Portugal: o 25 de Abril e o Futuro - Conferência proferida no ciclo “Conferências do Porto, 2004”

Porto
29 de Janeiro de 2004


ÍNDICE

Antecedentes do 25 de Abril

- Movimento estudantil e combate pela liberdade
- A questão africana


O 25 de Abril

- “Democratizar, descolonizar, desenvolver”
- As liberdades efectivas
- A integração europeia


Temas para o futuro

- Educação e formação
- Desigualdade social
- Assimetrias territoriais e descentralização
- Competitividade externa da economia
- Sociedade da informação e conhecimento
- “Reformas estruturais”
- O Estado e a Administração Pública
- A concertação social
- A demografia
- As instituições democráticas


Portugal: o 25 de Abril e o Futuro
Conferência proferida no ciclo “Conferências do Porto, 2004”

Decorreram três décadas sobre a “Revolução dos Cravos”. Este ciclo de conferências, organizado pela Câmara Municipal do Porto, cujo Presidente felicito pela iniciativa, abre as comemorações do trigésimo aniversário do 25 de Abril.

Comemorar uma data como esta constitui numa oportunidade privilegiada de afirmarmos a nossa identidade e de dignificarmos as nossas instituições. O 25 de Abril é outro nome de Portugal. Falarmos do 25 de Abril e do futuro, como me propus em resposta ao desafio do Dr. Rui Rio, é falarmos do futuro de Portugal, dos nossos filhos e dos nossos netos.

Para vos falar do futuro, terei que vos falar também do passado e do presente.

Falar-vos-ei do passado, não para estabelecer o lugar do 25 de Abril na História (não sou historiador), mas para identificar os traços essenciais do seu significado, os valores que permitiu recuperar ou introduzir de novo na vida portuguesa. Falar-vos-ei do presente para partilhar convosco uma atenção reflectida e empenhada nos desafios que enfrentamos. E falar-vos-ei do passado e do presente para reafirmar que os desígnios de Portugal e dos portugueses é através do 25 de Abril que se cumprem.

Antecedentes do 25 de Abril

Movimento estudantil e combate pela liberdade

Para mim, como sabem, o caminho para o 25 de Abril começou na Universidade e nos movimentos estudantis dos finais da década de 50 e princípios da de 60. Estudante, percebi, como muitos outros, que era o primado do Direito que separa uma sociedade civilizada do despotismo e da anarquia. Jovem, percebi, como muitos outros também, que era meu dever lutar pela liberdade e pela democracia. Dirigente do movimento associativo, procurei unir o maior número e congregar em torno de objectivos perspectivas e correntes com aspirações comuns às liberdade públicas e à sua prática.

A experiência da crise de 1962, tão marcante para a minha geração, determinaria os caminhos de muitos de nós, alguns dos quais foram presos ou forçados ao exílio, na oposição ao Estado Novo.

Em 1968, a nomeação de Marcelo Caetano para a chefia do Governo gerou uma expectativa de mudança. Professor da Faculdade de Direito de Lisboa, tinha sido Reitor da Universidade Clássica, defendendo com grande dignidade, precisamente em 1962, a autonomia universitária contra a violência do autoritarismo.

Pela minha parte, não tive ilusões quanto à possibilidade de uma evolução controlada do regime. Que a transição democrática pudesse ter origem no regime autoritário e corporativo, como acreditavam os reformistas, podia aceitar-se em tese, embora discutível. Mas que pudesse ter êxito sem a participação das forças que se tinham batido pela democracia não era certamente possível.

A questão africana

A evidente dificuldade dos responsáveis do Estado Novo em lidar com o problema africano não foi resolvida por Marcelo Caetano.

Salazar usara a questão para impedir qualquer debate político de fundo. A eclosão da guerra acrescentara a este pretexto alguma emoção, mas os sentimentos, com o andar dos tempos, também se esboroaram, mesmo sem debate democrático. A guerra africana não era de facto uma guerra de sobrevivência nacional.

Um povo não pode ser livre se oprime outros povos. Esta máxima filosófica e política aplicava-se ao Estado Novo no seu ocaso.

Qualquer exercício da liberdade política dos portugueses esbarrava com a bandeira de uma imaginária unidade nacional. Em nome dessa ficção cujos frutos se tinham há muito tornado serôdios, desse “cadáver adiado que procria”, Portugal auto-condenava-se ao isolamento internacional. A Pátria que “dera novos mundos ao Mundo”, era ostracizada pelos Novos mundos para cujo nascimento outrora dera um contributo decisivo. A Nação, que dera um impulso para que a Europa fosse uma realidade universal, era rejeitada pela Europa em processo de unificação económica e política.

Portugal era ostracizado porque não se dotara de um Estado democrático e de Direito e porque persistia em manter em África um colonialismo que há muito se tornara arcaico.

O 25 de Abril
“Democratizar, descolonizar, desenvolver”

Por tudo isto, o 25 de Abril, o golpe dos militares que derrubaram o Estado Novo foi uma oportunidade para nos reencontrarmos com a nossa história, connosco próprios.

Os portugueses reconheceram bem depressa nesse golpe uma ruptura que abria caminho à Liberdade. Os objectivos da revolução a que aderiram entusiasticamente – democratizar, descolonizar, desenvolver – pareciam por igual necessários e possíveis, sem que as aspirações, todas elas generosas e todas elas sem limite, encontrassem um ponto de ancoragem e uma forma de institucionalização.

As crises sucederam-se, vertiginosas e sem interrupção, durante um ano e meio. Era preciso fazer tudo, mas não havia condições para ultrapassar simultaneamente todos os obstáculos. Não se podia, sequer, tratar separadamente cada um dos três objectivos. Ou seja, não era possível institucionalizar um regime democrático prolongando o estado de guerra nas colónias, era inevitável acelerar a descolonização e fazer coincidir esse processo com a transição política interna, era indispensável que a consolidação de uma democracia política fosse acompanhada por uma estratégia nacional de desenvolvimento.

A história impôs o resultado final, os homens só fizeram o que puderam fazer. Cada um se empenhou na frente que julgou mais adequada. Convencido de que as consequências de uma ruptura entre o Movimento das Forças Armadas e os principais partidos políticos seriam fatais para a democracia, foi na reflexão e intervenção políticas ao lado da ala moderada do MFA que me apliquei.

O reconhecimento do direito de auto-determinação e da independência das antigas colónias portuguesas era, como se viu, inevitável e necessário. Tratava-se, no essencial, de garantir condições mínimas para a transferência de poderes e de assegurar um quadro de estabilidade para as relações com os futuros Estados independentes de língua portuguesa. Mas reconheço ter havido precipitações, tal como houve casos em que, imersos na escalada das crises internas, não pudemos cumprir todas as nossas responsabilidades, nem evitar os piores cenários de violência, das intervenções externas e da guerra.

Somos uma velha nação orgulhosa. Calámos, sem esquecer, e esperámos pelas condições internas e internacionais que tornassem possível restaurar a paz e o direito. Em Timor-Leste, uma comunidade mártir lutou, durante vinte e cinco anos, para recuperar a sua dignidade, até conseguir impor a sua vontade nacional, connosco a seu lado. No dia 20 de Maio de 2002, tive o privilégio de representar Portugal e a democracia portuguesa na proclamação da independência de Timor-Leste, em Dili. Nesse dia, pudemos encerrar, com honra, o ciclo da descolonização.

A revolução revelou também divisões políticas e sociais profundas entre os Portugueses. Não partilho a concepção, superficial e um pouco ingénua, dos que resumem a crise revolucionária às tentativas de tomada de poder por forças extremistas. As divisões que se exprimiram sobre a natureza do regime político ou acerca dos modelos económicos eram reais, para lá da sua expressão partidária ou da manipulação ideológica. Tal como noutras revoluções, o 25 de Abril abriu caminho tanto para a democracia, como para a igualdade. Sem a consolidação de um regime democrático, não era possível moderar as paixões igualitárias, e sem um quadro de pluralismo político seria impossível regular os conflitos e recuperar a coesão da comunidade nacional.

As liberdades efectivas

O regime democrático, nos termos da Constituição, “um Estado democrático de direito”, restituiu-nos a separação dos poderes, permitiu organizar partidos políticos, condição indispensável de uma democracia representativa. Permitiu que tivéssemos um Parlamento eleito em liberdade, representativo da comunidade política, capaz de gerar maiorias governativas eficazes e respeitadoras dos direitos da minoria e da oposição. Possibilitou que passássemos a ter um Presidente da República eleito por sufrágio directo e universal. Permitiu a revitalização dos municípios. Garantiu a independência dos Tribunais. Eliminou a noção de crime político, que pervertia a aplicação do direito penal. Acabou com a tortura, método de obtenção de informação para a instrução de processos penais. Deu-nos melhores meios de defesa da nossa vida e integridade pessoal. Deu-nos a possibilidade de organizarmos livremente as relações laborais, devolvendo a liberdade contratual a sindicatos livres e a livres organizações patronais. Deu-nos a liberdade de informação e acabou com a censura. Reconheceu-nos a liberdade de nos deslocarmos e de emigrarmos. Reconheceu-nos o direito ao bom nome e à reputação. A liberdade que o 25 de Abril nos trouxe foi traduzida em liberdades efectivas.

Estes são os valores essenciais do 25 de Abril. Este era o grande sonho da minha geração.

A integração europeia

Pelas razões que acima indiquei, a transição democrática não podia deixar de implicar paralelamente novos desígnios para Portugal. Quisemos modernizar o País, quisemos que ele voltasse a pertencer à Europa. A democracia uniu o seu destino a estes dois desígnios, que aliás se fundiram num só.

Foi uma decisão tomada com profunda convicção, a de efectivar a integração económica e política na Europa. Portugal é dos mais antigos países europeus. Se há Europa, ela terá que passar por aqui. É europeia – com um particular cunho universalista – a cultura portuguesa. Se há Portugal, ele tem que passar por ali. Para a Europa vão e da Europa vêm a maior parte das mercadorias de que precisamos. Pela Europa passou e continua a passar boa parte da nossa política de defesa e, portanto, da nossa segurança externa. Na Europa vivem muitos dos nossos emigrantes. Da Europa vêm hoje – cada vez mais – os nossos imigrantes. A Europa tornou-se pois a única via para Portugal.

Quisemos estar na Europa e participar activamente nas suas apostas. Estivemos na linha da frente do Euro e advogamos sem reservas o alargamento. Para nós o projecto europeu é uma garantia da nossa autonomia nacional. Estarmos na vanguarda da construção europeia é uma condição da nossa independência.

A integração europeia, já ninguém o contesta, foi crucial, tanto para a estabilidade do nosso estatuto internacional, como para criar condições indispensáveis ao desenvolvimento continuado das estratégias de modernização. Portugal, membro da Aliança Atlântica e da União Europeia, pôde empenhar-se numa política externa activa, designadamente em relação aos países de língua portuguesa, e recuperar a confiança indispensável para participar nas missões de paz das Nações Unidas.

Paralelamente, num quadro de estabilidade democrática, a sociedade e a economia transformaram-se e as nossas expectativas passaram a exprimir as exigências típicas dos europeus, em todos os domínios.

Contra os hábitos antigos do nosso pessimismo, a transição democrática portuguesa tornou-se um exemplo, seguido nas décadas posteriores, na Europa e na América Latina, até à revolução de 1989, quando, por sua vez, os países da Europa central e oriental percorreram o mesmo caminho da democratização e da integração europeia, como o testemunham os alargamentos sucessivos da Aliança Atlântica e da União Europeia.

Foi esta a ambição dos Portugueses da minha geração, que, não o nego, por vezes julgámos irrealizável, na luta difícil contra o regime autoritário, e, depois pela consolidação democrática. A grande transformação da democracia e da modernidade pôde realizar-se, num compasso rápido, porque arriscámos tudo na mudança.

Temas para o futuro

E, todavia, sinto entre nós, mesmo na nova geração que cresceu com o 25 de Abril – a geração da liberdade – um certo cansaço, uma perda de confiança nas nossas próprias capacidades e, pior, uma velha resignação, que reclama de nós o bom espírito da mudança. Sonho, ambição. Arriscar de novo.

Apesar de trinta anos de vida democrática e de transformações profundas, a sociedade portuguesa está longe de ter resolvido importantes bloqueamentos ao desenvolvimento, bem como desequilíbrios sociais manifestamente injustos.

Também é disso que vos quero falar um pouco agora.

Educação e formação

O primeiro lugar concedido a este tema tem uma dupla justificação: precisamos de mais e melhor educação para sermos uma sociedade mais desenvolvida, menos desigual e mais coesa. Foi precisamente neste domínio que o 25 de Abril encontrou o País mais distanciado dos outros países europeus.

Fizemos um grande investimento no alargamento da escolaridade básica de nove anos à generalidade dos jovens portugueses e no aumento das taxas de frequência do ensino superior. Dessa forma a Democracia enfrentou a dívida legada pelo Estado Novo.

Mas a chegada muito tardia de Portugal à generalização da educação de base teve um preço altíssimo, que continuamos hoje a pagar: níveis muito elevados de insucesso, saída e abandono precoces do sistema.

Não é legítimo pedir à escola que supra os problemas sociais e culturais que estão na base deste problema gravíssimo, mas talvez se possa pedir-lhe um esforço suplementar no sentido de ajustar as práticas pedagógicas às novas e mutáveis circunstâncias que, hoje, enquadram a formação das gerações mais jovens. Paralelamente, será indispensável, quanto a mim, garantir condições para que escolas e professores não se sintam isolados e impotentes face à magnitude e delicadeza de problemas com que se defrontam dentro e fora da sala de aula. E levar a sério a ideia de que os estabelecimentos de ensino são parte fundamental dos serviços públicos de bem-estar, que, portanto, devem ser apoiados por todos os outros elos da rede de protecção social dos cidadãos: emprego, cultura, justiça, reinserção social, autarquias.

Em paralelo com os problemas do insucesso e abandono, temos que resolver o problema da educação e formação de adultos pouco escolarizados, uma importante parcela da população activa. Essa é também parte da dívida que nos compete saldar.

Nenhum diagnóstico sério sobre as perspectivas de afirmação da economia portuguesa numa União Europeia alargada contesta a necessidade de atenuarmos rápida e significativamente o défice de qualificações profissionais da nossa população activa. Dispomos, nesta matéria, há já bastante tempo, de importantes consensos entre parceiros sociais e Governos. Não podemos continuar a adiar a concretização de medidas capazes de impulsionar uma melhor articulação entre o sistema regular de ensino e o sistema da formação profissional. Não é aceitável que continuemos a apostar, quando muito, em formações pontuais, e não num planeamento estratégico de acções de formação e de educação ao longo da vida.

Ultimamente, tem vindo a acentuar-se o número de desempregados com elevados níveis de instrução. Pode tratar-se de um fenómeno conjuntural, que a retoma da economia se encarregará de eliminar a curto prazo. Mas também pode constituir manifestação de alguma resistência do sector empresarial à criação de condições de inserção profissional qualificantes. Ora, sem a necessária valorização, por parte das empresas, das competências transmitidas pelo sistema educativo e de formação, jamais será possível obter taxas de retorno aceitáveis para o investimento em recursos humanos realizado no País durante as últimas décadas.

Este investimento, que o Estado concretizou, e que se repercutiu por exemplo na expansão do ensino universitário e politécnico, constitui uma das mais importantes formas de apoio à modernização do tecido empresarial. Sem embargo de o esforço público nesta matéria dever prosseguir, espera-se do mundo empresarial que saiba colocar no complexo xadrez da competitividade as suas próprias pedras, abrindo-se à requalificação da sua mão-de-obra.

Desigualdade social

A questão da educação e formação conduz à da produtividade e, daí, às condições da criação colectiva de riqueza.

Já lá irei. Entendo que devo abordar antes o tema da distribuição da riqueza.

Direi porquê. No conjunto de indicadores usados em comparações internacionais, e onde são assinaladas as debilidades do País em matéria de produtividade, encontramos também dados que, na perspectiva da repartição da riqueza, nos colocam igualmente em posição desfavorável. Além de serem baixos os salários médios, verifica-se a existência de elevadas proporções de trabalhadores auferindo salários muito reduzidos. Por outro lado, a distância entre a parcela de rendimento auferida pelos mais ricos e a alcançada pelos mais pobres é, em Portugal, francamente superior à média europeia. Nas famílias de rendimentos muito baixos, é alta a probabilidade de se gerarem factores de pobreza e exclusão social.

Ora, se me parece indispensável continuar a desenvolver políticas que se destinem a atenuar os efeitos mais penalizadores dessas formas de vulnerabilização, entendo do mesmo modo ser necessário actuar, com determinação, a montante, isto é, através de políticas sectoriais que os prevejam e previnam, e nomeadamente no núcleo duro das políticas de distribuição de rendimentos.

É a própria União Europeia que postula a necessidade de compatibilizar as exigências da competitividade com as da coesão social. Pois bem: penso que tal fórmula se arrisca a perder conteúdo político efectivo, se o reduto da distribuição da riqueza a que aqui me referi permanecer imune a reformas que combatam as desigualdades mais evidentes.

Assimetrias territoriais e descentralização

Outro problema não resolvido no Portugal Democrático: a persistência de acentuadas assimetrias de desenvolvimento no território nacional.

Sabe-se, hoje, que a dicotomia litoral/interior, continuando embora a expressar em termos globais um velho dualismo que marca negativamente o modelo de desenvolvimento português, já não é inteiramente adequada a dar conta da configuração precisa das referidas assimetrias.

A emergência e consolidação, nas últimas décadas, de pólos urbanos de média dimensão no interior geográfico do País atenuou a repulsão populacional em direcção aos grandes centros populacionais e bacias de emprego do litoral. Este facto não tem impedido – antes tem mesmo agravado, em certos casos – o processo de desvitalização económica e de declínio demográfico de extensas áreas do interior.

Encaro este problema com grande preocupação, dado o isolamento físico, psicológico e simbólico a que submete as populações do nosso espaço rural profundo, condicionando o exercício efectivo dos seus direitos de cidadania. As circunstâncias dramáticas dos incêndios do último Verão bem o revelaram.

Acontece que o próprio litoral geográfico do País tem gerado no seu seio autênticas e igualmente preocupantes periferias económicas e sociais, confrontadas com autênticos círculos viciosos de subdesenvolvimento.

Não tenho dúvidas em considerar que são grandes as responsabilidades do Estado no combate às desigualdades regionais de desenvolvimento, seja onde for que elas se localizem. Mas não creio que seja possível concretizar no terreno, em tempo oportuno e de forma integrada, as medidas que as circunstâncias exigem, sem realizar uma descentralização administrativa consistente.

Os municípios, actores de primeira linha na identificação e combate aos factores de atraso e de desigualdade na sociedade portuguesa, têm constituído a instância fundamental da descentralização administrativa. Sabemos, porém, que não deverá continuar a ser a única. Por três ordens de razões. Em primeiro lugar, porque as funções do Estado que podem e devem ser descentralizadas não são integráveis na actual configuração das competências jurídico-legais dos municípios. Em segundo lugar, porque as dinâmicas da coesão e da competitividade dos territórios exigem cada vez mais a gestão e a prospectiva de recursos transversais. Em terceiro lugar, porque sendo os municípios portugueses de um recorte geográfico médio relativamente elevado em termos europeus, se verifica que o nível submunicipal está em condições de ser estimulado, em correspondência aliás, com o impulso das populações locais, muito expressivo em diversas regiões do País.

Tenho, em consonância com esta análise, advogado o reforço institucional dos territórios, através de uma reforma descentralizadora que abranja os três planos: o plano municipal, o plano supra-municipal e o plano das freguesias.

As freguesias não podem deixar de ser revalorizadas, numa lógica de subsidiariedade. Os municípios poderão aceitar novas competências. Novas entidades, resultantes da aglomeração voluntária de municípios, surgirão para definir objectivos, partilhar responsabilidades e assegurar o governo de projectos e recursos comuns. Essa será a grande oportunidade para organizarmos os nossos territórios, combater as tendências para a fragmentação de uns e a concentração de outros, ou para a marginalização e o isolamento de outros ainda.

Competitividade externa da economia

Abordarei em seguida o tema da economia, que atravessa neste momento uma fase difícil. Não creio que a responsabilidade pela situação actual se possa resumir a uma conjuntura internacional desfavorável.

As razões mais determinantes dos actuais problemas da economia portuguesa radicam, fundamentalmente, na existência, por um lado, de desequilíbrios nas contas externas e nas finanças públicas – que constituem uma restrição ao crescimento económico – e, por outro lado, numa estrutura produtiva que ainda não é suficiente sólida e eficiente para responder com tranquilidade e segurança aos desafios da competição global.

Sobre a questão das finanças públicas pronunciei-me recentemente em Mensagem à Assembleia da República. Deter-me-ei por isso sobretudo em aspectos da estrutura económica portuguesa.

As transformações que ocorreram no mundo nos últimos 15 anos – desde a liberalização financeira à abertura de grandes economias, como a China e a Índia, ao comércio e aos capitais internacionais, passando pela integração das economias do centro e leste europeu na economia de mercado e em breve na União Europeia – configuram uma mudança de paradigma na economia mundial com vastas e profundas consequências na economia portuguesa. Este novo paradigma e a mudança de regime macroeconómico resultante da participação na união monetária europeia, fazem com que a saída da actual crise económica seja mais difícil e lenta do que as anteriores.

A saída da actual crise, atendendo ao estado das finanças públicas e ao endividamento da economia, terá de ser mais puxada pela procura externa do que pela procura interna. A esperada recuperação da economia europeia, sobre a qual aliás ainda pairam algumas incertezas, poderá chegar para fazer entrar a economia portuguesa na zona de crescimento, mas, só por si, não será suficiente para proporcionar o tipo e o ritmo de expansão económica que Portugal precisa para se modernizar e assegurar uma convergência futura duradoura com as economias mais desenvolvidas da União Europeia.

Para além do crescimento por arrastamento da economia portuguesa, induzido pela referida recuperação, é pois necessário definir e executar uma estratégia de desenvolvimento por impulso próprio, com objectivos bem definidos, instrumentos e capacidades técnicas adequadas e vontade e determinação políticas suficientes para a efectiva realização dos objectivos.

Exige-se, aqui, tanto dos responsáveis pelas políticas públicas como dos empresários uma visão estratégica e uma postura pró-activa, orientada para a instalação e o desenvolvimento das actividades de maior relevo no futuro. São, em princípio, actividades mais intensivas em capital, tecnologia e conhecimento e menos intensivas em mão-de-obra pouco qualificada, uma vez que estas tenderão a deslocalizar-se para paragens economicamente menos desenvolvidas.

Não quero com isto dizer que possamos descurar algumas das actividades tradicionais. Mas a competitividade mais relevante para a atracção de investimento, nacional ou estrangeiro, modernizador da economia, e para um crescimento sustentado é a que se baseia em vantagens estruturais. Isto é, aquelas que são garantidas pelo nível de educação e de formação profissional, a adequação das infra-estruturas materiais, a qualidade do sistema de investigação, a sofisticação do sistema financeiro, a estabilidade do sistema fiscal, a eficácia da administração pública, a celeridade do sistema de justiça.

A globalização e o alargamento da União Europeia colocam a economia portuguesa perante desafios que podem configurar ameaças ou oportunidades. Precisamos de melhorar o perfil produtivo e a competitividade das empresas e da economia para evitar a concretização das ameaças e para aproveitar o melhor possível as oportunidades, para o que me parece fundamental estimular e defender centros de racionalidade económica de base nacional.

Mas estes desafios impõem sobretudo um novo paradigma de competitividade para Portugal, obrigando-nos a basear o nosso modelo na capacidade de analisar, conceptualizar e prospectivar o desenvolvimento de novos produtos, serviços ou negócios.

Esta alteração de paradigma passa pelo estímulo à qualificação dos recursos humanos e passa igualmente por uma cultura empresarial baseada na inovação, na diferenciação, na eficiência e no empreendedorismo.

O que me leva directamente a um quinto tema do futuro.

Sociedade da informação e conhecimento

Portugal possui as peças que constituem o chamado sistema de inovação. O desafio que se coloca é o da articulação dessas diferentes componentes. Existem instituições, mas não funcionam em rede, e alterar esse estado de coisas é uma tarefa imperiosa. Uma cultura de inovação só se obtém por interacção, e as nossas fragilidades de pequena economia aberta ao exterior só poderão ser superadas se público e privado, se Estado, empresas e instituições sociais prosseguirem uma visão integrada e adoptarem formas estáveis de cooperação e parceria.

Um dos exemplos que pode ser apontado é o do relacionamento entre Ensino Superior/Investigação/Empresas. Há, aqui, muito a fazer.

A capacidade competitiva do tecido produtivo depende muito da investigação que se realiza no sistema científico e académico. Reforçar as ligações entre esses dois sistemas, que muitas vezes funcionam isolados e voltados para dentro de si próprios é uma tarefa que terá de ser levada a cabo se queremos criar inovação e melhorar a sociedade no seu todo. Não só as instituições de I&D e de ensino têm de estar aptas a colaborar com as empresas, mas também estas tem de aprender a procurar o conhecimento que existe nessas instituições e de que necessitam para resolver alguns dos seus problemas competitivos. A dinamização do sistema de inovação depende da capacidade de concretizar duradouramente parcerias entre Universidades/Politécnicos, centros de I&D, laboratórios de Estado e associados, por um lado, e empresas, por outro; entre a procura de serviços de I&D e intensivos em conhecimento por parte das empresas, e a aplicação dos conhecimentos e da investigação do sistema científico e tecnológico.

O enquadramento favorável à inovação está muito dependente das políticas e dos incentivos públicos, quer através da construção de infra-estruturas de suporte (tudo o que tem a ver com o desenvolvimento da Sociedade da Informação, como as redes de informação ou a massificação da banda larga), incentivos ao empreendedorismo, à capacidade de I&D das empresas e instituições de ensino ou ao desenvolvimento da procura de serviços intensivos em conhecimento. Aliás, uma procura pública exigente, de qualidade e orientada para a satisfação das necessidades dos cidadãos poderá ter um efeito catalizador, no mesmo sentido, junto do resto da sociedade.

Ao Estado compete também estar atento e dar resposta ao grave problema da info-exclusão.

Apesar dos progressos alcançados, apenas cerca de 40% dos portugueses utilizam a Internet. O acesso à Internet concentra-se sobretudo nos jovens, nas pessoas com mais formação e nos habitantes dos centros urbanos. O contraste é geracional: se é verdade que cerca de 90% dos jovens entre os 15 e 19 anos são utilizadores frequentes da Internet, 80% das pessoas com mais de 50 anos não conhecem nem usam. Temos de alargar rapidamente o leque, promover a experimentação, facilitar o acesso, de forma a permitir a massificação e a universalização do acesso a um mundo de oportunidades – nos domínios da informação, da cultura, da saúde, da educação, do entretenimento.

Estar ligado ao mundo, através da Internet, tratar por tu as tecnologias, saber tirar partido das mesmas é condição actual de cidadania. A construção da Sociedade da Informação em Portugal é um desígnio colectivo. Longe de se esgotar numa aposta tecnológica, exige um investimento redobrado nos portugueses, nas suas qualificações e nas suas competências. Não há verdadeira democracia sem acesso ao conhecimento.

A Internet traz-nos esta capacidade de ligar tudo a todos e todos a todos, em tempo real, independentemente das distâncias físicas, gerando uma nova dimensão de sociabilidade. Para nós, tendo em conta a nossa história de contacto cultural com outros povos, esta experiência de ligação faz todo o sentido, não pode deixar de ser mobilizadora.

Estes cinco temas do futuro, do nosso futuro colectivo, correspondem todos eles a domínios onde as políticas públicas, a sua qualidade, são fundamentais, mas o seu êxito depende do envolvimento das restantes instituições da vida social e económica, da percepção que estas tenham das prioridades nacionais e da sua mobilização para os objectivos apontados.

“Reformas estruturais”

Não falei de reformas. Apesar de muitas serem as vozes que, entre nós, recorrentemente exigem a realização de “reformas estruturais” urgentes, apontando com essa expressão para mudanças mais ou menos profundas no plano legislativo.

A minha convicção é que a persistência dos bloqueamentos e desequilíbrios que apontei não radica, muitas vezes, tanto em falta de iniciativa em matéria de elaboração de leis, como, sobretudo, no desfasamento entre intenções e conteúdos dos instrumentos legais, por um lado, e criação de condições para a sua aplicação efectiva, por outro.

A tendência para mudar de referenciais normativos, muito antes de estarem testadas com rigor a sua fecundidade e adequação práticas, é outro dos aspectos relacionados com a propensão que entre nós existe para reduzir a resolução dos problemas reais do País à aprovação formal de um conjunto de enunciados legais.

Tanta produção legislativa conduz a perturbações sérias nos sistemas de garantias e expectativas dos cidadãos e contribui para promover excesso de burocracia, sobreposição de funções e de serviços da Administração Pública, discricionaridade no relacionamento com os cidadãos-utentes, falta de transparência da máquina do Estado. Contornar a lei e os enquadramentos institucionais formais, quando não mesmo procurar vias de resolução dos problemas à margem da legalidade, pode, então, tornar-se, para alguns, a resposta mais fácil às sinuosidades que se lhes colocam.

Há razões para crer que a disseminação de algumas modalidades de economia informal, responsável pelo desrespeito de direitos sociais elementares, de princípios básicos de sã concorrência e de equidade fiscal, e que tantos prejuízos e distorções provoca no tecido empresarial português, é, em parte, fomentada pela incoerência e complexidade supérflua de muitos enquadramentos institucionais em vigor.

Apetece dizer, nestas circunstâncias, que a promoção do civismo e do respeito pela autoridade do Estado passa, em parte, pela capacidade deste último para criar instituições eficazes, fiáveis, consistentes – numa palavra, credíveis.

O Estado e a Administração Pública

Não deixo de reconhecer, no entanto, a necessidade de se proceder a uma reforma da Administração Pública, em muitos aspectos excessivamente concentrada e burocratizada.

De facto, a indiscutível modernização da economia e da sociedade verificada nas últimas décadas deixou intacta parte da estrutura funcional da Administração Pública e pôs em questão o papel do Estado na organização da vida social. Na Administração Pública radicaram-se factores de bloqueio ao desenvolvimento, pelo que a respectiva reforma se transformou num ponto decisivo para o futuro, por razões económicas e financeiras, certamente, mas também pelas suas implicações nos factores qualitativos do crescimento, na competitividade externa e nas aspirações de qualidade de vida dos cidadãos. A fixação de uma doutrina essencial sobre as missões e a função reguladora do Estado constitui, assim, um importante ponto de orientação para o futuro.

É tempo de terminar, mas não sem antes referir, agora sob forma meramente indicativa, dois outros temas que reputo cruciais do futuro.

A concertação social

Os vinte anos de experiência que leva a concertação social mostram como foi marcante na evolução da democracia portuguesa, mas evidenciam, igualmente, que muitas das suas potencialidades ficaram por desenvolver.

Na verdade, é indispensável que a concertação social seja mesmo permanente, em vez de se limitar a actos pontuais. Deveria assentar no seu dinamismo próprio, e não viver exclusivamente em função de uma agenda governamental. Impõe-se que aborde as questões fundamentais da sociedade e da economia, não se restringindo à preparação de medidas de política. E seria desejável que se efectivasse a todos os níveis, no quadro duma cultura de consenso que tanta falta nos faz, inspirando e facilitando o esforço permanente de diálogo social e de negociação.

A demografia

É uma questão distinta das anteriores, uma tendência pesada, dificilmente controlável em si mesma, mas um indiscutível reflexo das condições da sociedade, dos seus valores, juízos e expectativas. A demografia é um constrangimento para o futuro de Portugal a todos os níveis. A sua evolução recomenda, pelo menos, a ponderação de políticas dirigidas, em particular, a uma nova visão da política de imigração.

As instituições democráticas

Deixei para último lugar este tópico, que respeita ao processo de tomada de decisão de todos nós, o que permite a Portugal ser Portugal. Depende de cada um de nós e em certo sentido depende só de nós.

Temos muito que aperfeiçoar o nosso viver colectivo e certamente também o funcionamento das nossas instituições democráticas. É preciso aumentar a qualidade da vida pública, aperfeiçoar a democracia e revalorizar a actividade política. Entre outras instituições, mencionam-se, pela sua importância nuclear no funcionamento de um verdadeiro Estado de Direito, os Partidos, o Parlamento e o sistema de Justiça, aqui mencionado independentemente da polémica a que tem sido sujeito.

São as instituições democráticas que nos permitem, a todos e a cada um dos portugueses definirem e concretizarem as suas opções doutrinárias, apoiarem o que está bem e corrigiram o que está mal.

Nesse sentido, velar pelo aperfeiçoamento da democracia e do Estado de Direito é dar continuidade ao que de mais essencial o 25 de Abril nos legou. Reencontrarmo-nos connosco próprios.

A liberdade é renovada todos os dias pelo exercício dos direitos, no quadro de uma República dotada de autoridade legítima. E é a única solução para Portugal e para os portugueses.

Com a liberdade tudo é possível. Conservar a paz e enfrentar os nossos problemas. Com toda a confiança.