Discurso de SEXA PR por ocasião da Sessão de Abertura do Congresso de Sociologia comemorativo do 20º Aniversário da Associação Portuguesa de Sociologia

Fundação Calouste Gulbenkian
08 de Setembro de 2005


Tenho acompanhado com atenção a actividade da Associação Portuguesa de Sociologia, e a minha presença em três dos seus Congressos manifestará certamente todo o apreço que nutro pela qualidade e criatividade das suas iniciativas.

No momento em que a APS completa 20 anos, aqui estou de novo para vos deixar uma palavra de homenagem e de estímulo para o futuro.

Registo com agrado que o local escolhido para a realização desta Sessão tenha sido a Fundação Calouste Gulbenkian. Todos sabemos quanto a Ciência Portuguesa deve ao apoio institucional, financeiro e logístico desta Casa. Faz, pois, todo o sentido que a Associação Portuguesa de Sociologia tenha querido ligar um momento grande do seu percurso a esta instituição.

Considero igualmente muito feliz a circunstância de o Conferencista convidado desta Sessão ser o Professor Fernando Henrique Cardoso. E isso não apenas – o que já seria muito - por ter sido ele, na qualidade de Presidente da Associação Internacional de Sociologia, quem, há vinte anos, testemunhou e deu relevo institucional ao nascimento da APS. Mais significativo ainda, será o facto de, com esta presença, terem os sociólogos portugueses a oportunidade de homenagear alguém que, nos seus percursos como académico, investigador e responsável político, deu um valiosíssimo contributo para a compreensão e para a regulação das lógicas económicas internacionais e dos modos como estas se repercutem em todas as regiões do mundo, sob a forma de oportunidades e riscos de desenvolvimento e mudança social.

Minhas Senhoras e Meus Senhores:

As ciências sociais são indispensáveis para a compreensão moderna da sociedade portuguesa, e não posso senão congratular-me com o facto de ter sido possível desenvolver nestas áreas, e muito em particular na Sociologia, uma actividade regular de investigação teórica e empiricamente sustentada.

Essa actividade, que se intensificou notavelmente desde o 25 de Abril e a institucionalização da democracia politica, foi possível graças à abertura do sistema de ensino superior à formação graduada e pós-graduada, à consolidação de pólos de pesquisa pioneiros e à criação de novos centros de investigação dotados de forte dinamismo.

Existe largo consenso na comunidade sociológica nacional sobre a importância da intervenção da Associação Portuguesa de Sociologia nesta área do conhecimento. Cabe-lhe, entre muitos outros méritos, o de ter contribuído de forma muito original para descobrir e estabelecer pontes entre o pólo académico e o campo do exercício profissional extra-académico da Sociologia.

Percebendo, desde cedo, que o oficio de sociólogo teria necessariamente de se desenvolver cada vez mais fora do espaço universitário, a APS tem sabido promover um debate sistemático sobre as relações entre ciência e profissão. Contribuiu assim fortemente para o diálogo descomplexado entre sociólogos com filiações e carreiras distintas e, por essa via, para o notório enriquecimento de metodologias de investigação, de concepções teóricas e das próprias problemáticas da disciplina.

Gostaria de sublinhar este último ponto, que me põe na pista dos importantes contributos da Sociologia para estimular o debate de ideias acerca do presente e do futuro das sociedades e para o aperfeiçoamento das políticas públicas.

Portugal soma hoje às vulnerabilidades, desigualdades e dualismos inscritos há muito no seu modelo de desenvolvimento, ameaças e rupturas resultantes de uma exposição acrescida às pressões externas.

Como pode um País, nestas condições, correr o risco de substituir a função de orientação estratégica do Estado pelas artes rudimentares da navegação à vista? A percepção das nossas fragilidades constitui um repto ao rigor e eficiência da acção do Estado.

Recorro, para ilustrar o meu ponto de vista, a um traço social muito concreto: o dos padrões regionais de desenvolvimento e de ocupação do território. Longe de serem ditados por acidentes históricos mais ou menos fortuitos ou por características naturais dos territórios ou dos cidadãos, resultam tais padrões de conjuntos entrelaçados de factores económicos, culturais e políticos. Dificilmente poderão ser contrariados se, antes, não forem rigorosamente analisados nas suas múltiplas e mutáveis dimensões.

O problema das assimetrias regionais de desenvolvimento e dos dualismos sociais adjacentes foi, justamente, um dos primeiros objectos de estudo da sociologia portuguesa desde os tempos difíceis do regime autoritário. Conduziu, como se sabe, à definição de uma imagem do País dividido entre, por um lado, um interior rural cada vez mais desertificado e avesso à mudança e, por outro, um litoral urbano-industrial aberto aos valores da modernidade e com atractividade demográfica crescente.

Graças ao contributo das ciências sociais, foi possível ir precisando esta imagem e abrir caminho à ideia de que, com o desenvolvimento de uma espécie de arquipélago de centros urbanos de média dimensão dispersos pelo conjunto do território nacional, se podia atenuar a tendência de desertificação do interior e a aspereza das assimetrias regionais. Acontece que esses estudos faziam questão de insistir num tópico adicional : o crescimento das cidades médias era acompanhado por desvitalização, por vezes extrema, das áreas rurais circundantes, com inviabilização das respectivas actividades agro-florestais e forte decréscimo e envelhecimento da população residente.

No início do meu primeiro mandato na Presidência da República, promovi umas Jornadas sobre a Interioridade, com a presença de vários especialistas que aceitaram, nessa altura, ajudar-me a equacionar as “Perspectivas de desenvolvimento do Interior”. Interrogava-me então com preocupação, mas também, reconheço, com o optimismo próprio da vontade, sobre o contributo da agricultura e das florestas, das pequenas e médias empresas, da formação e do património arquitectónico, natural e paisagístico para o desenvolvimento das regiões em causa, não sem me questionar ainda sobre o modo mais adequado de articular intervenções da administração pública central, regional e local na concretização de políticas públicas de equilíbrio e de coesão territorial.

Infelizmente, o passar dos anos veio mostrar que algumas preocupações então manifestadas, nomeadamente sobre o futuro dos nossos recursos florestais, sendo fundadas, terão pecado por defeito.

Não nos apercebemos, com rigor e acuidade suficientes, da profunda revolução de sistemas de trabalho e de modos de vida que se operou nos campos portugueses nas últimas décadas. Não compreendemos devidamente até que ponto a preservação do nosso património florestal, outrora assegurada por um regime de posse e cultivo da terra que atribuía à prevenção uma importância tão grande ou maior do que ao cultivo e à comercialização, foi deixando de estar garantida. Não se previu e nem se impulsionou, com a determinação necessária, soluções alternativas de gestão de base empresarial, associativa ou estadual, experimentadas com êxito noutros países.

Estamos diante de um conjunto de problemas – e longe de mim pensar que ele é o único que pode a este propósito ser invocado – que apela directamente aos conhecimentos produzidos pelas ciências sociais.

Assim sendo, e perante os contornos trágicos que os fogos florestais vêm repetidamente assumindo no nosso País, permito-me lançar à Associação Portuguesa de Sociologia o desafio de mobilizar os seus associados e as associações congéneres para um trabalho de aprofundamento das causas e consequências de tal flagelo e de procura das reformas indispensáveis para restaurar o equilíbrio e a segurança nas áreas rurais e florestais do nosso interior.

Tudo indica, aliás, que, nesse esforço de análise, os especialistas destas áreas acabem por se confrontar com outros traços e nós de problemas da sociedade portuguesa, também eles merecedores de novos trabalhos colectivos de pesquisa.

Refiro-me, por exemplo, ao diagnóstico sobre a ausência do Estado em matérias como a prevenção e o desenvolvimento integrado e sustentável, a nível regional e local, em áreas deprimidas. Parece-me indispensável, com efeito, concretizar com urgência, o estudo da amplitude e dos efeitos sociais (que são também sempre individuais) do recuo ou omissão de politicas públicas.

Tratar-se-ia de avaliar, com a objectividade possível, no quadro de uma reflexão sobre as funções do Estado em sociedades vulneráveis e de risco, os limiares de intervenção pública, fora dos quais a sustentabilidade do desenvolvimento e a coesão social deixam de poder ser garantidos.

Estou convencido de que esses estudos poderiam dar um importante contributo para colocar, nos pratos da balança das decisões políticas, não apenas despesas e receitas de curto prazo, mas também custos e benefícios sociais e ambientais de longo prazo, dando sentido útil aos desígnios de respeito e lealdade para com as gerações futuras.

Essa perspectiva pode pôr ao nosso alcance argumentos racionais para identificar as virtualidades dos investimentos do Estado em áreas estratégicas. E contribuir para sublinhar as vantagens de um renovado enraizamento, nas instituições e nas práticas políticas correntes, do ideal republicano de serviço público e de bem comum.

Habituámo-nos, e ainda bem, a aceitar que a solidez do desenvolvimento económico exige criteriosa contenção dos gastos públicos. Tal não nos deve, contudo, impedir de ponderar, com nível de exigência idêntico, os custos sociais, ambientais e, em última análise, também económicos da não-intervenção do Estado. Para nos lembrar toda a importância de tal ponderação, nada mais veemente, aliás, do que o grau de devastação e de sofrimento infligido às populações pelas chamadas catástrofes naturais.

O argumento banal de que o Estado e os seus agentes são maus utilizadores e gestores dos recursos da comunidade está longe de ser corroborado pela análise histórica. É óbvio, pelo contrário, que, por detrás de períodos de prosperidade durável e de acréscimo do bem-estar para as populações, costuma estar um Estado forte e com visão estratégica.

Minhas Senhoras e Meus Senhores,
Caros Amigos:

Sempre associei o entusiasmo normalmente posto pelos sociólogos na sua actividade profissional a um empenhamento mais ou menos explícito nas causas e problemas eminentemente políticos que circulam na esfera pública.

Talvez por isso, e correndo o risco de intrusão ilegítima, vim a esta sessão comemorativa de duas décadas de trabalho em prol das ciências sociais pedir-vos… mais trabalho.

Espero que não levem a mal esta sugestão de intervenção sociológica no campo político.

Foi por bem.

Antes de terminar, permitam-me um pequeno à parte, cuja oportunidade todos compreenderão.

Imaginemos que à saída desta cerimónia, como tantas vezes sucede, um jornalista me estende o microfone interpelando:

“O Sr. Presidente proferiu mais uma lição sobre a floresta em Portugal. Pode resumi-la?»”

Muitas vezes, não respondo. Mas talvez se justifique hoje proceder de outro modo. E eu responderia:

Na Cidade e as Serras, de Eça de Queirós, o Jacinto vem da cidade de Paris para o campo, Tormes. Aí percebe que a nossa riqueza está em Tormes.

Hoje, há quem julgue que podem ser ricos nas cidades e vilas, ao mesmo tempo que o campo é pobre e desordenado.