Discurso de SEXA PR por ocasião da Sessão de Abertura da Conferência Internacional "Relações Transatlânticas Europa-Estados Unidos"

Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa
21 de Outubro de 2003


Senhor Presidente da Fundação Gulbenkian
Senhores Conferencistas
Senhores Embaixadores
Minhas Senhoras e meus Senhores

A crise iraquiana cristalizou uma série de questões e desencadeou uma torrente de comentários e análises sobre o estado das relações transatlânticas. Pressentimos o carácter histórico dos acontecimentos que estamos a viver. Mas é ainda cedo para discernirmos todas as suas implicações para o nosso futuro colectivo. Nesta breve intervenção, que assinala o início desta conferência em boa hora promovida pela Fundação Gulbenkian, procurarei identificar algumas tendências de fundo nas relações entre os Estados Unidos e a Europa, de modo a situar e enquadrar o presente momento numa perspectiva mais ampla. O que vos quero transmitir está sintetizado em cinco teses, das quais retiro duas conclusões para Portugal.


1.Entre os Estados Unidos e a Europa existe uma identidade básica de valores mas não necessariamente de cultura política.

Os Estados Unidos e a Europa são herdeiros de uma mesma matriz cultural, cujas raízes se encontram no iluminismo. Partilham o apego aos valores da democracia, do estado de direito, do respeito pelos direitos humanos. Todavia o centro de gravidade da sua cultura política não é idêntico. Para a cultura política europeia, o modelo social europeu — ou dito de outro modo, o contrato social democrata — é paradigmático. Nos Estados Unidos, o individualismo continua a ser o valor supremo. Esta divergência básica reflecte-se em muitas áreas: por exemplo, nas concepções sobre o papel do Estado na regulação social ou na maneira de funcionar da economia dos dois lados do Atlântico. O resultado desta diferença de cultura política é duplo: por um lado, a Europa situa-se genericamente mais à esquerda do que os Estados Unidos; por outro, no espectro político respectivamente dos Estados Unidos e da Europa, os extremos não encontram correspondência do outro lado do Atlântico. Aqui reside parte da explicação para a vivacidade e a paixão com que, por vezes, se manifestam as diferenças de opinião que surgem entre os dois lados.

No calor do debate democrático, essas diferenças transformam-se, por vezes, em mal entendidos ou verdadeiras incompreensões. Foi o que sucedeu durante a crise do Iraque. Confundiu-se a crítica leal com o anti-americanismo. Todavia, para lá das diferenças de opinião, e da forma como foram caracterizadas, e às vezes caricaturadas, estou persuadido que existiu um outro factor subjacente às presentes dificuldades entre os Estados Unidos e a Europa. Refiro-me à alteração em curso dos termos em que se processa a parceria entre ambos, resultante, ainda, do fim do sistema bipolar, uma alteração histórica da política internacional cujos efeitos ainda não se esgotaram.


2.O fim do sistema bipolar alterou as bases do relacionamento entre os Estados Unidos e a Europa.

É universalmente reconhecido que a dissolução do mundo bipolar catapultou os Estados Unidos da América para uma posição preponderante a nível mundial. Mas não é menos verdade que tal circunstância também abriu à União Europeia novas e mais amplas possibilidades de afirmação na cena internacional. Encurralada, durante a Guerra Fria, entre as duas superpotências, ela adquiriu, desde então, um potencial muito maior de acção estratégica. O campo de afirmação que se abriu para a União Europeia com o fim da divisão da Europa, a sua crescente dimensão geográfica e peso económico, e a consolidação de uma cultura política comum entre os seus Estados Membros vão encontrando expressão numa política externa e de segurança própria que permite à União, como um todo, defender os seus interesses e fazer valer os seus pontos de vista. Este processo, necessariamente lento e complexo, e que decorre desde o tratado de Maastricht, permanece ainda aquém das ambições da União Europeia, mas tem vindo a desenvolver-se de forma inexorável. Ora ele implica uma reformulação profunda dos termos em que se processa a parceria entre os Estados Unidos e a Europa. Cada vez menos esta pode ser concebida, como sucedia durante a Guerra Fria, como uma relação entre um parceiro dominante e um conjunto de parceiros mais ou menos subordinados. Cada vez mais, tem de ser vista como uma parceria entre iguais, o que implica naturalmente ajustamentos de atitudes difíceis de aceitar para aqueles que atribuem aos Estados Unidos — às vezes com um fervor quase messiânico — uma vocação hegemónica.


3.A aceleração do processo de globalização desencadeada pelo fim da guerra fria aumentou a interdependência económica entre os Estados Unidos e a Europa.

A crescente igualdade de condições em que se encontram os Estados Unidos e a Europa é particularmente evidente no plano económico. Não se trata apenas do PIB da União Europeia ser da mesma ordem de grandeza do dos EUA, ou daquela dispor actualmente de uma moeda única que tende a rivalizar com o dólar como moeda de reserva internacional. Trata-se também do facto da economia americana estar cada vez mais dependente de financiamentos externos — à razão de mais de mil milhões de dólares por dia — muitos dos quais provêm da Europa e também do "stock" de investimento estrangeiro europeu nos Estados Unidos ser actualmente superior ao dos Estados Unidos na Europa. Na segunda metade do século XX, mas especialmente na sua ultima década, a interpenetração entre a economia americana e a economia europeia teve um crescimento extraordinário. Para apreciar até que ponto as economias dos Estados Unidos e da Europa estão mutuamente expostas, considerar apenas os números do comércio externo leva a conclusões erradas. As vendas de companhias americanas na Europa e vice versa representam actualmente cerca de quatro a cinco vezes mais do que o total das exportações e importações de um lado para o outro. É o investimento directo estrangeiro que está no coração das relações económicas entre os dois lados do Atlântico. O que os dados disponíveis revelam é o espectacular aumento desse investimento, nos dois sentidos, em especial na década de noventa. Alguns exemplos retirados de um estudo recente do "Center for Transatlantic Relations" ilustram bem a dimensão deste fenómeno.

Quanto ao investimento americano na Europa:
— nos últimos oito anos, as empresas americanas investiram duas vezes mais na Holanda do que no México (apesar do NAFTA) e dez vezes mais do que na China (apesar do crescimento espectacular da economia chinesa)

— O "stock" de investimento americano no Reino Unido (o principal destinatário do investimento americano) é praticamente equivalente ao "stock" total de investimento americano na Ásia, América Latina, África e Médio Oriente.

No outro sentido, da Europa para os Estados Unidos:

— O "stock" de investimento europeu no Texas é superior ao investimento total dos Estados Unidos no Japão

— Na segunda metade da década de 90, os países da Europa Ocidental investiram seis vezes mais nos Estados Unidos da América do que nos países da Europa Central.

Significa isto que, no plano económico, as ligações entre os Estados Unidos e da Europa são cada vez mais profundas, com uma tendência de fundo no sentido de os Estados Unidos dependerem tanto da Europa como a Europa dos Estados Unidos.


4.Os Estados Unidos e a Europa têm todo o interesse em se entenderem, mas não têm interesses necessariamente coincidentes.

O interesse que os Estados Unidos e a Europa têm em se entenderem não resulta apenas das realidades económicas. Ele reside também no facto de ser cada vez mais difícil obter resultados positivos no plano internacional agindo isoladamente, como a situação no Iraque tem amplamente demonstrado. Pelo contrário, quando a Europa e os Estados Unidos agem de forma concertada a possibilidade de alcançar esses resultados é muito superior. Acresce que, pelas suas afinidades históricas e culturais, os Estados Unidos e a Europa têm, à partida, excelentes condições para se entenderem. Temos de reconhecer, todavia, que não é apenas ao nível da cultura política que existem divergências entre ambos. São também os interesses e as perspectivas da Europa e dos Estados Unidos que, embora raramente opostas ou incompatíveis, não são necessariamente coincidentes. A União Europeia tem uma visão da sociedade internacional essencialmente cooperativa e multilateral, que, aliás, espelha a sua própria maneira de funcionar internamente. Os Estados Unidos, fortes do seu poderio, têm-se mostrado ultimamente mais orientados para a acção unilateral, não apenas no plano militar, mas também em questões de outra natureza, como por exemplo o Protocolo de Quioto. As visões dos Estados Unidos e da União Europeia nem sempre são idênticas relativamente a pontos concretos da agenda internacional, em matérias tão díspares como o conflito do Médio Oriente ou a questão dos alimentos transgénicos.

Por conseguinte, qualquer entendimento entre os dois exige, muitas vezes, uma conciliação de interesses e perspectivas diversas, que só pode ser obtida com abertura, paciência e flexibilidade.


5.O fim da guerra fria alterou a natureza da NATO mas não destruiu a sua utilidade.

Durante a guerra fria, a NATO, para além do seu papel no plano militar, era o símbolo por excelência não apenas da unidade entre os Estados Unidos e a Europa, mas também, claramente, da liderança norte-americana do mundo ocidental. Perante a desaparecimento da ameaça representada pela União Soviética, muitos vaticinaram o fim da Aliança Atlântica. Estes prognósticos estavam errados. A NATO permanece como a principal apólice de seguro para a defesa da Europa e o seu alargamento aos países da Europa Central, bem como o estabelecimento de uma nova relação com a Rússia tiveram uma influência estabilizadora na transição europeia para o mundo pós-bipolar. Por outro lado, a NATO revelou-se também útil no plano militar, como é demonstrado pelas suas intervenções na resolução da crise da ex-Jugoslávia, e actual presença no Afeganistão. Todavia — há que reconhecê-lo — a relevância política da NATO, como fórum de concertação entre os Estados Unidos e a Europa e como símbolo da liderança americana do mundo ocidental, tem vindo a diminuir. A NATO continua a ser útil — diria mesmo indispensável — mas o seu modo de funcionamento necessita de ser reformulado. O principal desafio que se coloca actualmente à NATO é o de acomodar no seu seio o esforço europeu para estabelecer, no quadro da União Europeia, uma política de defesa forte e credível. Cada vez mais, os Estados Unidos terão, nesta área, de saber lidar com a União Europeia como um todo e não como um conjunto díspar e variado de aliados. Esse ajustamento profundo está em curso e parece irreversível. Para que ele se faça sem dramas ou rupturas é necessário que os Estados Unidos se convençam que o fortalecimento das capacidades europeias de segurança e defesa é do seu interesse. Existe nesta área uma ambiguidade fundamental que deve ser clarificada. Os Estados Unidos de há muito que solicitam aos seus aliados um esforço maior na área da defesa, mas dificilmente aceitam as implicações políticas de tal esforço Ora, para os europeus, tornou-se já uma evidência, como princípio consensualmente aceite, que a União Europeia necessita de reforçar as suas capacidades militares e organizar-se, no plano da segurança e da defesa, do mesmo modo que se organiza no plano económico, financeiro, ou da política externa. Nem sequer os mais atlantistas entre os atlantistas contestam já esta necessidade. Isso vai permitir à União Europeia assumir responsabilidades crescentes, tomando designadamente conta de operações que, por falta de alternativa, eram até agora asseguradas pela NATO ou por "coalitions of the willing". Mas, por mais rápido e profundo que seja esse processo, para tarefas de envergadura no plano militar continuará a ser necessária ou pelo menos altamente vantajosa a colaboração entre os dois lados do Atlântico — necessária tanto para a Europa como para os Estados Unidos.


Desta breve análise, gostaria de retirar duas conclusões para Portugal:

1.Devemos participar no debate europeu com uma atitude construtiva relativamente aos Estados Unidos mas sem receios ou complexos em afirmar as nossas posições.

O problema central na definição de uma política externa, de segurança e defesa da União Europeia coesa e forte tem sido sempre a existência de diferentes sensibilidades entre os parceiros europeus a respeito dos Estados Unidos da América, especialmente entre os países com maior peso e dimensão na União Europeia. A crise do Iraque veio mais uma vez ilustrar essa dificuldade. Mas a mensagem que ficou deste episódio não é unívoca. Se, por um lado, os Governos se dividiram, registou-se, ao nível da opiniões pública, um movimento que denota uma crescente convergência de sensibilidade e cultura política entre os parceiros. Julgo que esses movimentos são portadores de futuro. A consolidação e o aprofundamento do projecto europeu, no plano político e económico, é um formidável motor de convergência entre os Estados europeus — os do alargamento inclusive — que terá um impacto crescente ao nível da política externa e de defesa. São poucas e isoladas as vozes que, na Europa, querem construir a Europa contra os Estados Unidos. Portugal não tem interesse em se juntar a elas. Mas devemos ter a consciência de que a União Europeia, se quiser defender eficazmente os seus pontos de vista e os seus interesses no mundo globalizado de hoje, necessita de agir de forma coesa, sem receio de colocar na balança o seu peso político e económico, e em coerência com valores e princípios básicos. Um bom entendimento com os Estados Unidos não pode ser alcançado à custa destes princípios. O mais importante desses princípios, válido tanto para Portugal como para a União Europeia no seu conjunto, deve ser o do respeito pelo direito internacional, em especial quando está em causa o uso da força. A sua observância é de importância decisiva para uma sã convivência a nível internacional. Portugal, pela diversidade dos seus interesses e pela variedade dos seus relacionamentos, deve ter, nesta matéria, uma posição clara.

2.Atlantismo versus europeísmo é um falso dilema para Portugal.

Atlantismo versus europeísmo é um debate esgotado que perdeu sentido para Portugal. Existem, naturalmente, em Portugal, diferentes sensibilidades sobre como abordar o tema das relações transatlânticas, quer no plano bilateral quer no plano das relações entre a União Europeia e os Estados Unidos. Em democracia, é perfeitamente natural que assim seja. Mas nenhuma força política em Portugal, nem mesmo ninguém de bom senso, pode hoje pensar que o atlantismo é uma verdadeira alternativa à integração na Europa, nem no plano da cultura política nem no plano dos nossos interesses vitais. Isolado, Portugal conhece os seus limites no relacionamento com os Estados Unidos. Pelo contrário, pelo facto de pertencermos à União Europeia, participando de pleno direito na formação da vontade desta, damos força à nossa voz, fazendo com que ela seja ouvida com mais atenção e respeito em Washington — e também no resto do mundo, inclusivamente lusófono, que é em grande parte atlântico. No plano económico, nem somos um destinatário significativo do investimento americano na Europa nem as nossas empresas têm a dimensão necessária para investirem nos Estados Unidos à escala das multinacionais de outros países europeus. No plano comercial, as nossas ligações económicas estão concentradas na Europa, porventura até de forma excessiva. Para Portugal, aderir à União Europeia representou um enorme salto no plano da credibilidade política e do desenvolvimento económico. Pertencer à União Europeia, participar de forma empenhada e situar-se na primeira linha do processo de integração, é a melhor — porventura a única — forma de defendermos eficazmente os nossos interesses.


Minhas Senhoras e meus Senhores

Procurei esboçar, nesta intervenção, uma perspectiva de conjunto sobre as relações transatlânticas, evitando, deliberadamente, debruçar-me em pormenor sobre o tema escaldante da actualidade: a crise no Iraque. Sobre esta matéria, sempre assumi uma posição clara, que está espelhada em numerosas intervenções que tive a oportunidade de efectuar antes e depois da guerra. Não me parece necessário, neste momento, revisitá-la. Os resultados da acção americana no Iraque desenrolam-se à vista de todos. Cada um de nós é livre de os apreciar. Só a história poderá retirar de todo este episódio conclusões definitivas.

Mas o Iraque não é o fim do caminho. Como procurei demonstrar, as relações entre os Estados Unidos e a Europa têm profundas raízes na história, são feitas de inúmeros interesses entrelaçados e alcançam em numerosas e variadas direcções. A questão do Iraque não é a primeira crise — e não será a última — que a relação transatlântica atravessa. Quem sabe, inclusivamente, se desta crise não se poderão retirar lições que permitam, no futuro, reforçar os laços entre os Estados Unidos e a Europa. Uma das principais virtudes da democracia é, afinal de contas, a sua capacidade de regeneração. Não nos devemos esquecer que os Estados Unidos e a Europa são dois dos maiores espaços de democracia no mundo, com tudo o que isso implica de debate e de tensão, mas também de flexibilidade e constante renovação.

Quero, por isso, terminar, com um voto de confiança no futuro das relações transatlânticas. Pelas razões que expus nesta intervenção, estou convicto de que, apesar das actuais tensões e dificuldades, o percurso histórico dos Estados Unidos e da Europa continuará a fazer-se lado a lado.