Discurso de SEXA o PR por ocasião da Homenagem ao Prof. Carrillo Salcedo

Universidade de Huelva
26 de Outubro de 2004


Senhor Presidente da Junta da Andaluzia
Senhor Reitor da Universidade de Huelva
Autoridades
Minhas Senhoras e Meus Senhores
Meu Estimado Amigo, Prof. Juan António Carrrillo Salcedo

Alguns dos presentes poderão interrogar-se sobre a natureza da presença do Presidente da República de Portugal na Universidade de Huelva num acto essencialmente académico de homenagem a um ilustre catedrático de Direito Internacional. Mas se observarmos o perfil de académico, a personalidade e o estatuto de humanista e, principalmente, os laços de amizade que há mais de 20 anos me unem ao Prof. Carrillo Salcedo, facilmente perceberão a razão da minha presença aqui, neste acto que tenho o gosto e a honra de presidir.

Com efeito desde que nos inícios dos anos 80 conheci e me habituei a admirar as qualidades profissionais e pessoais do homenageado, desenvolvendo actividade comum na Comissão Europeia dos Direitos do Homem, no Conselho da Europa, foi fácil observar e reconhecer o mérito do jurista e a excelência do humanista no seu labor na defesa dos Direitos Fundamentais e na sua contribuição para uma aplicação mais dinâmica dos princípios contidos na Convenção Europeia dos Direitos do Homem. Ao mesmo tempo fomos desenvolvendo laços de solidariedade e amizade que perduram até aos dias de hoje.

Relembro com saudade que depois do advento da democracia na Península Ibérica e da ratificação da Convenção Europeia dos Direitos do Homem por Portugal e Espanha, o meu trabalho na Comissão Europeia dos Direitos do Homem, em Estrasburgo, contou com a preciosa ajuda e orientação de ilustres professores, donde destaco a figura amiga, disponível, sabedora e competente do Prof. Carrillo Salcedo. O seu saber e a sua colaboração atenta e amiga para comigo, único advogado que aportava a minha experiência enquanto tal à Comissão, são momentos que não se esquecem pela vida fora, independentemente dos cargos que se ocupam.

Juan António Carrillo Salcedo é Catedrático de Direito Internacional Público na Faculdade de Direito da Universidade de Sevilla, tendo sido anteriormente Catedrático de Direito Internacional Público e Direito Internacional Privado nas Universidades de Granada e Autónoma de Madrid, bem como Professor na Academia de Direito Internacional de Haia.

Entre outras muitas Universidades e Centros de Investigação, o Prof. Carrillo Salcedo foi Professor convidado da Universidade de Paris, do Institut des Hautes Etudes Internationales de Paris, do Institut International des Droits de l´Homme, de Estrasburgo, no Collège d´Europe, em Bruges, do Institut Universitaire des Hautes Etudes Internationales, de Genebra, do Centro de Estudos Sociais da Faculdade de Economia, da Universidade de Coimbra, da Faculdade de Direito da Universidade de Atenas, e Investigador no Instituto Universitário Europeu de Florença.

Carrillo Salcedo foi também membro da Comissão Europeia dos Direitos Humanos, Magistrado do Tribunal Europeu de Direitos Humanos e do Tribunal Permanente de Arbitragem de Haia.

Acabo de recordar perante tão distinta assembleia, o que todas já sabíamos; o Prof. Carrillo Salcedo é um homem que tem dedicado a sua vida ao serviço da Academia e da coisa pública, é um jurista prestigiado, que prestigia a sua classe, é um intelectual comprometido com os valores da cultura, da ciência e do humanismo, é um cidadão empenhado na luta pela democracia e pela dignidade da pessoa humana.

E é recordando o seu trabalho em prol dos Direitos Humanos e tendo em atenção as VI Jornadas de Direito Internacional Humanitário, que com este acto também encerramos, que me permito transmitir-vos algumas ideias sobre esta área do Direito e os conflitos armados, por vezes tão esquecida nos debates e reflexões internacionais, mas de uma actualidade e importância unanimemente reconhecidas.

Senhor Presidente,
Senhor Reitor,
Minhas Senhoras e Meus Senhores

Um olhar atento para trás confirma que o Direito Humanitário foi construído laboriosamente como conjunto de normas pensado para um determinado tipo de conflitos. Numa sociedade internacional em que só os Estados eram sujeitos “reconhecidos”, a humanização da violência representava objectivo ambicioso e dos mais nobres. No entanto, só regulava os conflitos militares que opusessem aqueles actores internacionais dominantes, aquilo que na linguagem comum se designava por uma simples palavra: a guerra.

O direito da Haia e o direito de Genebra (menos aquilo que agora se baptizou como direito de Nova Iorque) estavam quase em exclusivo pensados segundo este paradigma. E, quando a regra conhecesse excepção, era certo que os Estados tendiam a olhar com desconfiança para algo que lhes retirava, mesmo que simbolicamente, o exclusivo da violência regulada na esfera internacional.

Sucede porém que na ultima década do século passado se compreendeu, creio que de forma definitiva, que com a nova ordem internacional anunciada se colocavam difíceis desafios ao Direito Humanitário. Uma forma de analisar esta evolução passa, porventura, pela percepção de manifestações de violência que assumem relevância internacional, muitas delas tendo como vítimas privilegiadas a população civil. Assim, se antes se olhava quase em exclusivo para a violência Estado-Estado, ainda que com a matiz dos conflitos armados internos internacionalizados, ao Direito Humanitário importa agora, directa ou indirectamente a violência Estado-grupo, Estado-indivíduo e, cada vez mais, indivíduo-indivíduo.

Cada uma destas novas dimensões frutificou na sedimentação de regimes distintos, mas reflectiu-se depois em novas necessidades humanitárias, que não tem sido fácil enfrentar de forma consistente.

Veja-se o plano da violência Estado-indivíduo. A violação sistemática e brutal de direitos humanos pode ser encarada como fundamento discutível para um conflito armado interestadual (na hipótese, por exemplo, da que é conhecida como intervenção humanitária), mas, por outro lado, poderá ainda suscitar uma resposta armada por parte das vítimas e, assim, ascender ao patamar de um conflito armado interno, de contornos muitas vezes difíceis de desenhar – desde logo, porque o Governo tenderá a recusar que tal conflito se verifique ou a reconhecer a existência de um opositor.

Olha-se depois à violência inter-grupal, com fluxos infindáveis de vítimas, de refugiados e de deslocados internos e vislumbra-se como o humanitário estabelece pontes cada vez mais fortes com o Direito Humanitário, sempre seu parente próximo.

Tudo de facto parecia mais “simples”!

Tradicionalmente, a declaração de guerra por um Estado conduzia, na esfera jurídica, a um estado de guerra. A guerra distinguia-se com clareza da paz, por actos formais: a montante, aquela declaração, a jusante, o tratado de paz. A Carta introduziu depois no jargão legal os conceitos de uso da força e ataque armado, mas só foi alcançada clareza razoável quando, nas Convenções de Genebra de 1949, o termo conflito armado é tido como pressuposto da aplicação do direito humanitário.

Nos nossos dias, porém, a proliferação e diversificação dos sujeitos activos da violência mostra como as Convenções de Genebra e respectivos Protocolos Adicionais, verdadeiros pilares civilizacionais e de dignidade, estão sujeitas a desafios imprevistos. É verdade que, se a grande maioria dos conflitos armados ocorre no interior de um Estado, ainda que com a possível intervenção de terceiros, nem os conflitos armados internacionais estão imunes a zonas cinzentas e problemáticas. Na intervenção militar no Kosovo, discutiu-se de forma apaixonada se o objectivo dos “zero mortos”, aliás realizado, respeitava o Direito Humanitário; no Afeganistão, perguntou-se se o recurso a certo tipo de armas não resultava na impossibilidade prática de distinguir combatentes e civis; e nunca como no recente conflito iraquiano terão sido tão invocadas as Convenções de Genebra e sujeitos a crivo tão crítico os métodos e forma de condução das hostilidades.

Mas, como atrás referi, são formas de violência até agora desconhecidas, resultantes do surgimento de novos opositores (de um novo inimigo), que justificam uma reflexão ponderada, mas urgente, sobre o âmbito e conteúdo do Direito Humanitário.

Aqui, o 11 de Setembro representa um marco indelével e de primeira grandeza. Todos temos presente a terrível tragédia que há pouco mais de três anos se abateu sobre os Estados Unidos e, em particular, sobre as Torres Gémeas em Nova Iorque. Esses ataques causaram milhares de vítimas, de quase uma centena de nacionalidades, às mãos de uma organização terrorista que tem confirmado não conhecer fronteiras na violência nem distinguir combatentes de não combatentes, como nos lembrou recentemente a tragédia do 11 de Março.

Estes factos traumáticos, repetidos pelos quatro cantos do Mundo (de Bali a Istambul, da Arábia Saudita ao Egipto) abalaram muitas das nossas certezas, porque se trata agora de definir quais as respostas legítimas de um Estado a ataques terroristas, organizados e preparados noutro Estado mas executados por actores não estaduais.

Assim se compreende que, logo no 11 de Setembro, a primeira dúvida fosse tipológica. Tratava-se de um “acto” terrorista, ainda que em gigantesca escala, ou de um “ataque armado”? Aqueles ataques representavam o início de um “conflito armado”, ou tratava-se do começo de uma “guerra”?

Em última instância, falou-se de uma “guerra contra o terrorismo”. O termo fez escola, mas não é fácil enquadrá-lo no Direito, por ser empresa torturada a definição dos contornos desta “guerra”, e contra que “terrorismo”. Porém, uma realidade é indesmentível: no imaginário colectivo, e na prática recente dos Estados-alvo, é agora muito mais ameaçador o terrorismo – e em especial destaque a Al-Qaeda – do que o perigo representado por outros Estados.

Por conseguinte, a “guerra” crucial dos nossos dias opõe o Estado a um, a vários entes não estaduais e dificilmente localizáveis “num” território. Naturalmente, como mostrou cruamente o conflito no Afeganistão, continua a ser possível associar uma organização terrorista a um Estado. Mas o Afeganistão prova também que, realmente, estamos colocados perante conflitos armados de natureza distinta de tudo o que até agora tínhamos conhecido. A primeira dificuldade, ainda hoje obsessiva, é consequência do carácter “invisível” e quase intangível do inimigo, e implica logo o questionar da distinção que se pretendia clara entre combatentes e não combatentes, e, a partir desta, do que era um alvo militar legítimo.

A dúvida é tanto mais angustiante quanto no Protocolo Adicional I às Convenções de Genebra se dera um passo normativo fundamental, porque ali se codificou o princípio da distinção, que exige a diferenciação permanente num conflito armado entre a população civil e os combatentes e entre objectivos militares e aqueles que o não são, devendo estes ser sempre salvaguardados. Também pela primeira vez, aquele instrumento afirmou o princípio da proporcionalidade na condução das hostilidades, em aplicação do qual mesmo os ataques contra alvos lícitos só o serão se as baixas “colaterais”, termo já por si detestável, não forem excessivas.

Este acquis sofreu o embate de uma realidade nova. O conflito armado (em sentido estrito) ainda pode ser reconduzido a um quadro aparentemente tradicional, formalmente interestadual. Na prática, a natureza e substância do conflito já é outra. Consequência directa do 11 de Setembro, as hostilidades iniciadas em Outubro de 2001 tinham como partes formais os Estados Unidos e seus aliados e, do outro lado, o Afeganistão, ou, como na altura foi insistido, o regime talibã.

Materialmente, no entanto, a Al-Qaeda tinha já sido erigida em parte. Não estadual, mas sem dúvida parte. E, mesmo para aplicação do Direito Humanitário, como classificar os seus membros, uma vez que, não sendo com certeza população civil, era contestado que pudessem beneficiar do estatuto de combatente? Confundindo-se com a população civil, como os atingir ou capturar? Como seleccionar os alvos legítimos? Como respeitar os princípios da distinção e da proporcionalidade? Ditas as coisas de forma mais clara, como avaliar se, numa e noutra situação, o direito de Genebra estava a ser respeitado?

Perante estas questões fundamentais, nem sempre as soluções no terreno e no debate jurídico que se seguiu foram consensuais. Foram invocadas novas categorias, como a do combatente ilegítimo, que ficaria totalmente de fora da esfera de protecção internacional, num limbo jurídico onde, no limite, nem o direito interno lhe valeria. Declarou-se que este combate era atípico, justificando soluções atípicas.

Mas talvez a questão seja até mais vasta. Se as organizações terroristas são agora materialmente parte num “conflito”, como regulá-lo segundo normas de direito humanitário se, aparentemente, este é só aplicável, no sentido de Genebra, a casos de “guerra declarada” ou de “qualquer outro conflito armado” entre duas ou mais das partes contratantes? Esse é o dilema. Mas essa é também a tentação do vazio a que se torna fundamental resistir.

Triste seria que, nesta longa caminhada em direcção a patamares de decência e humanidade mínimos lá onde os homens pegam em armas (porque é isso o Direito Humanitário), viéssemos a perder o rumo por obra e empenho daqueles que mais profundamente desprezam a decência e a humanidade – os que matam inocentes porque, para eles, todos são responsáveis.

Dir-se-á que, perante adversários tão implacáveis, não podem ser invocadas as regras quase cavalheirescas (este é um lugar-comum habitual) do Direito Humanitário. Mas não será essa, precisamente, a grandeza possível daquelas regras, vinculando-nos mesmo que a outra “parte” não faça?

Senhor Reitor,
Senhor Professor Carrillo Salcedo

Ao honrar personalidades merecedoras da nossa admiração, figuras que edificam a cultura e a ciência e que representam símbolos vivos dos valores imutáveis da Humanidade, esta Universidade de Huelva reclama as causas que esses vultos encarnam, proporcionando modelos de conduta às novas gerações.

Com o Homenageado de hoje, dá esta Universidade mais um passo no reconhecimento de que o saber também o é de experiência feito, abrindo-se nas fragmentadas incertezas, mas também nas prodigiosas encruzilhadas dos nossos dias, a novos espaços e novas dimensões.

Termino. Permita-me Magnífico Reitor que saúde efusivamente o Homenageado, Meu Querido Amigo, Prof. Carrillo Salcedo, bem como esta Academia, que assim potencia a sua riqueza intrínseca, revivificando o pleno sentido da universalidade.