Problemas do mundo rural
Problemas do mundo rural

Luís Valente de Oliveira

Professor da Faculdade de Engenharia da Universidade do Porto


 



1. Os problemas com que se debate o mundo rural são de natureza variada e complexa e de solução difícil. Isso não deve, contudo, fazer com que se fique paralisado na acção. Cada caso tem os seus atributos próprios, raramente sendo praticável a transposição das soluções. Ora, isso reclama uma compreensão de cada situação e a procura paciente das soluções que mais se ajustam a cada caso. Não é possível a importação de modelos de actuação porque, além da diversidade dos recursos, cada situação é caracterizada por uma combinação específica dos agentes de desenvolvimento disponíveis, sendo fundamentalmente destes que o sucesso depende.

2. A inventariação metódica dos recursos representa o primeiro passo de qualquer programa de acção. Ora, há sempre mais recursos do que se pode supor, à primeira vista; o problema é conseguir discernir qual o valor que é possível acrescentar-lhes, para disso fazer viver uns tantos e para da acumulação de algumas dessas iniciativas fazer viver muitos. As maiores dificuldades, nessa mobilização de recursos endógenos, prendem-se com a necessidade de formação dos agentes, na sua capacidade de iniciativa e sentido de risco, na escola que funciona como limiar da viabilidade de cada acção e na frequente necessidade de cooperação entre agentes que se responsabilizem por iniciativas que, na maior parte dos casos, reclamam complementaridade entre si, para garantirem o sucesso do conjunto.

3. Há produtos locais que podem ser apresentados com atributos que os tornam muito atractivos nos grandes mercados, porque mantêm padrões de qualidade ou singularidades que os levam a ocupar «nichos» muito especiais e, por isso, rentáveis. Isso exige alguma imaginação, um conhecimento razoável do que se vai fazendo por esse mundo e um sentido prático de exploração de cada recurso.

Apontam-se, internacionalmente, muitos casos de êxito desde o fabrico de bolachas segundo a «receita da avó» (Estados Unidos) até à plantação de alfazema (Grasse-França) ou à extracção de todos os produtos que gera uma colmeia (mel, cera, geleia real, pólen, etc.). Hoje, os recursos têm vindo a adquirir uma variedade maior porque a necessidade de evasão dos meios urbanos faz dos grandes espaços um recurso susceptível de mobilização. Nos Estados Unidos, há mais de meio século, que se vão ordenando estradas panorâmicas («parkways») que permitem fazer centenas de quilómetros, a velocidades muito moderadas, apreciando a paisagem, parando para comer e para dormir e, com isso, justificando a criação de alguns postos de trabalho nos locais onde se concentram os serviços de apoio. Vê-se, deste modo, que a simples paisagem - mesmo árida, em alguns casos - pode representar um recurso porque foi sendo preparada para se tornar um motivo de atracção de visitantes que ajudam a consolidar uma base económica local frágil.

A grande dificuldade a este respeito é que os habitantes locais raramente são capazes de discernir as potencialidades que a sua terra encerra. Por isso se dizia, anteriormente, que é preciso manter uma atitude de pesquisa permanente para detectar as muitas mas geralmente pequenas oportunidades de mobilização de recursos que sempre existem.

4. Outra das dificuldades decorre da necessidade de conciliação de uma perspectiva de longo-prazo com a de curto-prazo que, correntemente, determina muitas das decisões que as pessoas tomam. As mudanças estruturais raras vezes têm lugar em períodos curtos. Por outro lado, as pessoas - e, especialmente, os mais novos - impacientam-se porque a televisão lhes exibe padrões de bem-estar, muitas vezes fictícios mas que elas associam à vida nos grandes meios urbanos e que confrontam com a penúria e com a monotonia daquilo que vêem à sua volta. Quer dizer, conservando sempre objectivos de longo-prazo que orientem as transformações estruturais que são necessárias, é preciso ir obtendo resultados tangíveis imediatos para fazer conservar nos locais os agentes capazes de as levar a cabo. De outra forma, desce-se abaixo do limiar de energia capaz de animar a acção e só resta a possibilidade de a conduzir a partir de fora, o que é menos interessante, mais difícil e dá menos garantias de consolidação e permanência.

5. O processo de desenvolvimento tem sempre que conciliar três «dotações»:

1) Uma de infra-estruturas;

2) Outra de conhecimentos e de capacidades, e

3) Outra de natureza institucional.
 
 

Sem estradas, energia, água, telecomunicações, ambiente preservado, etc. não há hoje desenvolvimento estruturalmente consolidado. Sem gente preparada, com capacidade de empreender, sentido de risco e iniciativa, conhecimentos alargados e confiança na sua própria capacidade de avaliação das situações, não haverá «actores» à altura dos desafios que se põem. Sem instituições diversificadas que representem os centros de impulso das muitas forças que têm de se entrecruzar numa matriz complexa em que há concorrências e redundâncias mas onde dificilmente pode haver hiatos, também não é possível levar a bom-termo uma acção que não vinga em ambientes de rarefacção de iniciativas. Quer isto dizer que é preciso não haver constrangimentos físicos e dispor de agentes dinâmicos e competentes e de instituições que sejam capazes de escorvar as energias necessárias, orientando-as na direcção conveniente.

6. Tornou-se evidente que as pessoas querem ter acesso aos bens da civilização que mais facilmente encontram em meios urbanos do que nos rurais. Não são as «luzes da cidade» que podem iluminar o seu espírito o que eles, correntemente, procuram. São, simplesmente, os bens e os serviços que reclamam escala e que, por isso, só estão disponíveis nos centros urbanos. Na ponta mais elevada da hierarquia urbana, associadas a esses bens e serviços estão, todavia, muitas formas de congestionamento, de deseconomia, de insegurança e de falta dequalidade de vida que comprometem também a capacidade de atracção dos grandes centros. A solução equilibrada passa, assim, pela formação de uma rede urbana com cidades de tamanhos diversos, proporcionando às populações bens e serviços de diferentes graus de exigência, no que respeita ao tamanho do mercado. Sucede, porém, que não há modelos pré-determinados de hierarquias urbanas, desenhados numa qualquer prancheta central. Poderá haver incentivos, particularmente no domínio das ligações físicas ao exterior e da adaptação dos espaços no interior. Mas nada faz prescindir da energia própria de cada centro, que tem de procurar as parcerias convenientes mas que, mesmo para as celebrar em termos que lhe sejam convenientes, depende do dinamismo, da clarividência e da determinação que os seus responsáveis locais exibirem.

7. Na maior parte dos casos, cada unidade administrativa não dispõe de dimensão para, sozinha, apontar os problemas que se lhe põem. Particularmente os maiores centros (Lisboa e Porto) estão extremamente dependentes das suas áreas circundantes para definirem e executarem estratégias de desenvolvimento adequadas. O problema é de natureza inversa, para os pequenos municípios do interior, mas a exigência tem o mesmo sentido: é preciso cooperar com unidades administrativas vizinhas. Por isso, a qualidade das relações de cooperação que souberem estabelecer entre si é tão determinante do sucesso que, ou será comum, ou não surgirá.

8. Na procura de recursos com origem local é preciso não esquecer os emigrantes (internos e externos) e as suas associações. Aqueles e estas devem ser mobilizados para fins muito práticos, associando-os ao desenvolvimento local, naquilo que eles podem dar: conhecimentos, ligações a mercados ampliados, comprometimento com o progresso da sua terra? As cambiantes afectivas e folclóricas que muitas dessas associações exibem podem ser interessantes mas perder-se-ão com o tempo. É preciso assentar as relações em elementos mais tangíveis e, por isso, potencialmente mais duradouros.

Elas devem conciliar elementos afectivos com solidariedade social e com interesse e eficiência económica. Só dessa forma perdurarão e serão úteis. 9. Há, em todo o complexo processo de desenvolvimento dos meios rurais, aspectos mais fáceis de concretizar e de resultados mais rápidos que têm de ser articulados, com acções de longo fôlego. É essa a grande dificuldade de conciliação do longo-prazo com o curto-prazo. Têm de se fazer estradas para tornar viáveis muitas novas actividades e para fazer chegar localmente o apoio de novos serviços, mas é também preciso desencadear toda uma série de acções que vão afeiçoando novas capacidades, novos comportamentos e novas atitudes. Ora, isso não pode ser somente obra da escola. É dela mas também das famílias, das autarquias, das associações, dos meios de comunicação social, das instâncias regionais e centrais, enfim, de toda a sociedade.

O resultado dessa acção conjunta tem de ser uma sociedade com mais auto-estima e, por isso, com maior confiança em si própria, com sentido de risco e com prazer na iniciativa, com vontade de empreender e com gosto pela acção. Enfim, uma sociedade inconformista e não resignada? uma sociedade menos nostálgica do passado e mais voltada para o futuro!?