Discurso de SEXA o PR por ocasião da Entrega da Medalha de Ouro da ordem dos Advogados

Lisboa
26 de Outubro de 2004


Senhor Bastonário,
Excelências,
Meus Colegas,
Minhas senhoras e meus senhores,

Procurei cumprir, desde sempre, o desafio que é projecto de todo o homem livre - estar na luta pela liberdade de todos.

E nessa luta, exigiram os tempos vários, e exige a conjuntura actual, que a justiça seja uma trincheira incontornável, onde se joga, como tem sido sublinhado em vários registos e quadrantes de opinião, a própria viabilidade de uma sociedade democraticamente adulta.

Estive e estou aí; e é dessa trincheira que agradeço, do fundo da cidadania, este ouro feito Medalha, com que a nossa Ordem quis singularizar o percurso que tenho realizado.

Foi nele que recebi a lição de dois vultos enormes da advocacia, que honraram a profissão como poucos, e fizeram da cidadania a sua virtude – os Drs. Salgado Zenha e o Bastonário Almeida Ribeiro, queridos amigos, cuja memória quero convocar, nesta cerimónia, para me acompanhar no agradecimento, aos Bastonários Osório de Castro e José Miguel Júdice, pelas palavras amigas com que acabam de me distinguir, e que representam, por se tratar de figuras primeiras da advocacia portuguesa, um acrecido estímulo para prosseguir no combate pela Justiça.

Minhas senhoras e meus senhores,

Não me tenho cansado de sublinhar que ser Chefe do Estado não é profissão, é função, e que, antes e depois das coisas públicas, sou, sobretudo, advogado.

E é por isso que não há maior honra do que estar hoje, aqui, a receber o mais alto galardão da nossa Ordem.

Não esqueço que esta distinção tem tudo a ver com uma vida de luta para que seja dado a cada um o que de direito lhe pertence, que é a razão última de se ser advogado.

Mas ela é, também, o reconhecimento de uma continuada intervenção cívica e política, ao longo dos anos, em favor da reforma da justiça, que continua à espera que a sua organização e funcionamento possam corresponder, finalmente, ao modelo de liberdade e de democracia inscrito na Constituição da República.

Nessa reforma, muito se exige aos advogados, que sendo os últimos na ordem protocolar da Justiça, têm estado, todavia, na primeira linha das intenções e projecto de mudança, como evidencia o Congresso da Justiça, por eles lançado, e de que, pese embora o esforço de todos, foram, tantas vezes, o motor mais entusiasta. O que nada admira.

É que aos advogados cabe levar até à Justiça os direitos e os interesses que exigem protecção, e, por essa via, exercerem a imprescindível mediação entre os mecanismos formais de aplicação da justiça - os tribunais - e a generalidade dos cidadãos.

E, por isso, conhecem, de um posto de observação privilegiado, o sem número de disfunções de que o sistema judiciário padece, sentindo, de um modo particular, a necessidade inadiável de lhes pôr cobro.

Porque assim é, muito terá de lhes ser pedido, em informação e opinião, para que a reforma se faça com eficácia.

Mas não só: eles terão de ser, ainda, os primeiros a prescindir das rotinas instaladas, dos preconceitos feitos argumento, e mostrar-se cooperantes e abertos às exigências dos novos modelos.

Estou certo de que os advogados darão resposta condigna a este desafio, e mostrarão, uma vez mais que a dignidade da profissão continuará a ser, antes de tudo, servir.

Minhas senhoras e meus senhores,

Os acontecimentos judiciários que, nos últimos dois anos, têm ocupado parte significativa do palco mediático, propiciaram, numa democracia de opinião como é a nossa, uma generalizada convicção de que a reforma da Justiça é condição essencial para que haja uma cidadania suficiente.

E com isso ficam colocados, na ordem das urgências, temas como o quadro de melhor legitimação democrática das magistraturas e da sua responsabilização, a organização do território judiciário, a estrutura e atribuições dos tribunais superiores, a formação dos agentes da Justiça, o regime de recursos, e o reforço, sobretudo na fase de inquérito, dos direitos de arguidos e de vítimas, para citar apenas alguns dos temas mais significativos.

Uma melhor legitimação democrática das magistraturas e da sua responsabilização terá de abrir caminho para que, sem perda da indispensável independência da magistratura judicial, e preservando-se a não menos indispensável autonomia do Ministério Público, se realize, finalmente, no judicial, a plena interdependência e cooperação de poderes do Estado, e se criem condições para que Governo e Assembleia da República exerçam, eficientemente, as suas funções em matéria de política de justiça, incluindo a política criminal, como exige, aliás, a Constituição da República.

Política de justiça que é indissociável de uma adequada organização do território judicial, que terá de ter em conta que as instituições judiciárias não podem entrar na lógica de aplicação de fundos ou de resposta a reivindicações autárquicas, mas são antes de mais uma exigência de eficácia, por cujos critérios deverá ser aferida uma divisão e organização territoriais, feita, tantas vezes, ao arrepio da racionalidade que lhes é própria.

Com este tema, cruza-se o dos tribunais superiores, cujos quadros e regime de funcionamento não podem estar à mercê quer de um sistema de recursos inaceitavelmente generoso, sobretudo no Supremo Tribunal de Justiça, quer de fundadas expectativas de ascensão profissional dos magistrados, cuja satisfação não tem de passar, necessariamente, pelo acesso aos tribunais superiores.

Importa, nesta linha, ter em conta o regime de avaliação do desempenho das magistraturas e de progressão nas respectivas carreiras, para que se promovam, sempre, as boas práticas e o mérito, e se encontre um estatuto de progressão profissional e remuneratória que deixe de estar ligado ao sobredimensionamento dos quadros dos tribunais superiores.

E depois a formação, onde importa revisitar a necessidade de abater egoísmos e de promover hábitos de convivência, a aconselhar o chamado tronco comum de formação das profissões forenses, de par com o aprofundamento das disciplinas relativas aos direitos fundamentais, claramente exigido pelas vicissitudes da prática judiciária dos últimos anos.

Todos estes temas evidenciam que a reforma da justiça não pode ser concebida como mera resposta às interpelações da conjuntura.

O que não impede que sejam consideradas as várias questões que, ultimamente, se têm suscitado no domínio do processo penal, onde importará reforçar, sobretudo na fase de inquérito, os direitos de arguidos e de vítimas, e libertar o sistema processual de toda uma tessitura dilatória, que contribui, decisivamente, para a sua lentidão. Tudo exuberantemente demonstrado, à vista de todos, nos processos judiciais que têm estado mais em cena.

Por eles se vê que não faltava razão ao Presidente da República quando se referia ao excesso de garantismo em determinadas áreas, excesso que convivia e convive, como, nas mesmas ocasiões, sempre sublinhei, com inaceitáveis áreas de desprotecção de vítimas e de arguidos.

Minhas senhoras e meus senhores,

Este enunciado exemplificativo de temas, que privilegia, naturalmente, áreas mais críticas, mostra que a reforma da justiça é urgente e que se trata de assegurar a própria sobrevivência e qualidade mínima da cidadania e da vida social, que são uma responsabilidade indeclinável do poder político.

Razão suplementar para que o Presidente da República esteja na primeira linha de interpelação dos outros órgãos de soberania e coloque todo o seu peso institucional na criação de condições políticas e institucionais para que a reforma seja viável.

Não se trata de um juízo de oportunidade ou de questão secundária.

O Estado de direito democrático, que só uma verdadeira reforma da justiça pode realizar, é condição essencial para que a República se cumpra e a cidadania seja respeitada.

São coisas que os advogados portugueses entendem, pois são eles depositários de uma longa tradição de luta pelas liberdades públicas e pela instauração do Estado de direito.

É em nome dessa luta, e da sua indispensável continuação, que reitero a todos, meus colegas, os agradecimentos pela distinção que me conferiram e pela possibilidade que me deram de viver convosco este dia, para mim inesquecível.

Bem hajam!