Sessão de Abertura da Conferencia “A Língua Portuguesa: Presente e Futuro”

Fundação C. Gulbenkian
06 de Dezembro de 2004


Permitam-me que comece por vos dar um testemunho, talvez pouco protocolar no início de um discurso pelo seu tom pessoal e directo, mas que me é necessário e mesmo imperativo dar: se há uma grande convicção que reforcei ao longo dos quase nove anos que levo no desempenho do cargo de Presidente da República é a de que a causa da afirmação e projecção da língua portuguesa representa um daqueles desafios que, se o não soubermos agarrar, estamos verdadeiramente a falhar uma responsabilidade primordial do presente, a desperdiçar uma enorme riqueza que recebemos do passado e a descuidar o futuro.

Na observação da nossa realidade, nas visitas que tenho feito a muitos países, nos contactos que tenho estabelecido com as nossas comunidades que vivem no estrangeiro ou com as comunidades estrangeiras que vivem entre nós, tenho compreendido, com uma compreensão de experiência feita, que a língua é um poderosíssimo e insubstituível meio de construção e reforço da identidade, de exercício da cidadania plena, de ampliação da nossa influência no mundo globalizado, de potenciação dos nossos recursos humanos e materiais, de valorização da nossa acção em todos os domínios, da defesa nacional à economia, da política externa à cultura. Paralelamente a esta compreensão, fui aprofundando a consciência de que, neste domínio, não temos feito tudo o que devemos, nem sequer o que podemos, reforçando ainda a certeza de que é indispensável fazer mais, de forma nova, mais exigente, mais consequente, e mais virada para o futuro. Creio que longas décadas, marcadas pelo isolamento e pela propaganda, de uma retórica passadista e estreitamente nacionalista, que se esgotava no próprio acto de se proferir, nos viciou numa oratória de grandes proclamações às quais, depois, na prática, nada ou pouco corresponde, como se o facto de dizer nos desobrigasse de agir. Provavelmente, esse vício ainda não nos abandonou de todo. Penso que é chegada a hora de pôr os actos mais de acordo com as palavras, os desígnios com as ambições, os meios com as necessidades, as práticas com os objectivos. É chegada a hora de se avaliar o que se fez, de programar o que tem de ser ousadamente realizado, de racionalizar meios e instrumentos – não para deixar de fazer o que é preciso fazer –, mas para aproveitar os recursos que temos, que nunca são muitos, e com eles fazer mais e melhor. Temos de aprender a poupar no que é acessório e secundário e gastar bem onde é prioritário investir reprodutivamente. É a isto que se chama visão de futuro. É chegada a hora de coordenarmos melhor, de pensamos mais integradamente, de não isolar o que é complementar, e de pôr fim àquele espírito de capelinha de que, em geral, somos todos, ao mesmo tempo, um pouco responsáveis e vítimas. Sei que há coisas boas que se têm feito, experiências inovadoras que merecem ser conhecidas e valorizadas. Sei que essas experiências nos devem encorajar, ampliando a nossa exigência e estimulando o nosso trabalho. É neste espírito de responsabilidade, de avaliação, de ambição e de verdade que propus à Fundação Calouste Gulbenkian que a sua conferência anual sobre educação alargasse o seu âmbito, este ano, e fosse dedicada a este tema – A Língua Portuguesa: presente e futuro.

Agradeço muito que tivessem acolhido imediatamente a minha sugestão e que tivessem associado a Presidência da República à organização da conferência. Estou muito grato pela proficiência e qualidade do trabalho a que a Fundação nos habituou, mas quero sobretudo expressar-lhe o reconhecimento do país pelo importantíssimo e continuado papel que tem desempenhado nas várias frentes em que se faz, quotidianamente, o ensino, a defesa e a projecção da nossa língua, nomeadamente nos países lusófonos.

Estou também muito grato ao Comissário desta Conferência, o meu velho amigo Eduardo Prado Coelho. O seu trabalho, o seu saber, a sua disponibilidade, a sua cultura e a sua dedicação às causas da cultura foram preciosos. Fico muito reconhecido a todos os que, em diversos estatutos e funções, participam nos trabalhos destes dois dias. Estou certo de que as horas que aqui vamos passar representam, ao mesmo tempo, uma colheita e uma sementeira. Uma colheita de testemunhos, opiniões, avaliações, análises, experiências. E uma sementeira de ideias e projectos para o futuro. Quero dizer-vos, em proporção aliás com o ênfase que pus no testemunho com que abri estas palavras, que, como até agora, continuarei a lutar por este grande desígnio nacional, que merece ser assumido plenamente pelo Estado e pela sociedade, e que tem de se tornar mobilizador dos cidadãos. Das escolas aos órgãos de comunicação social, do Estado Central ao Poder Local, das famílias às instituições culturais e cívicas, da diplomacia aos nossos representantes nas organizações internacionais, eis diversas e plurais dimensões do universo da língua portuguesa a que correspondem outros tantos instrumentos de acção quotidiana. Este é sempre um universo com potencialidade de expansão. Por muito que façamos, podemos e devemos fazer mais, com ousadia e inovação.

Uma política da língua, moderna, coordenada, aberta, diversificada e dinâmica, exige meios, instrumentos, articulações e objectivos de longo, médio e curto prazo. Exige coordenação com as políticas de ensino, com a política cultural, com a política externa, com uma estratégia global e racionalizada de afirmação e projecção da imagem do país. Sabemos que, num mundo em que tudo mudou, o modo como hoje se encaram as línguas e as suas políticas de expansão mudaram igualmente. Também aqui a concorrência é feroz. E não se pense que outros farão por nós o que nós não fizermos. Temos de saber que os novos problemas e os novos desafios não se resolvem nem se enfrentam com soluções e com receitas velhas e vagas. Devemos recuperar o amor do concreto, de que falava Sophia de Mello Breyner, e a visão do global. Temos de ser ao mesmo tempo mais ousados e mais eficazes, mais competentes e menos distraídos, mais militantes e menos diletantes, mais aplicados, mais organizados e mais coordenados. Todos sabemos que vale a pena e que os resultados não se farão esperar e serão multiplicadores. Seja nos países africanos, europeus ou em Timor-Leste, quantas vezes fui confrontado com solicitações a que temos obrigação de dar resposta, com situações anacrónicas ou inadequadas que representam desperdício ou desatenção, com apelos a que não devemos ficar surdos. Posso dar-vos múltiplos testemunhos que recebi. Em todos eles há uma constante: interesse e amor pela língua portuguesa e pelas culturas que nela se expressam. Temos de valorizar esse sentimento e aproveitar estrategicamente essas disposições.

A língua que falamos não é apenas um veículo funcional e utilitário de comunicação – molda o que pensamos e o que sentimos, leva-nos ao mundo e traz-nos o mundo. A língua que falamos exige que a renovemos, que a recriemos, que a amemos. Língua falada por quase duzentos milhões de mulheres e homens, a nossa, são eles que, diária e pluralmente, a criam, a enriquecem, a dirigem ao futuro. Este é um privilégio e uma responsabilidade. Quando olhamos para o mundo lusófono, sentimo-nos portugueses de outra maneira, pois a língua abre-nos à alteridade do espaço e do tempo. Quando ouvimos falar o português nas vozes dos outros povos sentimos que a nossa voz se amplia nessas vozes e que o futuro começa na língua que falamos. Esta língua de onde, como disse Vergílio Ferreira, se vê o mar.

De todas estas dimensões e de todas estas questões vai tratar esta Conferência. De um modo necessariamente sintético, pois cada um dos temas que nos vão ocupar daria para uma conferência. Por mim, digo-vos que estou aqui com o maior interesse e empenhamento. E sei que sairei daqui, mais rico e esclarecido. Gostaria agora, em nome do tal amor do concreto de que vos falei, de propor à vossa reflexão alguns tópicos que julgo fundamentais.

Minhas Senhoras e Meus Senhores

Na segunda parte da minha intervenção falar-vos-ei da escola e da imensa responsabilidade que atribuo às instituições educativas na aprendizagem do português e na necessidade de serem criadas melhores condições de acesso ao ensino da nossa língua em Portugal e no mundo.

São três os temas que gostaria de partilhar convosco.

O primeiro tema diz respeito ao desenvolvimento de competências essenciais ao domínio da língua portuguesa.

Nas conversas que mantenho com professores nas escolas que visito, é frequente apontarem-me as insuficiências na aprendizagem do português como causa de elevados níveis de insucesso escolar em diferentes disciplinas. O ambiente cultural e as dificuldades de apoio das famílias, o excesso de consumo de programas de televisão são apontados como responsáveis pelos problemas encontrados. São causas que têm de ser ponderadas seriamente, mas, seja como for, de facto, a escola tem de ser a instituição onde o futuro se joga de forma mais decisiva.

A Língua Portuguesa tem de ocupar o lugar central no conjunto de conhecimentos e competências que todos devem adquirir na sua educação. Mais do que qualquer outra instituição, a escola tem o dever de promover o acesso ao uso apropriado da língua.

O domínio da língua falada e escrita é condição necessária para a realização de cada pessoa e para a sua afirmação nos planos pessoal, profissional e cívico, uma vez que é através da língua que comunicamos e exercemos os nossos direitos de cidadãos. Não é por acaso que as palavras comunidade e comunicar têm o mesmo étimo!

É preciso, por isso, criar as condições para que, na escola, se aprenda a falar, a ler e a escrever bem. É preciso desenvolver o gosto por estas dimensões da aprendizagem da nossa língua.

As escolas devem, com início na educação pré-escolar cuja importância nunca é demais sublinhar, constituir-se como lugares onde cada criança, jovem ou adulto, encontra os desafios e as ocasiões para melhorar o modo como se exprime e comunica.

Ensinar a usar bem a língua deve ser uma tarefa da sociedade em geral, das famílias e da escola. Para as crianças dos meios mais favorecidos culturalmente esta aprendizagem faz-se, com naturalidade, na família e no meio social em que nasceram e vivem. Nessas situações, encontram, desde muito pequenas, estímulos à comunicação e meios de aprendizagem do uso adequado da língua. No entanto, a maioria das crianças que hoje frequenta a escola não está nesse caso e não tem os apoios de que necessita para desenvolver as suas potencialidades neste domínio. É preciso, por isso, encontrar os caminhos para diminuir as profundas desigualdades existentes.

É também urgente desenvolver competências no domínio da leitura. É preciso melhorar a compreensão do que se lê. Deve, assim, ser promovida a apropriação pelos alunos dos nossos textos literários e ser encorajado o gosto pela leitura dos nossos autores.

Uma outra área de que a escola se deve ocupar de modo especial é a da aprendizagem da escrita. É preciso criar nos alunos a necessidade de comunicar por escrito. Para dar maior sentido a estas aprendizagens é necessário que a Escola potencie as formas de comunicação escrita mais utilizadas fora dela por um número cada vez maior de pessoas, sobretudo as mais jovens, no seu quotidiano. As novas tecnologias deram um novo impulso à utilização da escrita. Veja-se a quantidade de mensagens de telemóvel, de mensagens de correio electrónico e as horas que os jovens passam em frente ao computador a comunicar através da escrita. Não discuto agora a correcção normativa dessa linguagem escrita, importa é sublinhar que estes novos fenómenos devem merecer-nos atenção.

Não há hoje dúvidas sobre como a Internet criou novos estímulos à leitura, à comunicação escrita e ao intercâmbio escolar que, em alguns casos, sei que estão a ser utilizados de modo significativo para o desenvolvimento de competências no domínio da escrita, da selecção da informação, da sua sistematização e síntese e ainda da sua apresentação e comunicação aos outros – competências hoje indispensáveis na sociedade do conhecimento.

Permitam que vos fale, em segundo lugar, da aprendizagem do português como segunda língua. Cerca de cinco por cento da população residente em Portugal é constituída por cidadãos imigrantes, grande parte dos quais não têm como língua materna o português. A resposta adequada da escola a estes “novos públicos” é um factor de enriquecimento pedagógico e equilíbrio social.

Tive a oportunidade de conhecer experiências muito positivas, em situações de grande diversidade cultural, em escolas que visitei. Numa dessas escolas, situada no Concelho da Amadora, vivi um momento emocionante ao ser saudado por alunos de quatorze nacionalidades diferentes, nas respectivas línguas.

Quero salientar também o pertinente esforço desenvolvido por algumas escolas com projectos no domínio do ensino do português, a adultos, como segunda língua. Em contactos que tenho mantido em diferentes contextos educativos e sociais com cidadãos de vários países, a aprendizagem da língua portuguesa tem sido relatada como decisiva para a sua integração no nosso país.

O estudo do português como língua segunda deve ser desenvolvido e devem ser valorizadas as estruturas de apoio que trabalham nesta área. A diversidade cultural gera, por vezes, problemas de grande complexidade só ultrapassáveis com projectos pedagógicos consistentes e estáveis como os que existem, felizmente, em muitas escolas e agrupamentos educativos. Seria importante conhecer melhor e avaliar os programas de discriminação positiva que têm sido desenvolvidos em Portugal, visando construir soluções para os problemas educativos em meios sociais considerados difíceis.

A melhoria da qualidade das aprendizagens no domínio da língua portuguesa exige rigor e capacidade de inovação. A escola de hoje enfrenta novos e complexos problemas que não se compadecem com as soluções que eram eficazes no passado. É preciso criar condições para que se estudem os problemas educativos e se desenvolvam práticas e formas inovadoras de organização da escola e do currículo.

Tratarei, em terceiro lugar, questões que dizem respeito ao ensino do português no estrangeiro.

Saúdo, antes de mais, os militantes que têm trabalhado para que a oferta de ensino da nossa língua esteja cada vez mais presente no mundo. Quero também valorizar os esforços realizados não só para que o ensino da língua portuguesa chegue às comunidades emigrantes e ao mundo, como para que se realizem programas pertinentes no âmbito da cooperação com os países de língua oficial portuguesa.

A situação que temos está, porém, longe de responder à procura, não só porque a oferta é insuficiente mas porque a coordenação dos meios de que dispomos não tem sido eficaz.

Temos hoje importantes meios de comunicação e difusão em língua portuguesa, que é necessário ter em conta. Refiro-me em especial à RTP, à RDP e à Internet cujas possibilidades podiam ser mais bem aproveitadas.

É também importante que sejam produzidos mais conteúdos em português para a Internet, o que constituirá um meio de atracção relativamente à língua.

Uma política para a Língua Portuguesa não pode ignorar a importância das Novas Tecnologias da Informação na divulgação e no ensino do Português.

Considero ainda que deve ser realizado um investimento significativo na produção de materiais para aprender português. Nos contactos que tenho tido pelo mundo com cidadãos portugueses e estrangeiros que desejam aprender português são permanentes os lamentos sobre a falta ou a inadequação de materiais destinados à aprendizagem da nossa língua, factor que penaliza a imagem de Portugal.

Em encontros que realizei recentemente no Luxemburgo, onde até existe uma oferta razoável de ensino do português, pude verificar as dificuldades existentes.

É preciso realizar um grande esforço para que a língua portuguesa seja efectivamente considerada por alunos de diferentes nacionalidades como opção integrada no currículo de um número cada vez maior de países, o que, infelizmente, está longe de acontecer. É necessário que os vários departamentos governamentais que têm a seu cargo as ligações de Portugal ao mundo trabalhem para que o português apareça como uma língua de prestígio, de várias culturas, de ciência, de negócios. O Ministério dos Negócios Estrangeiros, designadamente através do Instituto Camões e o Gabinete de Relações Internacionais do Ministério da Educação têm aqui um papel decisivo que se deve potenciar mutuamente.

Temos, hoje, múltiplas frentes de trabalho que exigem uma política da língua portuguesa e a concertação em torno dos projectos desenvolvidos e dos recursos existentes.

Ao terminar esta intervenção, gostaria de deixar algumas questões a esta conferência:

O que devemos fazer para que todos, pais, educadores, escritores, cientistas, responsáveis políticos e profissionais da comunicação social assumam os problemas suscitados pela aprendizagem da língua portuguesa (língua materna ou segunda língua) como uma prioridade da nossa acção?

Como podemos estimular educadores e professores das diferentes disciplinas para que se assumam as suas responsabilidades também no ensino do português e cuidem também da dimensão da língua nos textos estudados e nos trabalhos realizados pelos alunos, reforçando a acção dos professores da língua de escolarização?

Como podemos fomentar o estudo das especificidades do português como língua estrangeira e a produção de materiais para a sua difusão no mundo?

Que soluções encontraremos, ao nível de uma política internacional de língua para que o português encontre o seu lugar no mundo?

A afirmação da língua portuguesa é uma missão necessária e vital para nós e para as gerações que nos sucederão. Nessa missão, a aprendizagem, o ensino, o uso, a renovação e a projecção da língua são fundamentais. É por isso mesmo que esta conferência representa um importante contributo para a consciencialização, o debate e a mobilização.

Não temos tempo a perder.