Discurso do Presidente da República por ocasião do lançamento da obra "Nova História Militar de Portugal"


14 de Outubro de 2003


Começo por agradecer o convite que me dirigiram para estar hoje, aqui, convosco e para dizer algumas palavras de apresentação desta obra tão interessante e útil – a Nova História Militar de Portugal.

Confesso-vos que, a princípio, fiquei um pouco surpreendido com o vosso desafio para me desempenhar desta tarefa, normalmente reservada a especialistas com credenciais sólidas e provas dadas. É que, no sentido estritamente académico e científico, não tenho nenhum atributo que me recomende para ela. Não sou historiador e a minha relação com a história é a do leitor interessado e de amador atento.

Aprendi a historia curricular (universal e portuguesa) e depois, com mais profundidade, a história do Direito. Gosto de história e, quando posso, leio livros de história que, aliás, considero fundamentais para a compreensão da actualidade e para a reflexão e mesmo a decisão política. Mas daí a ter qualquer qualificação específica para ser o apresentador desta obra vai uma distância enorme. Daí a minha surpresa inicial.

Depois, pensei melhor. E conclui que o convite, embora pudesse afigurar-se insólito, talvez não fosse tanto quanto parecia. É que, na minha vida política, não parei de dar atenção à realidade militar.

Amigo de alguns militares, dos mais lúcidos da minha geração, conversei muito com eles sobre as questões militares. Depois, como membro do governo, deputado e dirigente político, não perdi nunca de vista essas questões. Aliás, o meu interesse constante pelas relações internacionais não deixaria alhear-me dos temas de defesa e de segurança. Finalmente, como Presidente da República e Comandante Supremo das Forças Armadas, tenho dedicado uma boa parte do meu tempo aos problemas da Defesa Nacional e das Forças Armadas. Devo confessar que o faço com particular devoção, interesse e gosto. O maior conhecimento da instituição militar e do seu funcionamento, que tenho obtido, vai de par com o reforço do meu apreço pelo seu espírito de missão e o sentido patriótico que tantas vezes tenho testemunhado em Portugal e no estrangeiro.

Presumo, pois, que o convite que me foi feito não esqueceu o que acabo de vos referir e assim não me considero tão inapto para desempenhar o difícil encargo que me deram. É claro, repito, que não é como especialista que o faço. É tão-somente como leitor agradecido e como cidadão interessado e empenhado, até por força das funções que ocupo, nestes temas tão relevantes e que merecem ser melhor estudados, conhecidos e divulgados. Creio sinceramente que esta História dará para tanto um valioso contributo e será um novo instrumento de compreensão.

Coordenada pelo General Manuel Themudo Barata e pelo prof. Nuno Severiano Teixeira, a Nova História, organizada em 5 volumes, contou com uma equipa de mais de 30 conceituados historiadores e outros especialistas, de várias formações específicas e com diversas perspectivas de abordagem. Abarcando um arco temporal que vai da fundação da Nacionalidade à recente intervenção em Timor-Leste, esta obra ocupa-se do facto militar em si e nas suas implicações, mas situando-o nos contextos político, económico, social, geográfico e territorial, diplomático, jurídico, demográfico, cultural e tecnológico em que deve ser visto.

Seja-me permitido, desde já, dizer que vejo algum simbolismo na dupla que coordena a obra: a um militar ilustre, vocacionado para os grandes temas da cultura histórica, de uma geração anterior (que já nos deixou e a cuja memória presto homenagem) junta-se um historiador brilhante, de uma geração mais nova, com especial inclinação para as questões de defesa, segurança e para as relações internacionais. O simbolismo desta dupla coordenação pode assim ser lido como representando, por um lado, a passagem de testemunho entre gerações e também, como aliás é referido no Prefácio, a transição de uma concepção historiográfica mais comemorativa e legitimadora para outra mais científica, estrutural, contextualizadora e actualizada. Themudo Barata sempre soube fazer muito bem a ponte entre gerações e entre concepções; Nuno Severiano Teixeira soube honrar a responsabilidade recebida e aceite.

Ao analisarmos o plano da obra, não podemos deixar de nos dar conta de que esta Nova História é como que uma História de Portugal perspectivada na sua dimensão militar. Síntese que, no entanto, não descura o aprofundamento de muitos aspectos, capaz de aliar uma visão de conjunto ao estudo rigoroso e especializado, estes cinco tomos vêem preencher uma lacuna que se fazia sentir. De facto, se nos lembrarmos que a última obra de grande fôlego neste campo era o notável Portugal Militar, de Carlos Selvagem, que data de 1931, percebemos bem a falta que esta obra fazia. De 1931 até hoje, muita coisa mudou na nossa experiência do mundo, nas nossas concepções, no nosso país, tudo se reflectindo naturalmente na forma como narramos, descrevemos, analisamos e interpretamos o passado, próximo e remoto.

Penso, aliás, que não será o menor dos méritos desta obra o ter conciliado o conhecimento já consolidado com novas investigações, recorrendo a múltiplas e inéditas fontes documentais e testemunhais, como o cinema e a literatura, permitindo-nos não apenas conhecer os acontecimentos mas também a forma como foram vividos e o imaginário que geraram. Confesso-vos que tenho uma enorme curiosidade em ver como são, particularmente, tratados certos períodos: alguns do passado mais distante, como o dos alvores da Nacionalidade, o da perda e restauração da nossa Independência (1580-1640), ou das invasões francesas e das guerras civis (na primeira metade do século XIX); mas também alguns da contemporaneidade, como as guerras que levaram à descolonização ou o tempo ainda mais recente, do qual sou testemunha privilegiada.


Minhas Senhoras e Meus Senhores

Tenho, pelo exemplo e pela pedagogia, procurado interessar os cidadãos pelos temas da Defesa Nacional e das Forças Armadas, que considero temos de soberania e que têm a ver com a nossa presença e afirmação no Mundo. Há claramente um défice destas questões no debate cívico e político, nomeadamente na comunicação social. Infelizmente, quase sempre estes temas só surgem a propósito de problemas de conjuntura e raramente têm a ver com a permanência de um desígnio nacional que nos compete assumir. Estou convencido de que esta Nova História, se fôr bem divulgada e reflectida, dará um impulso à formação de uma opinião mais informada e esclarecida sobre a realidade militar, a qual teve um papel fundamental na construção do nosso passado, como já Alexandre Herculano tinha mostrado, e que continua a ser importante, embora de forma diversa, no nosso presente e no nosso futuro.

Saúdo o Circulo de Leitores por esta iniciativa tão útil (mais uma a juntar a tantas outras!), concretizada numa edição muito cuidada. Renovando a minha homenagem à memória de Themudo Barata, felicito calorosamente o prof. Severiano Teixeira e a sua ilustre equipa de autores por esta obra fundamental. Por mim, prometo-vos a completa fidelidade de leitor interessado, já que não fui capaz de vos oferecer hoje a autoridade científica do apresentador, papel que, no entanto, confesso-vos, cumpri com muito gosto.