Discurso de SEXA PR por ocasião do lançamento do livro “Com os Portugueses – 10 Anos na Presidência da República”

Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa
14 de Dezembro de 2005


Caros amigos:

Os que me conhecem mais de perto, sabem que gosto de assumir as minhas responsabilidades.

Sempre gostei, aliás.

O mais certo é que, passados estes últimos dez anos, a maior parte dos portugueses já me tenha conhecido, pelo menos neste particular.

Não terá escapado ao nosso concidadão mais desatento que procuro sempre explicar as minhas acções.

No princípio do meu mandato, muitos acharam mesmo que eu era muito justificativo.

Isto é: achavam que me justificava … demais.
Talvez ainda haja quem continue a achar-me justificativo.

Só me resta então justificar-me, dizendo: «não há bela sem senão».
A «bela» do provérbio, claro, é este vosso Presidente.

Justifico-me porque acção responsável é acção motivada.

E acção motivada é susceptível de ser explicada.

Isto é: a acção responsável é a acção susceptível de ser justificada.

*

Estou aqui por via da apresentação do meu livro Com os Portugueses.

Esse livro não existiria se não tivesse o gosto - ou o hábito, ou a necessidade, ou mesmo o vício - de assumir as minhas responsabilidades. O que para um político significa recandidatar-se. Se os eleitores aprovam a sua acção, reelegem-no. Se não aprovam, não o reelegem.

Como é do vosso conhecimento, este meu segundo mandato como Presidente da República terminará no dia 9 de Março. Cumpri-lo-ei até ao último dia. A Constituição não me autoriza a recandidatar-me pela segunda vez.
Abençoada Constituição!

Há quem saiba que, neste particular, não aceitaria outro dispositivo constitucional.

A minha consciência, essa, sabe-o de ciência certa.

Este livro é o modo de assumir aquela responsabilidade política possível, neste tempo e neste modo.

A política é um exercício de responsabilidade.
Cada um de nós interessa-se pela coisa pública porque se sente responsável - como por instinto - pelo bem-estar da comunidade a que pertence.
Na minha geração, esta atitude era comum.

Começávamos pelas associações de estudantes, uma primeira afirmação de liberdade e de democracia.

À minha geração coube em sorte a crise do Dia do Estudante.

Seguia-se, ao menos para os advogados, o tribunal plenário, onde tentávamos defender os acusados de crimes políticos, categoria que em si mesma era uma aberração.

Vinha depois a luta eleitoral pois o Estado Novo, se dependia pouco ou nada das eleições, era muito pontual a realizá-las.

Associações de estudantes, eleições do Estado Novo, defesas nos Tribunais Plenários - eram estes os três grandes marcos da dinâmica de responsabilidade para a minha geração.

A guerra colonial foi outro grande marco desta dinâmica. A guerra dividiu-nos. A maioria foi prestar o serviço militar obrigatório em África. Alguns conseguiram prestá-lo em Portugal - ou ficaram isentos por motivos de saúde. Muitos outros tomaram os caminhos do exílio. A nossa geração dividiu-se fisicamente devido à guerra africana.

Meus amigos

Nós queríamos simplesmente servir a colectividade.

Não julgávamos que a nossa actividade política fosse um favor.
Estávamos certos que era um serviço.

Essa ideia do favor prestado pela elite ao povo parecer-nos-ia mesmo um tudo nada repugnante.

A nossa dinâmica era apenas prestar um serviço à colectividade, a todos os seus membros, em particular às vítimas da opressão e aos mais desmunidos da Fortuna.

Nos meus tempos, a escola já não era «risonha e franca».

Mas não sei se nos apercebíamos do preço que iríamos pagar. Não me refiro à repressão. Essa, prevíamo-la, equacionávamo-la.

Se bem me lembro, quando começámos a percorrer o nosso caminho, ignorávamos as pequenas e repetidas tempestades decorrentes daquele sentimento que é a última palavra d’ Os Lusíadas e é por certo uma das primeiras do Génesis.
Inveja.

Já instaurada a democracia representativa, na sequência do 25 de Abril, emergiu outro e inesperado factor de divisão da minha geração.
Estou quase certo que, quando lutávamos contra a Ditadura, não sabíamos - nem adivinhávamos - que aquele serviço à colectividade viria a ter o preço elevadíssimo de sermos apanhados na confusão, num turbilhão de confusões mediáticas, às vezes calúnias sem pai nem mãe, meias verdades e meias mentiras que ninguém deslinda aplicando aquele bom critério do direito romano - «cui prodest?».
A quem aproveita?

O sentimento da responsabilidade, reforçado por um outro e poderosíssimo sentimento - o de pertencer a uma colectividade, a Portugal - é uma motivação suficiente para enfrentar e vencer essas e outras dificuldades.

Mas, para vencer as dificuldades que contam, uma pessoa tem que aprender a fortalecer-se com a solidão.
Aconteceu-me isso.

Não me refiro à solidão política, claro.

É facto que nunca pertenci a nenhuma das organizações pesadas que estruturam a sociedade portuguesa.

Mas pertenci ao longo da minha vida a partidos políticos, ou a organizações de tipo partidário, clandestinas quando a lei do Estado Novo proibia os partidos.

A solidão de que falo é outra, não é à solidão orgânica, não é o distanciamento pessoal face às organizações que tantas vezes passa por independência e tantas vezes é apenas um isolamento que a si próprio se desconhece.

A solidão de que falo não é querer estar acompanhado e não ter companhia política.

Aliás, o Presidente da República portuguesa, mesmo que o queira tem dificuldade em estar sozinho politicamente. O Governo, por norma, cultiva-o e não quer deixar-lhe o mínimo momento de solidão.

Se o Governo se esquece do Presidente, a Oposição logo lhe restitui um mais do que suficiente protagonismo político.

Por isso, politicamente, um Presidente só está sozinho em circunstâncias de todo em todo excepcionais.

Mas, por outro lado, a política impõe ao Presidente que faça escolhas decisivas nas quais está sozinho e tem de estar sozinho.

O Presidente tem por força que recordar em muitos passos da actividade pública o verso de Ricardo Reis nas Odes:

Não só quem nos odeia ou nos inveja
Nos limita e oprime: quem nos ama
Não menos limita.

Talvez por o palácio presidencial estar situado «à beira do rio», Belém é o lugar ideal para compreender, ou para viver, esse verso.

O Presidente da República cria o seu próprio espaço de independência que é o seu quadrado de Aljubarrota. Que é a sua defesa e a sua força.

Por isso tenho, e concretizei, a minha própria leitura da Constituição da República. Eu ou qualquer Presidente tem que criar este espaço.

Naquelas circunstâncias, a única solução é, metodicamente - isto é: o mais depressa possível, o melhor possível -, confrontar os factos díspares, dispersos, conflituantes entre si, dissonantes, com as convicções pessoais mais profundas, analisá-los à luz dessas convicções - e, então, agir.

A decisão é uma planta que cresce na solidão.

Na solidão que é a força da independência.

Quando a hora chega, o melhor amigo - tenho, sempre tive muitos e bons amigos - é incapaz de ajudar. Os amigos conversam mas a mais leal das conversas não institui um processo ao qual o Presidente possa pedir um voto - que aliás a República não prevê e por certo proíbe.

A família mais querida tão pouco pode substituir-se ao homem que foi eleito Presidente da República. Pode apoiá-lo. Não pode substitui-lo.

Na preparação da decisão, ouvi sempre todos os agentes relevantes e agi de modo colegial. Na tomada de decisão, reflecti, meditei e agi de modo solitário.

Ao fazer este movimento de fortalecer-me na solidão, verifico que não mudei.
Nunca fui um vendedor de ilusões.
Estudei sempre os problemas.
Mantive sempre a ligação com as pessoas - e como Presidente mantive sempre a ligação com os portugueses.
Nunca me acomodei.
Conservo os mesmos ideais de sempre.
Continuo a achar que a política é essencial.

Continuo a acreditar que os partidos políticos são indispensáveis e que devemos procurar sempre corrigir-lhes os defeitos e melhorá-los pois não foi ainda descoberta a maneira democrática e republicana de os substituir.

Continuo a acreditar que os problemas sociais são sempre problemas políticos, afectando todos os cidadãos, e por isso continuo a não acreditar que haja uma solução técnica milagrosa para um dado problema social.

Continuo a crer na necessidade da laboriosa construção de consensos entre interesses discordantes mas finalmente conciliáveis - conciliáveis por um momento pois no momento seguinte temos que prosseguir a tecelagem, aproveitando o que já fizemos.
Continuo a achar que a nossa função é não desistir.

Meus amigos:

O Jorge Sampaio que sairá da Presidência da República é o mesmo que aqui entrou.

É o mesmo com uma única e muito significativa diferença.

Passei a ter uma dívida para com os portugueses. Onde me viram, apoiaram-me sempre. Apoiaram-me de viva voz e por todos os meios possíveis.

Apoiaram-me por graça do estado de Presidente? Por bondade deles? Porque viam em mim algo que a mim mesmo escapava?

O que conta para mim não são as razões do apoio, o que conta é o apoio - esse apoio sentido, autêntico, leal, constante, maciço.
Esse apoio ajudou-me a ser melhor do que supunha.
Obrigado.

*

Reparo que tenho estado a apresentar o autor do livro mais do que o livro.
É normal que assim seja.

O autor escreve o livro, escreve a introdução ao livro, apresentá-lo é já concorrência. Concorrência desleal quando disponho de tão esplêndidos apresentadores.

E para mim uma grande honra - e, confesso-vos, um prazer intelectual e pessoal imenso - ter a possibilidade de contar hoje aqui com a presença e as palavras dos Professores Gomes Canotilho e Marcelo Rebelo de Sousa.
Por variadas razões. Quero destacar algumas.

A primeira: por vezes, a apresentação de um livro é um acto de cortesia ou amizade. Ora, teria sempre a garantia, com os apresentadores de hoje que um olhar profundo, substantivo e sincero recairia sobre a obra e que esse olhar não teria concessões à cerimónia. A verdade e a transparência só ganham com isso.

A segunda razão: o pano de fundo político e jurídico-constitucional inegável em que decorre o mandato de qualquer Presidente da República teria, nos Professores Gomes Canotilho e Rebelo de Sousa, a garantia de que o seu diversificado e notável trabalho científico, político e para-político de décadas seria de enorme valia e enriqueceria os seus comentários.

A terceira razão: com ambos tenho mantido anos de amizade, respeito e de compreensão pela nossa diversidade. Em lugares, em episódios e por motivos diversos e tantas vezes em circunstâncias difíceis. O pluralismo e sadias controvérsias não são incompatíveis com amizade, sinceridade e franqueza mutuas.

Muito obrigado pela vossa presença e pelo cuidado e trabalho com que a prepararam. Quero também agradecer às edições Afrontamento e ao seu Director José Sousa Ribeiro a dedicação e o cuidado extremo postos nesta edição.

À Fundação Montepio Geral que patrocinou esta edição quero transmitir quanto me calou fundo a sua disponibilidade para suportar os custos de edição desta obra.

Meus Amigos,

Não posso deixar de comentar o livro que agora vos apresento. O livro com os Portugueses é uma antologia das minhas declarações enquanto Presidente da República.

Ao folheá-lo, tenho que confessar que aprendi alguma coisa. Em primeiro lugar aprendi a dimensão da actividade que a obra testemunha. Tinha, claro, a noção de ter procurado o contacto com os Portugueses, quer em ocasiões institucionais quer em relações directas, quer em momentos temáticos, umas e outras em ocasiões justificadas. Mas as estatísticas em anexo surpreenderam-me. Verifico que teria sido virtualmente impossível que o vosso Presidente tivesse tido uma presença mais forte, mais permanente, mais desenvolvida.

Ao folhear o livro “com os Portugueses”, gostei também de ver que as minhas declarações têm uma coerência íntima que sobrenada o tempo e o espaço da minha Presidência. Pensava ter proferido declarações trabalhadas, rigorosas, dedicadas; tinha a noção de ter lançado para o debate público alguns temas inovadores e relevantes; mas admitia que os meus discursos tivessem sido mais efémeros, para mais proferidos em efémeras circunstâncias, para mais desdobrados ao longo de dois agitados quinquénios. Gostei de ver que essa coerência íntima resistiu.
O livro que vos apresenta trata da globalização, vista de Portugal, e trata de Portugal - ia dizer que visto da globalização. É, no fundo, uma ambição para Portugal.
Agarro a globalização na perspectiva multilateral, da lusofonia, da construção europeia e dos rumos que se oferecem ao nosso País.

Trato de Portugal pegando no aperfeiçoamento da democracia; na defesa nacional e nas Forças Armadas; na justiça e na cidadania; no repensar das funções do Estado; no questionar do modelo de desenvolvimento; na coesão e nos direitos sociais; no sistema de saúde; na causa da educação; na ciência e na inovação; na cultura e na identidade.
O resultado não me envergonha.

É a síntese do meu esforço destes dois quinquénios em prol de Portugal e da República.
Quero crer que terá alguma utilidade para os meus concidadãos.
Foi esse aliás o meu propósito ao consentir na sua publicação.