso» do carteiro, particularmente importante para os idosos. A escola ganhou um novo significado quer para os alunos, quer para a população local.

Segundo exemplo: a valorização dos idosos, encarados como um recurso e não como um fardo, constitui um dos eixos de trabalho do projecto, nesta região. Numa aldeia, a escola tomou a iniciativa, com a junta de freguesia, com uma associação local e, claro, com a implicação dos interessados, de transformar uma sala de aula (vazia devido ao decréscimo da população escolar) num centro de dia para idosos.

Terceiro exemplo: a escola de uma pequena localidade, desafiando a burocracia dos serviços culturais do estado, tomou a iniciativa de, em conjunto com outros parceiros locais, pôr de pé um museu, contribuindo, assim, para o enriquecimento cultural local. O museu foi instalado num edifício recuperado que tinha funcionado, anteriormente, como prisão.

É claro que não se pretende, com estes exemplos, fazer passar a ideia de que na escola possa estar a chave do desenvolvimento das zonas rurais. Trata-se tão somente de sublinhar a importância da lógica subjacente a estas acções, pequenos passos que podem ter um efeito multiplicador, na medida em que anunciam uma abordagem alternativa do desenvolvimento em meio rural e da contribuição da escola para esse processo de desenvolvimento.

Também no domínio da educação de infância pode ser referida a existência de um conjunto, diversificado, de experiências de construção de respostas educativas contextualizadas e particularmente adequadas a zonas rurais. Essa experiências estão parcialmente documentadas numa edição recente (Montenegro, 1997), nomeadamente a experiência da educação infantil itinerante. Nesta modalidade é o educador que se desloca periodicamente para visitar as crianças no seu habitat familiar e comunitário, conferindo à sua acção educativa uma dimensão de interventor social na comunidade. Trata-se de um projecto que tendo como ponto de entrada a educação de infância, representa uma intervenção educativa que engloba no mesmo processo a acção dirigida às crianças e aos adultos de diferentes gerações. Parte-se do pressuposto de que as famílias são competentes para educar os filhos mas podem ser ajudados, do mesmo modo que os profissionais de educação se formam na interacção com as comunidades, as famílias e as crianças.

Esta, como outras experiências no domínio da educação de infância, situam-se na contra corrente a um processo acelerado de escolarizaçãoda educação de infância que está a ser conduzido pelo Ministério da Educação que, aparentemente, é extremamente relutante a aprender com estas experiências, que o próprio Ministério tem apoiado. Com efeito, o interesse e o valor deste tipo de experiências é difícil de ignorar. Contudo uma das maneiras de as desvalorizar consiste em negar-lhes qualquer universalidade, confinando-as ao contexto em que foram produzidas e ou reduzindo-as a uma solução de recurso, quando há ausência de meios para instituir as soluções consideradas «normais». Ora, do nosso ponto de vista, o que está em causa nestas experiências é a emergência de uma forma alternativa de encarar não só a educação de infância mas a globalidade da acção educativa. Não estamos, evidentemente, em presença de soluções universalmente aplicáveis, mas sim em presença de experiências que contêm elementos de uma visão educativa em consonância com os ideais de uma educação permanente enfim liberta do paradigma escolar, na sua versão «bancária» e «tecnocrática».

Muitas outras experiências de intervenção educativa em meio rural poderiam aqui ser invocadas, relembro particularmente a exemplaridade da intervenção na serra do Caldeirão que, desde há mais de uma década se iniciou sob os auspícios do Projecto Radial, ou o Projecto de intervenção em Paredes de Coura, ou a actividade do Grupo Aprender em Festa (GAF) de Gouveia, ambos animados pelo Dr. Cardoso Ferreira, aqui presente.
 

Educação de adultos

O número de pessoas analfabetas, com mais de quinze anos de idade, é, em Portugal, o mais elevado da União Europeia (cerca de 12%, segundo o censo de 1991). Estes dados tornam-se muito mais expressivos no que diz respeito à população feminina, aos níveis etários mais elevados e às regiões rurais do interior, onde o número de analfabetos pode atingir até um quarto da população, como é o caso da região do Alentejo (Esteves, 1995).

Este fenómeno ganha um significado ainda mais amplo se o encararmos não apenas do ponto de vista das qualificações escolares formais, mas sim da perspectiva das capacidades reais da população para exercer, no quotidiano, as competências de leitura e escrita, indispensáveis numa sociedade moderna. Um estudo recente sobre a literacia (Benavente, 1996) contribuiu para pôr em evidência a amplitude deste fenómeno em Portugal e, ao mesmo tempo, para evidenciar os limites de uma política de alfabetização, escolarizada, centrada sobre os idosos que nunca foram à escola. A tomada de consciência deste fenómeno contribuiu também para melhor perceber os laços que unem (ou deveriam unir) a educação escolar das crianças e a educação dos adultos, bem como para relançar o debate sobre um tema, a educação de adultos, que parecia um pouco esquecido.

No nosso passado recente, o período imediatamente posterior ao 25 de Abril (1974-1976) e o período, no início dos anos 80, de concepção do PNAEBA (Plano Nacional de Alfabetização e de Educação de Base de Adultos) representaram dois momentos fortes de investimento inovador no campo da educação de adultos, infelizmente sem continuidade. Num balanço global, é forçoso reconhecer que a educação de adultos não correspondeu, durante os últimos vinte anos, a uma prioridade da política educativa. O seu carácter marginal acentuou-se mesmo, durante os anos 80 e 90, em que se assistiu a uma desvalorização, fragmentação e desarticulação do sector da educação de adultos. Esta evolução negativa, bem caracterizada por Lícínio Lima (1996), não é dissociável, segundo este autor, de uma visão instrumental da educação, tributária das concepções neoliberais.

Paralelamente, o outro traço que caracteriza esta evolução é a sua crescente «escolarização», num duplo sentido: por um lado porque, nas suas concepções e práticas pedagógicas, a educação de adultos aparece cada vez mais como refém do paradigma escolar; por outro lado, porque na medida em que se reduz progressivamente a uma dimensão de ensino recorrente, a educação de adultos tende a tornar-se um apêndice do sistema regular, acolhendo os jovens que fracassam ou abandonam precocemente a escola.

Com base neste quadro geral da situação, pode sustentar-se que a educação de adultos constitui, sem dúvida, uma aposta educativa estratégica, numa óptica de promoção do desenvolvimento das zonasrurais do interior, com duas condições. A primeira é a de orientar a política de educação de adultos no sentido de a articular com a educação das crianças e dos jovens, contribuindo para pôr de pé políticas educativas integradas, numa perspectiva de educação permanente.

A segunda condição é a de encarar, numa perspectiva larga, a tarefa da alfabetização, articulando-a com a construção de uma consciência cívica e com a dinâmica de processos de desenvolvimento local. É na medida em que a educação de adultos possa permitir às pessoas um acréscimo de lucidez para «ler o mundo» que se criam as condições para a emergência da cultura de desenvolvimento a que atrás nos referimos.
 
 

Territórios educativos

A «territorialização» da acção educativa corresponde a um tema que está no centro dos debates sobre as actuais políticas educativas. Este tema ganha particular acuidade em relação às zonas rurais, na medida em que a acção educativa deverá ser hoje encarada como uma dimensão intrínseca de processos de desenvolvimento local, multidimensionais e globalizados, ao nível de um território. Apesar do carácter muito embrionário das medidas de política oficial, neste domínio, têm vindo a multiplicar-se, por iniciativa dos actores locais, e de forma particularmente significativa em meio rural, experiências de territorialização educativa.

Em sistemas de administração centralizada, como é o nosso caso, aquilo que se faz a nível local, no domínio da educação como noutros sectores, corresponde a aplicar directrizes definidas centralmente, para todo o território nacional. Este carácter «dedutivo» não é suficiente para que as políticas educativas possam ser pertinentes relativamente à singularidade dos diversos contextos. Como sublinham Charlot e Beillerot (1995), as políticas educativas não podem apenas ser «deduzidas», é necessário que sejam «construídas» com a participação dos actores locais. É necessário também que estas políticas sejam efectivamente educativas e ultrapassem, portanto, o âmbito «escolar».

É o facto de aparecerem como indissociáveis as dimensões sociais e educativas que o apelo à acção convergente de diferentes instituiçõese actores sociais ganha sentido pleno. Numa acção educativa localmente globalizada, a articulação de interesses, de recursos e de acções tende a ser, progressivamente, alargada a uma multiplicidade de parceiros como as famílias, as associações culturais e desportivas, os museus, as bibliotecas, os centros de saúde, as empresas. O partenariado emerge como uma palavra chave para pensar e agir na globalização a nível local da acção educativa, combinando-a com estratégias de desenvolvimento. Não é, evidentemente, por acaso, que no quadro das múltiplas experiências, neste âmbito, que têm lugar por todo o país, os órgãos de poder local (câmaras e juntas de freguesia) afirmam o seu protagonismo.
 

Educação e sociedade

Pensar o papel e o contributo da educação para a melhoria global e qualitativa das condições de vida nas regiões rurais do interior apela a um questionamento crítico de algumas ideias recebidas e que continuam a dominar os discursos e as políticas oficiais. A perspectiva «desenvolvimentista», dominante desde os anos 50, apresentou a educação como uma condição necessária do crescimento económico e apresentou o crescimento económico como a condição necessária da felicidade das nações e dos povos. Mas esta perspectiva está longe de ser tão óbvia e incontestável como nos querem fazer crer. Meio século de progressos de escolarização de massas, de aumento da produtividade e de competição económica generalizada não conduziram a uma situação brilhante: em termos de fome, de guerra, destruição ambiental, desemprego, violência urbana, exclusão social, a situação é, neste final de século, bem mais preocupante que há trinta anos.

A questão do desenvolvimento não é hoje um problema de «eficácia» económica, antes nos confronta com um problema civilizacional que recoloca no centro do debate as questões da distribuição das riquezas, a redução e transformação do trabalho, o desenvolvimento de valores e de práticas sociais não baseadas na competição, nem naprocura do lucro. O conjunto de problemas que as nossas sociedades enfrentam não são resolúveis segundo uma lógica de produção e apropriação individual de bens, sejam eles materiais ou simbólicos.

Como escreveu M. Finger (1989) urge encontrar uma saída que só pode ser colectiva e exige uma aprendizagem social. A educação, entendida como um processo permanente e difuso em toda a vida social, tem um papel central a desempenhar na pesquisa e construção dessa saída colectiva, na construção de valores de solidariedade como suporte da nossa vida colectiva, na recriação de novas formas de articular o aprender, o viver e o trabalhar. Só assim poderemos passar de uma educação ainda centrada no «aprender a ter», para a concretização da divisa educativa, cara aos fundadores da educação permanente, de «aprender a ser».
 
 

Referências:
 

AMIGUINHO, A., 1995, Um testemunho em torno da problemática e da intervenção na escola rural (texto policopiado).

BENAVENTE, A, e outros, 1996, A literacia em Portugal: Resultados de uma pesquisa extensiva e monográfica, ICS, Lisboa.

CANÁRIO, R., 1996, "Un projet pour les écoles isolées", in Revue Internationale d?Education, 10, pp. 111-120.

CHARLOT, B., e BEILLEROT, J., Orgs., 1995, La construction des politiques d?éducation et de formation, PUF, Paris.

D?ESPINEY, R., Org., 1994, Escolas isoladas em movimento, ICE, Setúbal.

ESTEVES, M. J., 1995, Os novos contornos do analfabetismo. Analfabetismo ou iletrismo.
O que é? Quem são? Onde estão?, DEB, Lisboa.

FINGER, M., 1989, Apprendre une issue, Editions LEP, Lausanne.

FRIEDMAN, J., 1996, Empowerment. Uma política de desenvolvimento alternativo, Celta, Lisboa.

HENRIOT-VAN ZANTEN, A., 1991, "La sociologie de l?éducation en milieu urbain: discours, politique, pratiques de terrain et production scientifique, 1960-1990", in Revue Française de Pédagogie, 95, pp. 115-142.

MELO, A., 1991, "Educação e formação para o desenvolvimento rural", in Forum, 9/10,
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MONTENEGRO, M., Org., 1997, Educação de infância e intervenção comunitária, ICE, Setúbal.