Desenvolvimento
Desenvolvimento do Interior

Álvaro Domingues

Professor Auxiliar da Faculdade de Letras do Porto
Curso de Geografia


Por muito discutida, a questão não é fácil. E em parte talvez por causa disso mesmo; de se ter discutido demasiado um tema impregnado de discursos inflamados, de dogmas repetidos até se lhes ter perdido completamente o sentido, ou, quantas vezes, de mera arma de arremesso para justificar atitudes políticas inconsequentes ou inoperacionais.

Trata-se, no entanto, de uma questão com uma pertinência que, nos últimos anos, atingiu um valor directamente proporcional ao estado de esvaziamento, de rarefacção e de crise social e económica a que chegaram as regiões ditas do «interior»: envelhecimento demográfico, abandono agrícola, défice empresarial, desemprego, desagregação económica e social, encravamento geográfico, descaracterização ambiental, pobreza, solidão?, um nunca acabar de uma lista de situações negativas que os indicadores estatísticos não desmentem.

Ao lado desta «lamúria nacional», assim justamente designada por Sua Excelência o Presidente da República, proliferaram o anúncio e a implementação de políticas. De todas - planos regionais integrados, políticas sectoriais, projectos de desenvolvimento endógeno, medidas sociais, etc. - se diz que não produziram os resultados esperados ou que, pelo menos, não inverteram a tendência de aprofundamento de graves assimetrias cuja raiz já não é de hoje.

Abalados os paradigmas da equidade territorial da política do Estado Providência, as abordagens e as explicações teóricas têm também oscilado sem se estabilizarem em consensos alargados. Uns acreditaram demasdepois de muito voluntarismo e entusiasmo inicial, assistiram a sucessivos desencantos e falhanços. Não tanto pela coerência dos princípios, mas, sobretudo, pelas dificuldades em transformá-los em políticas activas e em sustentar a sua viabilidade. No outro extremo, outros renderam-se aos efeitos poderosos da «globalização», inibidora, à partida, de qualquer tentativa de viabilização sócioeconómica de um novo modelo de desenvolvimento assente nas últimas energias de territórios e sociedades nivelados em limites críticos de sobrevivência. «Pensar global e agir local», dizia-se, ao mesmo tempo que a acção global frustrava todo o pensamento local. Outros ainda, demasiado crédulos nas experiências de certas «regiões ganhadoras», acreditaram que afinal o «global» abria oportunidades insuspeitas ao local, à afirmação pela diferença num mundo, de facto, cada vez mais massificado.

Cada um foi ficando com a sua parte de razão, ou porque isso decorria da coerência e da clareza dos pressupostos, ou porque restavam sempre alguns casos demonstrativos do sucesso deste ou daquele caso paradigmático. Todavia, e talvez por isso se mantenham os equívocos e as posições de princípio, subsiste um claro défice quanto às condições de transferibilidade desses casos apresentados como exemplares. Quase sempre, essa exemplaridade decorre de factores específicos e, por isso, dificilmente reprodutíveis. Caiu-se, assim, num diálogo de surdos, alimentado por fenomenologias de sucesso ou de fracasso, e, em qualquer dos casos, sempre referenciadas a situações extremas temperadas com doses excessivas de optimismo ou de pessimismo.

Posta assim a situação, seria arriscado avançar já com alternativas. Repescando o título, talvez fosse útil reflectir um pouco sobre o que se pensa quando se fala de «desenvolvimento do interior».

I. No que diz respeito ao conceito de desenvolvimento, parece que quase todos estamos de acordo, pelo menos quanto aos fins, já que quanto aos meios ainda subsistem desacordos profundos. Simplificando, a principal linha de fractura entre esses desacordos, divide os que ainda defendem os velhos paradigmas tecnocráticos do desenvolvimento - racionalização, economias de escala, especialização intensiva, agro-indústria, intensidade tecnológica, etc. -, e os irredutíveis do iado nas potencialidades do «desenvolvimento endógeno» e, desenvolvimento sustentável, espécie de conceito - dogma mais claro nos seus princípios (demasiado) gerais, do que na forma de atingir, no terreno, as suas metas.

Dos primeiros, todos conhecemos melhor os seus sucessos e insucessos. Dos segundos subsistem ainda demasiadas profissões de fé: do «small is beautiful», do eco-desenvolvimento, da indiscutibilidade do valor das tradições (às vezes existentes só nos museus, nos livros, ou na cabeça de quem delas desde há muito se afastou), das «autenticidades», da defesa de valores e práticas culturais que preenchem mais o ego de quem delas ocasionalmente desfruta, do que o dos que supostamente disso deveriam retirar bem-estar e mais-valias materiais ou espirituais.

De todos há notícia. Avestruzes no Alentejo, mas também mármores, vinhos e queijos?, e floresta de produção, vulgo, eucaliptos e discursos inflamados, «montes-residências-secundárias» e campos de golfe e miragens de Alquevas. Turismo na serra Algarvia, e agricultura biológica, e incêndios na serra, e assaltos e extorsões de dinheiro a casais de velhos fatalmente enraizados nos seus redutos. Tabaco na Beira Interior e cerejas nos campos do Fundão e fruta para as lixeiras. Oásis industriais e multinacionais enquistadas e incertas numa qualquer cidade? do «interior». Enchidos em Trás-os-Montes e carne «com denominação de origem» na Terra Fria ou no Barroso. Politécnicos e universidades nas cidades médias com muitos alunos e poucas oportunidades de emprego. E o que de muito se poderia pôr nesta lista de realidades, dúvidas, esperanças, provocações, falhanços e sucessos.

E muito turismo: rural, de habitação, ecológico, termal, desportivo, de congressos e tantos outros adjectivos. E também muitos municípios e autarcas mediáticos a desmultiplicarem o seu protagonismo e a sua acção em prol do desenvolvimento: infra-estruturas, equipamentos, acessibilidades, loteamentos industriais, mercados, centros de saúde, bombeiros, escolas, centros históricos, organização de eventos, casas da cultura, bibliotecas, polidesportivos, piscinas, centrais de camionagem, lares de idosos?, e também excesso de Câmara-Municipal-Estado-Providência, subsidiodependência, política assistencialista, e descoordenação de um aparelho estatal demasiado centralizado, hierárquico e sectorializado, e demasiado frágil ao nível local.

A discussão do desenvolvimento do interior entra, assim, em rota de colisão com outras polémicas. A da regionalização administrativa, a do municipalismo, a do tratado da União Europeia, a do cumprimento dos critérios de convergência nominal, a da contenção da despesa e do investimento públicos, a da política agrícola comum, a da moeda única, etc. Depois de acreditar demasiado no poder de mobilização da sociedade civil para os projectos de desenvolvimento local e frustrada a atracção do investimento estrangeiro, parece, assim, que é necessário repensar o reordenamento da arquitectura da administração pública e da territorialização das políticas, para que a omnipresença do investimento público (do estado central e dos municípios) consiga mobilizar investimentos e energias empresariais privadas. O município pode não ser o «território e a malha administrativa pertinente» para resolver questões que exigem a mobilização de mais recursos e a implementação de políticas em espaços geográficos mais alargados, cobertos por uma maior diversidade e qualidade do sistema institucional.

II. O conceito de «interior» precisa também de uma profunda revisão por se prestar a equívocos e utilizações desadequadas. O interior, a mais das vezes usado no sentido geográfico por oposição ao litoral, parece quase uma fatalidade cósmica - que diria a região metropolitana de Madrid aqui ao lado? - e, quase sempre, é utilizado como explicativo de uma determinada situação (sempre negativa). É urgente acabar com o uso e o abuso desta dicotomia entre um litoral urbano sempre desenvolvido e um interior rural sempre atrasado. O nivelamento exagerado da «interioridade» tornou-se um estigma e a normalização do diagnóstico tende a normalizar a terapia.

A falar-se de afastamento, não é o do litoral que interessa nem apenas o afastamento físico ou a distância - tempo. O afastamento que se invoca quando se fala do interior não é mais do que a designação de uma condição periférica. Essa condição tanto pode corresponder a um distanciamento físico face aos principais eixos e nós de desenvolvimento como, verificando-se ou não essa situação, ao défice de relação, de interacção social. A condição periférica não é apenas exclusiva do interior e os que clamam pelo investimento nas periferiasdegradadas das grandes metrópoles ou pela resolução de bolsas de pobreza e de exclusão no coração das grandes cidades provam que essa é a situação.

O «interior» é um mosaico muito diverso de recursos e memórias e é nessa diversidade que deve ser entendido. Do «rural profundo» quase em situação de não retorno, à dinâmica de algumas cidades de média dimensão, encontra-se uma variedade enorme de situações, de problemas e de modos de os resolver. A melhoria das condições de mobilidade, a crescente motorização, o uso das telecomunicações, diminuiram, em geral, o «atrito» territorial, fazendo com que as melhores soluções nem sempre sejam aquelas que se inscrevem no território onde se diagnosticaram os problemas que é o suposto resolverem.

As trajectórias de exclusão ou de marginalização das sociedades - territórios em relação ao processo de desenvolvimento nem sempre têm como única explicação o encravamento geográfico ou a rarefacção dos agentes da transformação e da inovação. Nesses casos falta, sobretudo, um sistema eficaz de «interpretação» e de difusão de informação, tanto mais importante quanto o é a progressiva complexificação da economia e da sociedade. Face à rarefacção demográfica é mais importante a densificação relacional e informacional.

Se algo há em comum em toda a diversidade do território português em declínio social e económico é o elevado nível a que chegaram o recuo demográfico, o envelhecimento, a fragilidade económica, o défice empresarial, a dependência excessiva face ao investimento e ao emprego públicos. Em resumo, um resultado pouco favorável em que, quase sempre, a pequena escala se combina com a pouca diversidade institucional ou mesmo com a anomia da sociedade civil.

É certo que nos últimos anos se assistiu a um ressurgimento dos aglomerados urbanos, embora isso se tenha produzido à custa do esvaziamento dos territórios de proximidade. Nesse ressurgimento é bem visível a acção dos municípios e do estado central, responsáveis por investimentos que melhoraram drasticamente as condições de vida e a capacidade de atractividade e de polarização funcional desses aglomerados. A questão está agora em saber se esse desenvolvimento tem capacidade para se reproduzir, ou, no mínimo, para estabilizar. Paraisso contribuirá com certeza a criação de emprego, questão que hoje assume a máxima prioridade. A não se realizar tal situação, pode-se vir a verificar que o ciclo de crescimento recente não correspondeu senão a um último fôlego que se esgotará por défice de substituição geracional.

De facto, muitas cidades de pequena e média dimensão aumentaram a oferta de emprego nas instituições públicas, no pequeno comércio e na construção civil e obras públicas. Além disso, a criação de escolas do ensino médio e superior constituíram fortes atractores de uma população jovem, embora flutuante, cujo principal problema é o emprego pós-diploma. A não resolução desta questão transforma esses aglomerados urbanos numa espécie de plataforma giratória, ou centrifugadora, de futuro incerto, ameaçada pelo (também) forte aumento e diversificação da oferta escolar nos grandes centros.

A nova geração de políticas necessitará certamente de um quadro administrativo novo que seja capaz de ultrapassar a fragilidade de recursos da acção e das competências municipais e a deriva descoordenada das políticas sectoriais do estado central. São necessárias instituições mais fortes e é imperioso alargar o quadro territorial das políticas locais/regionais. Só assim se combinarão mais recursos, mais instituições, maior densidade relacional - entre as cidades e os territórios vizinhos, entre sistemas e eixos urbanos próximos, e entre recursos e actores de proveniência diversa que sejam capazes de articular as várias actividades que concorram para o fortalecimento das fileiras económicas com maior capacidade competitiva.

Entretanto, seria interessante fazer uma leitura comparada das várias situações de sucesso em matéria de desenvolvimento. Essa leitura, depois de submetida a uma operação de teorização, permitiria ter uma ideia mais clara sobre as condições que tornaram os projectos exequíveis e estabilizados. Poder-se-ia, depois, e com maior segurança, analisar as condições de transferibilidade desses casos exemplares e o sistema de condições que os defendeu dos falhanços que outros conheceram.

As instituições e as experiências «aprendem» umas com as outras, tendo-se frequentemente verificado que tem existido um défice de circulação de informação que inibe este processo de aprendizagem e de emulação. As potencialidades e os recursos nunca o são em abstracto. Disso estão os estudos, os diagnósticos e os planos cheios.