Discurso do Presidente da República no Foro ABC

Madrid
04 de Novembro de 2003


De novo, venho a Madrid para rever, no modo cordial e aberto que deve modelar os encontros e debates entre espanhóis e portugueses, alguns aspectos que hoje marcam o relacionamento entre os nossos dois países. Considero continuarem a existir, não obstante os notáveis progressos entretanto realizados, sérias lacunas – de parte e doutra – quanto a um mais adequado conhecimento de questões e até de sensibilidades que atravessam as sociedades dos dois Estados ibéricos. Por isso, foi com prazer que aceitei o convite para participar neste prestigiado "Foro ABC", importante lugar para partilha de ideias e esclarecimentos.

Ao agradecer aos organizadores, desejaria ainda sublinhar ser natural estar aqui convosco, pois tem sido constante a atenção que o "ABC" vem dedicando ao longo dos anos a Portugal, onde aliás o nome Luca de Tena recolhe o afecto reservado aos amigos de sempre.

Vivemos hoje um tempo novo: no Mundo, na Europa, na nossa Península. Repetimo-lo, um pouco por toda a parte, quase como um exorcismo, pois esta é uma idade de diversificados desafios e inquietações, por nela se cruzarem múltiplas incertezas, insidiosas ameaças, inesperadas vulnerabilidades. Ao mesmo tempo vai-se também alargando a percepção de que nunca como agora o nosso planeta assumiu de forma tão exacta a sua dimensão de aldeia global, ao podermos acompanhar, em qualquer canto recôndito da terra e de forma instantânea, os acontecimentos que marcam afinal a cadência e o pulsar da nossa vida quotidiana. Deste modo, e porque não podemos invocar um qualquer alibi de ignorância individual, somos bem mais do que testemunhas directas do nosso tempo, pois nos tornamos inteiramente co-responsáveis – como homens e cidadãos – das suas grandezas e misérias.

Desta responsabilidade decorre para os Estados e para os seus agentes políticos a exigência de defenderem os valores que subscrevem, de identificarem interesses comuns e formularem estratégias para os concretizar, de mobilizarem vontades e cooperações que reforcem políticas de entendimento.

Sublinho-o, pois, também deverá ser este o nosso caminho, de espanhóis, de portugueses, de cidadãos europeus, assim consolidando o rumo que hoje partilhamos – na Península e na União Europeia.

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Falar-vos-ei, por isso, do presente momento europeu e, em seguida, de alguns aspectos das relações luso-espanholas.

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Durante muitos anos, mesmo quando uma idêntica linha ideológica ligava os dois governos e nos isolava da restante Europa democrática, o relacionamento dos dois povos peninsulares sempre viveu nas margens equivocas de um discurso retórico. Mas com ele não se conseguia apagar a realidade do profundo vazio de políticas comuns, a escassez de intercâmbios culturais, o pouco significado dos laços económicos, a prática inexistência de recíprocos fluxos humanos.

Tudo isso mudou com a restauração das democracias ibéricas, e, sobretudo, após a adesão simultânea à então Comunidade Europeia.

Estamos agora inseridos num espaço que – por autónoma vontade política – vem construindo um destino comum. E este, bem o sabemos, está assente num quadro normativo e num acervo de princípios, valores, objectivos, disciplinas e solidariedades, que têm garantido paz, estabilidade e progresso aos Estados membros que o compõem.

Somos, por isso, Espanha e Portugal, mais fortes, porque recuperámos o nosso legítimo lugar de intervenção numa Europa cuja história afinal ajudámos a moldar. Mais fortes também por, no plano das relações bilaterais, esta escolha decisiva de regressar à matriz das nossas raízes comuns ter contribuído poderosamente para enfraquecer antigas barreiras psicológicas feitas de distanciamento e temores.

É pois acertado e decisivo para os dois países este caminhar conjunto pela estrada da construção europeia, cada um transportando consigo a sua identidade nacional, os seus patrimónios (designadamente culturais), e as mais valias das suas experiências históricas.

Deter-me-ia um pouco sobre o actual momento do projecto europeu por este ser um prioritário desafio comum, e por nos encontrarmos num período crucial de mudança: refiro-me à negociação do Tratado Constitucional e ao próximo alargamento.

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A adesão de dez novos países em Maio é uma decisão de enorme impacto político que devemos saudar – e Portugal desde a primeira hora o fez – pela profunda carga simbólica do seu significado histórico, pelo reconhecimento lúcido de que existia um dever moral a cumprir, pelo seu evidente valor geo-estratégico. Tenho-o repetido: este alargamento é um dever, uma oportunidade, uma necessidade. Mas sabemos também que pela sua inédita dimensão e diversidade de situações, este alargamento colocará à União problemas novos e alguns riscos para a coesão do seu espaço político-económico, que seria grave erro procurar minimizar. Impõe-se assim um também inédito esforço – mas não parece ser esse o sentimento prevalecente – para proteger princípios, objectivos, equilíbrios e instrumentos, que têm tornado possível até agora o sucesso do mais notável projecto diplomático do nosso tempo. Trata-se, afinal, de assumir com lucidez a opção do aprofundamento da União, a fim de evitar os efeitos debilitadores das várias assimetrias – políticas e económicas – trazidas pelo próximo alargamento.

Convém sublinhá-lo, pois esta é uma oportunidade para reforçar algumas traves essenciais para o projecto europeu, até agora subalternizadas face ao triunfo da sua componente económica. Refiro-me à necessidade de construir, com equilíbrio mas com determinação, uma política externa e de defesa comum que ofereça credibilidade a uma mais efectiva intervenção e influência da União Europeia na cena mundial; refiro-me também à vantagem de estabelecer o espaço de justiça e de segurança que vem sendo anunciado e que toca aspectos sensíveis para tranquilidade do viver dos nossos cidadãos. Refiro-me ainda à necessidade de dar um novo impulso à chamada Estratégia de Lisboa e manter vivas as ambições de desenvolvimento económico, de pleno emprego e de inovação tecnológica, então expressas com uma convicção que infelizmente os factos não têm acompanhado.

Caberá também neste caminho de aprofundamento não esquecer que o princípio de solidariedade tem constituído um poderoso cimento de coesão do espaço europeu, fomentando convergências, estabilidade e unidade. Recordo-o por Portugal e Espanha dele terem até agora beneficiado com resultados reconhecidamente decisivos. Mas inquieta-me que, perante a dimensão dos desafios do alargamento, se escutem discursos redutores quanto às políticas a prosseguir no âmbito da coesão económica e social, bem como abordagens minimalistas na discussão do próximo orçamento e da respectiva suficiência de meios.

Ora, mal irá a União se, no momento em que se expande de modo nunca dantes efectuado, não souber preservar estratégias de solidariedade que têm sido pilares do seu sucesso e de que depende a efectiva consolidação de uma unidade política europeia, assente na diversidade dos seus Estados membros e na adesão participativa dos seus cidadãos.

Vencida a batalha do Euro, sucesso emblemático que muitos consideravam utopia inalcançável, cabe-nos agora, até para adequada sustentabilidade da União Monetária, corrigir duas omissões: a primeira, tem a ver com a falta de uma efectiva e cada vez mais indispensável coordenação das políticas macro-económicas dos Estados membros que possa trazer complementaridade de desenvolvimento às disciplinas do Pacto de Estabilidade. Porque, como Jacques Delors afirma numa das suas fórmulas claras: o Euro protege mas não dinamiza.

Já a segunda lacuna, diz respeito à debilidade de intervenção externa da União e à urgente vantagem de lhe por termo. Não obstante o seu estatuto de principal contribuidora mundial para a ajuda ao desenvolvimento, a União Europeia não tem sabido utilizar esse instrumento, nem congregar vontades políticas para actuar como actor global credível, escondendo frequentemente as suas carências num excessivo pendor declaratório. O que está em jogo – no debate negocial sobre política externa e política de defesa europeias – envolve de forma aguda a credibilidade da União não só como vértice estruturante da estabilidade e paz mundiais, mas também como garantia da defesa e projecção dos seus interesses, abordagens e valores específicos.

Não há que ter medo das palavras: há que aprender com os nossos próprios erros. Os desentendimentos e crispações que a Guerra do Iraque fez emergir entre Estados membros e candidatos, com culpas generalizadamente repartidas, não deixou uma boa imagem da unidade europeia e da sua capacidade de intervenção na resolução de crises internacionais. Mostrou também mais uma vez as dificuldades de ultrapassar vontades de protagonismo para consolidar um pensamento estratégico europeu mais solidamente partilhado.

O presente momento oferece-nos uma oportunidade para refazer consensos e estabelecer metas e objectivos. Naturalmente que não é tarefa fácil, pois são várias – e no caso dos candidatos de leste – tragicamente recentes, as experiências históricas que talham diferentes sensibilidades e estabelecem diferentes quadros de prioridades. Mas os que têm acompanhado a construção europeia poderão notar com satisfação que se vem fazendo um caminho nem sempre linear mas progressivo no sentido de uma mais consistente política externa comum, agora finalmente mais credibilizada pela esperada criação de uma capacidade autónoma de defesa. Para que esta via resulte, importa que os princípios de igualdade e de não exclusão sejam cumpridos, sem o que a coesão do espaço europeu, ou a imagem da sua unidade e eficácia, sairiam extensamente diminuídos. Importa ainda que se deixe claro que o que nos move não é um qualquer desejo de rivalidade de poder com os EUA, que nem sequer o bom senso aconselharia. Não se trata de escolher entre duas opções, mas antes de assegurar uma União Europeia forte e coesa que, num estreito entendimento e respeito mútuos com os EUA, seja também determinante para a estabilidade e paz mundiais. E isto, na consciência de que nem sempre os respectivos interesses imediatos serão coincidentes, mas que são os mesmos os valores essenciais que inspiram a relação transatlântica.

Para Espanha e Portugal, cuja história teceu uma extensa malha de relacionamentos e presenças um pouco por todo o mundo, parece-me ser este o rumo a seguir, pois de uma mais sólida projecção internacional europeia poderão os dois Estados peninsulares colher úteis vias para defesa dos seus próprios interesses nacionais.

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Falar-vos-ei agora de certos aspectos do nosso relacionamento comum.
Partilhando no seio da União Europeia interesses, cumplicidades e objectivos, os nossos Países têm sabido construir em paralelo um estreito entendimento político bilateral que acompanha a inédita fluidez e dimensão dos relacionamentos das respectivas sociedades civis. Assistimos hoje a um crescente movimento de correcção do anterior distanciamento mútuo, como se finalmente a geografia ditasse a sua lei, impondo proximidades onde antes imperavam desinteresse ou desconfianças. É, afinal, um reencontro assente na solidez de duas orgulhosas identidades nacionais forjadas ao longo da História. Este é também um tempo que obriga os seus responsáveis políticos e agentes económicos, as suas elites ou simples cidadãos, a identificarem o essencial que liga os dois países, a promoverem afectos que os aproximem, a estabelecerem parcerias que os reforcem.

Desde logo, no plano cultural, existe ainda um longo caminho a percorrer para um mais consciente conhecimento mútuo do património comum ou daquilo que cada um hoje realiza nos vários domínios do saber, ou na produção literária e artística. Decerto que não é fácil inverter os efeitos de alheamentos antigos, com culpas repartidas, que continuam a projectar-se em inadequados e frouxos intercâmbios e cooperações, designadamente no campo científico e universitário.

Conhecemo-nos seguramente mais – e a dinâmica informal e muitas vezes espontânea das regiões da fronteira ilustra-o bem. Mas é imperioso que nos conheçamos melhor, de uma forma mais estratégica e estruturada, e menos refém dos grandes Centros Ibéricos, ou até desse importante elemento de compreensão e conhecimento recíproco resultante da crescente densidade dos fluxos turísticos. Considero ser este um eixo relevante de uma política portuguesa para o desenvolvimento sustentado das suas relações com a Espanha. Só mediante uma mais completa difusão da sua específica identidade e diversa oferta cultural, se poderá reparar um penalizador défice de imagem que ainda hoje subsiste e se projecta negativamente em vários níveis do relacionamento comum. Surpreende-me, por exemplo, a persistência da tradicional desatenção espanhola face à realidade portuguesa. Ou, como ainda recentemente ocorreu, a ligeireza de análise de reportagens sensionalistas, pouco compreensível de quem é vizinho e suposto conhecer-nos melhor. Afinal, sem saber ver que algumas das nossas próprias idiossincrasias, configurando por vezes um excessivo pendor para a autocrítica, escondem a consciência de um povo que sempre soube superar os seus grandes desafios nacionais – e históricos. Pertence-nos, obviamente, grande parte da iniciativa para corrigir estas situações de alheamento ou erro. Mas, importará notar que, sem esquecer as naturais diferenças de dimensão entre os nossos países, existe neste capítulo uma responsabilidade comum para procurar atingir planos de equilíbrio e de proporcionalidade. Porque estes devem constituir traves obrigatórias para a solidez e normalidade de quaisquer relações, sobretudo quando vivemos um momento de radical viragem em outros capítulos do quotidiano bilateral, como ocorre no económico ou no quadro de investimentos.

Como é sabido, o comércio intra-peninsular continua a crescer a uma taxa média muito superior ao nível global do comércio externo português. E se a Espanha vem consolidando, desde 1994, a sua posição como nosso principal parceiro comercial (é actualmente o nosso primeiro fornecedor), também Portugal se tornou para Espanha num importante mercado – o quinto em importância relativa -, para onde as empresas espanholas exportam mais do que para toda a América Latina no seu conjunto. Igualmente, a indústria turística, de valor capital para as duas economias, tem registado um rápido e notável incremento, permitindo a milhões de espanhóis e portugueses conhecerem-se melhor: Portugal continua a ser o primeiro destino para os turistas espanhóis, ao passo que o número de portugueses que visitaram a Espanha triplicou nos últimos cinco anos. E embora seja bem superior o número de espanhóis que nos visitaram no último ano (cerca de três vezes mais) os valores gastos pelos portugueses na sua estadia em Espanha foram praticamente coincidentes (cerca de mil milhões de euros). Espero que no próximo ano, com a realização do Euro-2004, esta tendência se altere, até por ser sinal feliz de que a selecção espanhola se qualificou para o torneio, como bem desejamos.

Idêntico quadro de mútuo interesse se observa no plano dos investimentos. Assim, a Espanha tem ocupado um lugar de topo no investimento directo estrangeiro em Portugal, mas caberá referir que nos dois últimos anos Portugal investiu mais no mercado espanhol, cerca de três mil milhões de euros em cada ano, fundamentalmente em serviços, tendo no ano passado triplicado o montante investido por Espanha. Porque o capital estrangeiro pode ser portador de modernidade e desenvolvimento, confio que os investidores espanhóis – próximos de nós pela geografia, cultura e história, continuem a olhar Portugal como vantajoso destino de intervenção.

Com efeito, a força impulsionadora do Mercado Único Europeu projectou-se também na Península, e depressa os empresários dos dois lados descobriram as novas potencialidades do Mercado Ibérico.

Naturalmente que a inelutável assimetria imposta pela diferente dimensão dos dois Estados nos respectivos tecidos empresariais e financeiros, bem como o diverso ordenamento político-administrativo, e até certas disparidades nas próprias legislações de apoio económico, colocam desafios, por vezes difíceis, às empresas portuguesas e à sua capacidade de penetração no mercado espanhol.

Aliás, esta assimetria reflecte-se numa maior notoriedade da actividade económica espanhola em áreas ligadas ao quotidiano do cidadão português, como nos sectores da Alimentação, da Banca, dos Seguros, do Vestuário e do Imobiliário, criando um multiplicador feito de visibilidade. E este, por ser fenómeno novo no relacionamento comum, vem alimentar algumas reacções negativas nas áreas mais em contacto com a pujança da concorrência vizinha.

Por minha parte, compreendendo embora alguns melindres do desafio, até pela tradição de maior abertura do mercado português, tenho-me empenhado em recordar que pertencemos a um espaço – a União Europeia – que aboliu barreiras económicas e comerciais no seu interior, justamente como suporte de prosperidade e desenvolvimento
Mas não pode deixar de ser notado como anomalia o acentuado e pouco saudável desequilíbrio que se regista no plano das presenças empresariais em cada um dos países. Actualmente, o desnível quanto ao número de empresas instaladas é francamente penalizador para Portugal, numa proporção de um para oito, bem maior portanto que as naturais diferenças existentes entre os dois mercados – em que a relação favorável à Espanha é menor – 1 para 4 em termos de população; 1 para cerca de 5,5 em termos de produto. Isto significa que apesar do esforço já feito, Portugal deverá investir mais em Espanha, não só pelas suas empresas de maior dimensão, mas também aproveitando a malha das suas PMEs, que apresentam apreciáveis capacidades tecnológicas e concorrenciais, podendo ser – pelas vantagens comparativas que em muitos casos apresentam – importante instrumento para uma maior penetração económica portuguesa no mercado espanhol.

Mas para isso importa que o mercado ibérico seja um espaço de genuína abertura e de confiança. Ora, quanto a este aspecto de correcção de assimetrias, considero útil dar-vos conta de preocupações que me vêm sendo repetidamente colocadas por importantes sectores da classe empresarial portuguesa e têm encontrado espaço nos meios de comunicação do país. Refiro-me à necessidade de protegermos a credibilidade do mercado ibérico, reforçando a transparência e equidade das regras de regulação. Este é um alicerce básico para a sua adequada solidez, bem como para o justo equilíbrio, proporcionalidade e igualdade de oportunidades que dele deverá decorrer para o espírito de iniciativa de ambas as redes empresariais da Península. Inquieta-me, por isso, a anómala assimetria de presenças em importantes empreendimentos ibéricos, pela crispação psicológica que daí poderá resultar. Porque ao contrário do que ocorre em Portugal, onde diversas empresas espanholas têm acedido com sucesso a relevantes concursos públicos, designadamente no quadro de realização de grandes infra-estruturas, surpreende-me que nenhum contrato significativo tenha sido obtido por empresas portuguesas, em igual sector, e isto apesar do extenso número de candidaturas e da sua reconhecida qualidade e solidez de oferta; espanta-me também que indicações idênticas me venham sendo transmitidas quanto a insuperáveis dificuldades de penetração no sector de distribuição de petróleo; admira-me ainda que empresas portuguesas, não obstante o seu interesse e as suas impecáveis credenciais, sejam sistematicamente preteridas nos concursos de privatização a decorrer em Espanha; preocupa-me, enfim, os condicionalismos que têm envolvido o processo de criação do Mercado Ibérico de Energia, seguramente um método a evitar se quisermos preservar um clima de equidade e confiança.

Julgo, por tudo isto, que existe aqui um urgente caminho de entendimento a percorrer, tanto mais que os Governos dos dois países estão empenhados em afastar eventuais tensões, como ainda recentemente ficou ilustrado pelo esforço de aproximação e convergência na difícil questão das pescas.

Para tanto, e para além naturalmente do esforço a realizar de modo particular pelo sector empresarial português, na ponderação de estratégias e colaborações, caberá também um mais efectivo papel dinamizador às estruturas associativas, às Confederações patronais, às Câmara de Comércio, e agora às duas COTEC. A elas cabe favorecer uma melhor informação, ou mesmo o debate de eventuais divergências, para alargar um indispensável clima de entendimento, ou para ponderar cooperações. O campo é extenso: seja em programas europeus, nomeadamente para desenvolvimento transfronteiriço, ou em projectos de cooperação científica e tecnológica, seja em mercados de Estados onde cada um dos nossos países construiu experiências e acolhimentos privilegiados, como em África, na América Latina e no Magreb.

Decerto que a vida empresarial tem as suas regras e métodos próprios, o seu território de secretismos e alianças, mas sem o esquecer, todos teremos a lucrar com um quadro mais activo de cooperação entre os diversos agentes económicos, animado e amparado pelas organizações que os congregam. A este respeito, até por ser uma iniciativa recente, e potencialmente importante neste contexto de cooperação, parece-me útil referir-me à COTEC portuguesa, que foi constituída, tendo por base o modelo da Fundación COTEC de Espanha. A ela se associaram até agora cento e duas empresas, algumas delas com uma forte ligação ao mercado espanhol, cobrindo sectores e clusters fundamentais da nossa economia, entre os quais a banca, as telecomunicações, o sector automóvel, o turismo, a indústria do papel e dos aglomerados de madeira, os moldes, a electrónica, os transportes e a grande distribuição. A importância que as associadas da COTEC Portugal representam na nossa economia pode compreender-se notando que, globalmente, o seu valor acrescentado bruto representava, em 2002, cerca de 20% do Produto Interno Bruto de Portugal.

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Também entre os países, quando se altera significativamente um relacionamento, abre-se sempre um período de aprendizagem, para ajustar comportamentos, ter em conta sensibilidades, ou reforçar sentimentos de confiança. Também assim tem ocorrido com os dois Estados peninsulares perante a mudança radical e positiva das suas relações: lentamente, pois a vida das Nações obedece a ritmos diversos dos humanos, se vem fazendo esse percurso de aprendizado que a todos afinal responsabiliza. Primeiro, no plano político, em que tem persistido a lucidez dos governos em defenderem uma estreita relação institucional, independentemente de coincidências ou diferenças partidárias de quem ocupa o poder em Madrid ou Lisboa; em segundo lugar, nas várias actividades por que se desdobra a sociedade civil, cuja robusta dinâmica própria tem influenciado positivamente a cadência das respectivas administrações, ampliando intercâmbios e iniciativas.

Comecei por afirmar que vivemos hoje um momento novo nas relações entre os nossos países. Atingimos no plano político bilateral uma rotina positiva, de que as Cimeiras (e estamos na véspera de uma delas) constituem vantajoso exercício disciplinador. Com elas se identificam objectivos, se lançam iniciativas, se revisitam calendários de programações conjuntas, ou reforçam mecanismos de resolução precoce de eventuais divergências. Temos melhorado as nossas ligações inter-peninsulares (nos últimos nove anos construíram-se doze pontes internacionais), assim correspondendo a expectativas das populações transfronteiriças; igualmente vimos projectando acessibilidades ferroviárias de alta velocidade, determinantes para um adequado aproveitamento das potencialidades do espaço europeu, para as quais esperamos um adequado acordo e rápida execução.

Partilhamos a consciência de que poderemos tirar melhor partido dos especiais relacionamentos que a História e as identidades linguísticas nos legaram (como no sub-continente americano e em África) ou que a proximidade geográfica nos proporciona (como o Mediterrâneo Ocidental), o que afinal já vimos concretizando, em alguns casos, por meio de parcerias úteis que convirá alargar. Num momento em que o eixo da União Europeia se desloca para norte, as extensas fachadas atlântica e mediterrânica da Península deverão pela valorização que delas fizermos, contrabater os efeitos de periferia resultantes deste desvio e constituir elementos de mais valia para uma mais coerente acção externa da União. Enfim, vimos assistindo a um desenvolvimento sem precedentes, mas ainda com alguma omissões a corrigir, do reencontro das duas sociedades civis e de intercâmbios humanos e profissionais há pouco tempo impensáveis, como é o caso dos numerosos estudantes portugueses em universidades espanholas, ou do elevado número de médicos espanhóis em centros de saúde públicos em Portugal. Mas há que fazer mais, nomeadamente no domínio da cooperação no combate à droga; numa melhor interoperacionalidade no campo da protecção civil; numa mais activa colaboração entre os centros de excelência presentes nas universidades da Península.

Também na União Europeia, conscientes das suas fortes identidades, têm os dois países sabido construir cumplicidades e colaborações, encontrando-se frequentemente lado a lado na defesa conjunta de interesses comuns ou de prioridades de acção estratégica, como acontece com as políticas relativas à América Latina, ao Magreb ou à África. No presente debate europeu, mesmo se não coincidimos na discussão institucional em que Portugal pugna por uma mais clara expressão do método comunitário, é idêntica a vontade de não deixar diluir o projecto integrador e de lutar pelo seu aprofundamento. É uma preocupação que nos junta na defesa do princípio da solidariedade, garante da coesão económico-social do espaço europeu (as decisões sobre as próximas perspectivas financeiras serão disso um teste determinante); na opção por uma PESD realmente credível; no estabelecimento de políticas eficazes para combate ao terrorismo, crime organizado, ou redes de imigração clandestina; enfim, numa mais ambiciosa abordagem do capítulo social, componente indispensável para um sustentado desenvolvimento económico.


Queridos amigos:

Quisiera dejarles una última palabra de confianza.

Uno de vuestros grandes poetas, Antonio Machado, nos advierte que: "caminante no hay camino, se hace camino al andar". Españoles y portugueses siempre lo hicieron así cuando trazaron nuevas rutas en los mares o recorrieron tierras de Africa, América o Asia. Hoy nuestro camino conjunto es claro y seguro: el de un estrecho entendimiento bilateral en el seno de una Unión Europea solidaria.

Sólo nos queda ampliarlo, de forma lúcida y paciente, reforzando el espíritu de amistad que -conociéndonos tan bien como nos conoce a los portugueses- S.M. el Rey Juan Carlos tantas veces ha proclamado como eje fundamental de nuestra relación.

No dudo que sabremos hacerlo.