Desafios da Interioridade:
Desafios da Interioridade:
a riqueza ambiental e a vantagem para a sustentabilidade

Maria do Rosário Partidário

Professora Auxiliar da Universidade Nova de Lisboa



Suscitado pelo desafio lançado por Sua Excelência o Presidente da República nas jornadas que recentemente efectuou sobre o desenvolvimento do interior, o presente texto tem como objectivo indicar algumas ideias que resultam da reflexão que efectuei sobre a problemática proposta, e que, por razões logísticas, não tive oportunidade de transmitir oralmente. Não se pretende assim apresentar uma dissertação académica sobre a mesma, mas apenas levantar alguns pontos que traduzem, por certo, uma perspectiva algo diversa da que será defendida por outros pontos de vista.

O texto que aqui se desenvolve adopta como designação específica «Desafios da interioridade - a riqueza ambiental e a vantagem para a sustentabilidade». A tónica é portanto positiva, contrariando o contexto de lamentações normalmente associado ao debate sobre a questão da interioridade. Com efeito, numa perspectiva ambiental e de sustentabilidade, a vantagem das zonas de interior reside na existência de recursos com potencial de desenvolvimento económico e social, que ao serem utilizados numa óptica de gestão ambiental e de equilíbrio sustentado, dentro dos limites compatíveis com a sua sensibilidade, permitam a manutenção das condições essenciais ao próprio desenvolvimento.

Assumindo este princípio geral, este texto desenvolve-se em três secções fundamentais. Uma primeira que confere o contexto à discussão e que assenta num enunciar de princípios e pressupostos. Uma segunda que aborda a questão dos recursos e do seu potencial de desenvolvimento em regiões de interior. E uma terceira e última secçãoque sintetiza algumas perspectivas decorrentes. Naturalmente que nesta abordagem se irá fazer referência ocasional a afirmações ou ideias levantadas no debate que teve lugar em Idanha-a-Nova.
 
 

Princípios e pressupostos

1) Princípio do desenvolvimento sustentado

Um dos princípios fundamentais sobre os quais deve assentar a discussão sobre os desafios da interioridade consiste no princípio do desenvolvimento sustentado. Difícil de digerir e de se lhe dar forma, o conceito de desenvolvimento sustentado é contudo reconhecido como a grande alternativa de modelo de desenvolvimento para o século xxi.

Fortemente promovido pela Conferência das Nações Unidas sobre Ambiente e Desenvolvimento em 1992, grandes têm sido as dificuldades para dar conteúdo concreto ao conceito de desenvolvimento sustentado, em contextos nacionais e internacionais. Na sua essência, o desenvolvimento sustentado pressupõe uma alteração profunda dos valores e das valências de desenvolvimento, das prioridades de acção e intervenção e do equacionamento das relações entre comunidades e regiões com índices de desenvolvimento profundamente díspares.

A orientação geral reside em princípios conjugados de equidade social, de equilíbrio ambiental, de eficácia económica.

Assim, entende-se que o desenvolvimento sustentado não é uma dimensão actualmente conhecida, mas antes um grande objectivo, de longo prazo, exigindo uma abordagem por tentativa e erro, ou seja, que se avance por tentativas na procura do equilíbrio que definirá a própria sustentabilidade. Esse limite de equilíbrio é extraordinariamente volúvel uma vez que depende de três pressupostos fundamentais:

1) As condições de partida;

2) Os níveis de eficácia e de qualidade que se pretende alcançar; e

3) A dinâmica profunda que sustenta o evoluir da sociedade e a alteração dos seus valores fundamentais.

Definir uma direcção e uma rota de sustentabilidade implica opções de incerteza que são específicas de cada contexto de desenvolvimento. Ou seja, falar em sustentabilidade do desenvolvimento nacional não fará de todo sentido, a menos que o mesmo resulte da conjugação de objectivos de sustentabilidade social, económica e ecológica ou, em termos mais geográficos, sustentabilidade urbana, costeira, rural e de cada realidade socio-geográfica nacional. 

Pensar os problemas da interioridade numa óptica de sustentabilidade exige, primeiro que tudo, o abandono dos pressupostos que têm liderado o desenvolvimento da zonas urbano-industriais, ou seja, exige a idealização e formulação de um modelo de desenvolvimento próprio e não a importação de formas de desenvolvimento que fizeram sentido noutras épocas e noutros locais. Consequentemente, exige a criação de referenciais, princípios e orientações que permitam o equacionamento dos chamados problemas de interioridade, e que auxiliem a identificação de soluções necessárias e suas prioridades. A realidade das zonas de interior é específica, as suas oportunidades são ímpares e a defesa do seu carácter diversificado deve imperar sobre as sistemáticas tentativas de homogenização do espaço geográfico português por modelos de desenvolvimento já totalmente ultrapassados. Pensar as regiões de interior e os desafios de desenvolvimento que às mesmas se colocam exige um espaço próprio de entendimento daquilo que são os seus próprios recursos naturais e humanos, das suas relações endógenas e das possibilidades de relações exógenas, sem pôr em causa a sua identidade própria e sem pôr em risco os fortes valores culturais e ambientais que as caracterizam e que constituem a sua principal riqueza.
 
 

2) Princípio da gestão do capital natural

Um segundo princípio fundamental que decorre do anterior e que aqui se advoga assenta num ordenamento do território orientado pela gestão prioritária dos recursos naturais endógenos, e pela sua valorização, respeitando práticas de gestão ambiental. Defendde desenvolvimento que assenta na existência, e promoção, de um capital natural, constituído pelos recursos ambientais em sentido lato. Nestes se incluem não apenas a água, o solo, os minerais, a flora e a fauna, o espaço e a paisagem, mas também o património construído, arqueológico e etnográfico, os sistemas humanos, o potencial energético e tecnológico tradicional.

O ordenamento do território, orientado segundo o princípio da gestão de recursos, adopta como primeira prioridade a identificação do potencial de exploração dos recursos endógenos, segundo a sua principal aptidão funcional e dentro dos limites da sua capacidade de renovação. Reconhece a existência de limiares de utilização dos recursos e respeita esses limiares por forma a garantir a continuidade da existência desses recursos, a manutenção da sua capacidade funcional e de prestação de serviços e, bem assim, a sua sustentabilidade. Esta atitude é contrária à que tem sido promovida pelo modelo de desenvolvimento tradicional, cuja prática corrente reside na fixação de índices de crescimento demográfico-económicos, tidos como objectivos prioritários, e na programação de acções que permitam atingir esses índices, independentemente dos sacrifícios impostos à identidade ecológica ou cultural do território geográfico.

Um ordenamento do território orientado segundo princípios de gestão de recursos adopta como grande prioridade a identificação do capital de recursos existentes e do seu potencial de utilização, dentro de limites compatíveis com a sua sensibilidade intrínseca. O que é que isto significa? Significa que o desenvolvimento em vez de se processar à custa do empenhamento da riqueza natural específica do território, vai antes explorar ao máximo o potencial específico dos recursos naturais de cada região e de cada lugar, mas com consciência sobre os limites de exploração desses mesmos recursos, base fundamental do próprio processo de desenvolvimento.

Mas identificar os recursos não basta. É necessário valorizá-los, torná--los comparáveis com referenciais existentes, romper com a ideia de que recurso natural é uma dádiva que, não exigindo investimento de mercado, não pressupõe também um valor de mercado. As modernas teorias da economia ambiental avançam com o conceito de valor de e-se um modeloexistência dos recursos, que se veio juntar aos já conhecidos valores de uso real e de uso potencial. Ou seja, o valor de existência assenta no princípio da diversidade ecológica natural, em que o valor é devido a critérios de raridade, especificidade e funcionalidade em termos de sistemas ecológicos, sem que exija o reconhecimento de um valor de mercado de curto prazo.

Entende-se que as chamadas «regiões menos desenvolvidas», segundo designação da óptica tradicional desenvolvimentista, constituem de facto, o grande manancial de riqueza e a grande oportunidade de desenvolvimento do século xxi. Este pressuposto reside no facto de ser nestas regiões que se concentram as grandes reservas de recursos necessárias ao próprio processo de desenvolvimento.
 
 

3) Princípio do equilíbrio ambiental

Um terceiro e último princípio, entendido como relevante no presente contexto, refere-se à qualidade ambiental e ao equilíbrio dos diversos factores de qualidade. Uma vez mais este princípio decorre dos anteriores, sendo, juntamente com a gestão dos recursos, condição essencial para a promoção de um desenvolvimento sustentado.

O sistema ambiental oferece condições de equilíbrio que variam bastante consoante as características dos sistemas ecológicos que os constituem. De um modo geral, e a menos que se trate de situações de elevada sensibilidade e fragilidade (normalmente salvaguardadas com estatutos específicos de protecção), os sistemas ambientais oferecem grande capacidade de resistência a factores de perturbação externos, reagindo, de forma a restabelecer por si só, o anterior estado de equilíbrio, ou determinando um novo estado de equilíbrio. Contudo, quando os factores externos de perturbação são demasiado intensos ou persistentes, o sistema não tem oportunidade de reagir, e entra em situação de degradação, ou mesmo de colapso.

Esta situação tem sido apontada por variadíssimos autores, desde há já várias décadas, com maior frequência desde a década de 60. Contudo, sendo inicialmente pouco acreditada pelas forças do desenvolvimento, e tomada por «histeria ecológica», só na última década se tem tornado mais evidente, graças à sua manifestação física: a poluição, a escassez de recursos essenciais, e os custos associados. Apesar de tudo, nem sempre a sua importância é suficientemente reconhecida, sobretudo quando se contrapõe a irremediáveis forças de mercado.

Têm sido desenvolvidos instrumentos de apoio à decisão do desenvolvimento cujo objectivo é o de acautelar a ocorrência dessas situações de desequilíbrio ambiental, fomentando o desenvolvimento com sentido ambiental, ou seja, o desenvolvimento que, não deixando de se processar por razões ecológicas, adopta formas e procedimentos que evitam, ou pelo menos minimizam, os impactes ambientais causados pelo próprio desenvolvimento. A Avaliação do Impacte Ambiental é um dos mais importantes desses instrumentos de política ambiental, de maior visibilidade e popularidade em todo o mundo. Embora a sua prática exista sobretudo ao nível de decisões sobre projectos de desenvolvimento, é crescente a sua utilização e aplicação a decisões de política ou planeamento. Na sua essência, trata-se de um instrumento de natureza preventiva e antecipativa de perturbações ao equilíbrio ambiental.

O seu papel ao nível do desenvolvimento de zonas de interior é fundamental, e um garante do princípio do equilíbrio ambiental que aqui se apresenta como um dos três princípios que devem assistir a promoção do desenvolvimento das zonas de interior.
 
 

Recursos e potencial de desenvolvimento

Nesta secção pretende-se evidenciar a diversidade de oportunidades de desenvolvimento que assistem as zonas de interior, no quadro dos princípios atrás enunciados.

No debate que teve lugar em Idanha-a-Nova foi apresentada uma visão neo-classicista do mundo rural. Esta visão adoptava o conceito dicotómico do espaço territorial em cidade-campo, apresentando as zonas rurais como os suportes funcionais essenciais ao funcionamento das cidades, através daquilo que foi designado como as funções externas do mundo rural. Este conceito, de que as zonas rurais constituem reserva à expansão do mundo urbano, está hoje mais do que ultrapassado.

O território rural e o território urbano e industrial distinguem-se efectivamente pelas suas funções. Contudo, as perspectivas mais recentes apontam para a necessidade de garantir o equilíbrio de cada um destes espaços, com razões exógenas de ligação entre cada espaço, mas garantindo a sua autonomia e a sua sustentabilidade. Não é mais sustentável fazer depender a sobrevivência dos grandes espaços urbano-industriais de zonas rurais débeis e com função apenas de fornecimento de bens essenciais ao funcionamento da urbe (bens alimentares, mão-de-obra, espaço físico, etc.). Admite-se hoje que as zonas rurais devem ser prósperas por si só, pela sua funcionalidade e estrutura características, já que as mesmas constituem um potencial de desenvolvimento.

Com efeito, as zonas rurais são hoje muito mais do que espaços agrícolas, como algumas perspectivas parecem ainda fazer crer. A agricultura não é mais a grande prioridade da política de desenvolvimento das zonas rurais de interior ou litorais. Bem pelo contrário. A evolução tecnológica, o aumento dos tempos de lazer e recreio e a própria alteração de valores das comunidades humanas têm dado origem a uma multiplicidade de opções de utilização das zonas rurais em todo o mundo, que, em Portugal, só por falta de perspectiva e de iniciativa empresarial, não tem sido mais evidente.

Em praticamente todo o mundo desenvolvido, em particular na Europa do Norte e Centro, América do Norte e Austrália-Nova Zelândia, tem-se vindo a assistir a um ressurgimento das zonas rurais como alternativa residencial às zonas urbanas. As novas tecnologias de comunicação têm possibilitado a existência de números crescentes de profissionais que funcionam por ligação remota aos seus escritórios urbanos habituais, permitindo-lhes desta forma manter a comunicação permanente com o centro decisional, sem necessidade de deslocação física de mais do que uma ou duas vezes por semana, e por vezes até menos frequentemente. Tem-se verificado que existem aumentos de rendimento, com diminuição de custos individuais e empresariais, quer ao nível de deslocação diária casa-emprego, quer ao nível de custos indirectos que a permanência diária na zona de residência permite. Associados estão também aspectos lúdicos e de actividades secundárias que uma zona rural potencia e que, em contextos intelectualmente mais desenvolvidos, podem tornar-se bastante incentivadores.

De um modo geral, os recursos ambientais existentes em zonas rurais potenciam o desenvolvimento de actividades turístico-recreativas, florestais, cinegéticas, mineiras, de serviços, e naturalmente agrícolas. Todas estas actividades, se promovidas segundo os princípios e pressupostos acima enunciados, podem tornar o desenvolvimento rural extraordinariamente bem sucedido e sustentável.

As actividades turístico-recreativas e cinegética são talvez as mais evidentes, já que o seu sucesso e durabilidade depende essencialmente da manutenção dos recursos que as justificam. Se ligarmos a isto o facto de a actividade turística ser já hoje uma das actividades económicas de maior sucesso deste final de século, e certamente uma das principais actividades de futuro, torna-se evidente a importância que a promoção correcta e equilibrada desta actividades representa no desenvolvimento das zonas de interior. A recente cimeira do Conselho Mundial de Turismo e Viagens, realizada em Portugal, demonstra que o turismo é de facto a actividade económica mais promissora dos próximos anos e que o seu papel em Portugal é de extraordinária relevância. Com efeito, o clima, a diversidade geográfica e cultural do nosso país, derivada precisamente da identidade cultural regional que ainda se mantém, constituem o grande argumento do potencial português para a promoção da actividade turística.

É claro que os modelos de desenvolvimento turísticos também são diversos, e por certo que em Portugal existem já diferentes modelos, nem todos igualmente sustentáveis. Contudo, a actividade turística é sempre possível dentro dos princípios de sustentabilidade e de gestão de recursos e de equilíbrio ambiental acima enunciados. É apenas uma relação de balanço entre alternativas de desenvolvimento e recuperação de margens de investimento em prazos mais ou menos alongados.
 
 

Perspectivas

Face ao exposto anteriormente, é difícil suportar a afirmação de que o desenvolvimento sustentado é crescimento económico continuado, a qual foi também apontada no debate de Idanha-a-Nova. De facto, não existem duas ideias mais contraditórias. Primeiro porque a ideia de crescimento económico está associada à demonstração de resultados efectivos segundo determinados indicadores que não admitem a valorização de recursos cujo valor em termos de mercado é inexistente ou redundante, embora o seu valor em termos ecológicos, de biodiversidade, e consequentemente, de sustentabilidade, seja extraordinariamente elevado. Referimo-nos designadamente ao valor de existência a que se fez referência atrás. Segundo, porque o crescimento continuado não pode subsistir num sistema fechado, de recursos limitados, como vem sendo demonstrado pela equipa de investigação do Massachussets Institute of Technology, EUA, desde 1972, e corroborado mais recentemente, em 1992, no que respeita aos recursos ambientais e ao funcionamento dos sistemas ecológicos.

Argumenta-se portanto que, acima de tudo, pensar o desenvolvimento do mundo rural de interior, ou de litoral, exige a definição de objectivos, prioridades e definição de modelos de desenvolvimento específicos, que explorem ao máximo, dentro dos limites de capacidade de regeneração, os recursos existentes nas zonas em causa, e que lhe conferem as especificidades próprias. Argumenta-se ainda que as opções de desenvolvimento devem ser ponderadas em função de um ordenamento do território baseado na gestão sustentada dos recursos naturais e do equilíbrio ambiental, pois estes são condições do próprio desenvolvimento. Não adianta tentar promover o desenvolvimento florestal de produção em áreas onde claramente a opção é cinegética ou o desenvolvimento agrícola e pecuário em áreas com forte vocação florestal de produção, com consequentes baixos rendimentos e deterioração dos recursos naturais de base.

Acima de tudo, uma forte aposta deve ser a garantia da diversidade e multi-funcionalidade das actividades, com respeito não apenas pela biodiversidade do território mas também pelo uso múltiplo do espaço, condição essencial à prossecução de objectivos de sustentabilidade e à eficiência económica no melhor uso possível dos recursos endógenos existentes.

Soluções existem na mão dos que têm a responsabilidade directa de gestão. Soluções residem em abordagens cautelares e preventivas que compatibilizem o equilíbrio ambiental, a utilização sustentada dos recursos e as necessidades de desenvolvimento.