Reconstruir o Interior destruindo
Reconstruir o Interior destruindo a Interioridade: para uma estratégia activa de inclusão de actores

João Ferrão

Geógrafo
Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa e Universidade Atlântica.


 



Interior: da marginalidade geográfica à marginalidade sócio-económica

Qual a realidade que se esconde, hoje, por detrás da expressão, tão utilizada como imprecisa, de «Interior»? A diversidade de discursos que o invocam e a variedade de contextos em que o fazem dificultam qualquer tentativa de definição. Apesar disso, parece legítimo afirmar que a «interior» e a «interioridade» se associam basicamente três elementos: uma situação (subdesenvolvimento), uma causa principal (isolamento e dificuldades de acesso às áreas mais dinâmicas, localizadas no litoral), uma consequência particularmente grave (a desertificação, considerada nas suas várias componentes). Envolvendo estes três elementos surge um discurso marcado por uma cultura de fatalismo e de apelo à intervenção assistencialista do Estado.

A sequência dos vários factores referidos no parágrafo anterior é bem conhecida. A marginalidade geográfica das regiões do Interior, acompanhada por um visível desinteresse por parte do poder central por estas áreas, levou a uma persistente sangria de gente, nomeadamente daqueles que, pelo seu capital escolar, cultural ou mesmo económico, mais necessários seriam para combater a situação deficitária existente. Este despovoamento, agravado por uma crise profunda do sector agrícola, estimulou o abandono dos campos e a concentração das populações em algumas cidades de média dimensão, contribuindo, lenta mas inexoravelmente, para romper equilíbrios ambientais, sócio-demográficos e económicos historicamente sedimentados. Gera-se, assim, um círculo vicioso marginalidade (geográfica)/despovoamento/abandono dos campos/marginalidade (social e económica) que conduz ao agravamento das situações de subdesenvolvimento, sobretudo em termos relativos mas mesmo, nalguns casos, em termos absolutos.

Será esta imagem do «Interior» adequada aos dias de hoje? A verdade é que o conjunto de elementos invocados e o modo como são articulados constituem mais uma visão-memória do que um retrato rigoroso da situação actual. É certo que os vários elementos sublinhados correspondem a aspectos a levar em conta por todos os que pretendem contribuir para a requalificação das áreas ditas do Interior. É certo, também, que o círculo vicioso que foi enunciado continua a operar em alguns contextos. Importa, no entanto, referir que uma intervenção adequada nestas parcelas do território nacional implica um entendimento distinto destas matérias. Trata-se, no essencial, de construir um discurso sobre o «Interior» que, incorporando as perspectivas anteriores como aspectos essenciais para a compreensão do processo histórico que conduziu à realidade actual, saiba, ao mesmo tempo, abrir espaço para a emergência de uma outra perspectiva.
 

Interior: de território a processo de subdesenvolvimento

A «nova análise» do Interior terá de relativizar ou abandonar alguns aspectos considerados até há pouco como essenciais, ao mesmo tempo que introduz novas dimensões e reequaciona algumas das relações de causalidade usualmente apontadas. É que o grande problema do Interior, hoje, é ter sido «interior» ontem. Por outras palavras, o subdesenvolvimento que aflige estas áreas do país é mais uma consequência das situações de isolamento, encravamento e deficiente acessibilidade do passado do que do presente, mesmo nos casos em que estes condicionalismos persistem com significado. O alvo de atenção deverá ser, assim, a marginalidade sócioeconómica resultante do círculo vicioso acima identificado e essa marginalidade apenas se combate com resultados duradouros se forem criadas condições realmente propícias à emergência e consolidação de actores - individuais e colectivos; públicos, associativos e privados - qualificados e qualificantes. Em suma, um caminho mais promissor, tanto do ponto de vista analítico como do ponto de vista da formulação de políticas, para reconstruir o Interior e destruir a interioridade, sugere a necessidade de deslocar a questão «Interior» para uma outra, a da avaliação das condições de desenvolvimento em áreas rurais vítimas de processos históricos de marginalização. Esta inflexão não supõe o desaparecimento da interioridade como condicionalismo físico relevante. Supõe, isso sim, que a prioridade de actuação deve orientar-se para a alteração das condições estruturais de desenvolvimento, as quais apenas parcialmente se articulam, positiva ou negativamente, com questões de acessibilidade; supõe, igualmente, colocar as pessoas, as instituições e as organizações no centro do debate, porque são elas que estimulam, constroem ou, pelo contrário, impedem o desenvolvimento.

Esta inflexão analítica tem outra vantagem: a de questionar a natureza da unidade e da especificidade globalmente atribuídas a estas áreas, na medida em que favorece o reconhecimento da existência de situações diversificadas no seu seio. O Interior não corresponde a um espaço homogéneo, mas antes a um território que partilha dimensões importantes de um passado e de uma memória comuns. De facto, e do ponto de vista das características actuais, não existe um Interior, mas vários. E estes diversos «Interiores» não se confinam à faixa não litoral do país nem dela detêm o monopólio. «Interior» e «litoral», enquanto categorias tradicionais associadas a determinadas características contrastantes (isolamento v. acessibilidade; envelhecimento v. juventude; declínio v. dinamismo económico; densidade populacional v. desertificação, etc.), misturam-se no país de tal forma que situações de «Interior» podem ocorrer junto da faixa litoral enquanto realidades «litorais» emergem, ainda que pontualmente, nos distritos vizinhos de Espanha. As actuais condições de desenvolvimento possuem, de facto, uma geografia complexa, que dificilmente se compadece com as clássicas, e simplistas, dicotomias entre o Norte e o Sul, o Litoral e o Interior.
 

Densidade relacional, organização colectiva inteligente e desenvolvimento territorial

E, no entanto, o Interior existe! Não pelas razões tradicionalmente invocadas, mas pelo facto de uma vasta faixa rural que se estende da linha Gerês/Montesinho à serra Algarvia partilhar um traço distintivo: a existência de espaços extensivamente caracterizados por uma baixa densidade relacional. Esta é, justamente, a factura mais pesada que o chamado Interior paga pelo processo de marginalização que sofreu durante tantas décadas.

Uma população envelhecida e globalmente pouco qualificada, um tecido empresarial fragmentado e atomizado, um aparelho administrativo público constituído por entidades demasiado auto-centradas e sem real poder de decisão, um movimento associativo incipiente, tanto do ponto de vista das empresas como dos cidadãos: tudo isto reflecte a realidade de áreas cuja escassez numérica e debilidade quantitativa de actores constitui o principal obstáculo ao desenvolvimento. Mais grave, porque mais decisiva, do que a reduzida densidade física, fruto dos processos de desertificação, é a incapacidade de os (poucos) actores existentes se qualificarem e se organizarem colectivamente, partilhando esforços e informação, produzindo conhecimento, estimulando inovações. É sabido que soluções organizacionais de tipo sistémico podem contrariar ou mesmo contornar fragilidades estruturais decorrentes da existência de limiares populacionais baixos: serviços de carácter ambulatório, movimentos associativos de base territorial, colaboração inter-institucional e intermunicipal, participação em redes de cooperação ou estabelecimento de parcerias e de alianças estratégicas ao nível regional são alguns dos exemplos possíveis neste domínio. Trata-se, afinal, de caminhar no sentido de encontrar soluções em que a interacção entre actores constitui não só uma via de combate ao isolamento mas sobretudo um veículo de constituição de limiares dinâmicos de massa crítica, uma oportunidade de qualificação dos actores envolvidos, uma fonte de criatividade colectiva.

Reconstruir o Interior destruindo a interioridade implica, pois, o desenvolvimento de estratégias activas de inclusão: mobilizar actores individuais e colectivos, integrá-los em objectivos comuns e em linhas de rumo estrategicamente partilhadas, co-responsabilizá-los na missão de criar condições de desenvolvimento para as regiões onde vivem e actuam. E, nesta tarefa específica, cabe ao Estado um papel crucial, impulsionando directa e indirectamente estas estratégias ao mesmo tempo que combate com vigor a cultura assistencialista. Como organizar, então, de forma mais eficiente os actores do Interior, conferindo a esta parcela do país a inteligência colectiva que necessita? Se as respostas são múltiplas, os caminhos a explorar ainda são mais numerosos. Quanto à preocupação principal, ela está bem identificada: evitar que à interioridade de ontem, apesar de tudo em vias de resolução, se juntem agora as novas interioridades decorrentes da exclusão da sociedade da informação e dos processos de mundialização. Num mundo crescentemente interactivo não existe lugar para realidades fechadas ou para soluções paroquiais. A opção é, pois, entre actor e espectador de um espectáculo cujo palco é cada vez menos de âmbito nacional; e é justamente em relação a esse palco que se definem as novas centralidades e, por contraste, as novas interioridades. O jogo entre integração e exclusão não só se tornou mais difícil como mudou de escala. Pena seria que uma visão limitada de combate à «interioridade de ontem» levasse a ocultar o perigo das novas interioridades que se adivinham.