Discurso na Recepção aos responsáveis pelo Ensino


29 de Novembro de 1999


No contexto desta semana dedicada à Saúde dos Portugueses, e durante a qual tenho sido acompanhado e esclarecido pelos mais diversos profissionais, ligados de uma forma ou de outra à Saúde, quero agradecer a vossa presença e partilhar convosco algumas reflexões sobre a Saúde em Portugal e o sistema de ensino e de formação.

Ficou-vos, na verdade, muito grato, por o poder fazer perante vós, ilustres personalidades ligadas ao Ensino e Formação em Saúde.

Portugal, no espaço de pouco mais de duas décadas, conseguiu ultrapassar muito do seu significativo atraso em importantes indicadores do estado de saúde das populações. A acentuada regressão das mortalidades infantil, materna e específica por doenças transmissíveis atesta o êxito na luta contra doenças típicas de um país em processo de desenvolvimento.

Este panorama positivo é, porém, ensombrado com o ritmo da incidência da SIDA e da tuberculose, o drama dos acidentes de trabalho e de viação e as doenças associadas ao flagelo da toxicodependência e de estilos de vida, traduzidos em desequilíbrios alimentares e no consumo de álcool e do tabaco.

Aqueles importantes resultados positivos devem-se, como todos sabemos, a múltiplos aspectos. Desde logo à melhoria global das condições sociais, associadas ao ambiente de crescimento económico, a que assistimos nas últimas décadas, fruto, em especial, do esforço dos Portugueses.

Este ambiente e as necessárias decisões políticas possibilitaram o aumento dos recursos materiais, nos hospitais e nos centros de saúde, mas, em especial, a construção de novas instalações, dotadas com modernos meios de diagnóstico e de tratamento e, naturalmente, de maior conforto para os doentes e para os profissionais.

Não deixo de constatar a situação penosa que se verifica, em especial, nas áreas metropolitanas de Lisboa e do Porto, quer em relação ao acesso aos serviços de saúde, quer em relação às condições físicas de atendimento e de exercício profissional. As escolhas na construção de unidades do Serviço Nacional de Saúde, o planeamento dos serviços, devem basear-se, tão só, na racionalidade que os estudos epidemiológicos e económicos, entre outros, nos fornecem, e não em injustificadas pressões locais.

Fará sentido a multiplicação de enormes investimentos em locais a uma distância-tempo inferior a 30 minutos? Fará sentido a multiplicação de serviços de urgência polivalentes a poucos quilómetros de distância, consumindo um bem escasso e imprescindível, que são os médicos e os enfermeiros, nas novas condições de acessibilidade em muitas regiões do nosso País?

Neste período, longo de mais de duas décadas, assistimos, também, a um significativo aumento na utilização dos serviços pelos cidadãos: no internamento hospitalar, nas consultas dos médicos de família, nos meios complementares de diagnóstico e de terapêutica, nos medicamentos.

E assistimos, também, a um acentuado consumo de recursos financeiros. E como já afirmei em outras ocasiões, no respeitante às despesas a cargo das famílias, gastamos sensivelmente mais do que seria desejável com o nosso rendimento médio per capita.

Mas, regressando aos progressos registados no nosso sistema de saúde, quero deixar claro que os atribuo, em grande parte, à qualidade dos nossos profissionais e ao seu empenho e dedicação. Porém, estamos hoje perante problemas de grande complexidade no ensino e na formação em Saúde.

O sistema de formação não responde às reais necessidades de técnicos do país. Este é um problema da maior gravidade e um dos maiores desafios que o Estado e as instituições formadoras têm perante si.

Desde logo porque o desenvolvimento do nosso sistema de saúde, no estado actual, exige recursos humanos acrescidos, em especial das profissões técnicas mais diferenciadas.

O que se observa, na densidade de emprego na saúde, que cresceu de 10,1 (por 1 000 habitantes) em 1987, para 12,3 em 1996, mas que corresponde, ainda, ao valor mais baixo na União Europeia.

Mas se desagregarmos este valor por profissões, a dimensão do problema é maior.

O número de médicos por 1000 habitantes situa-se ligeiramente abaixo da média da União Europeia, o que constitui um valor globalmente positivo, mas concentrados, numa percentagem muito significativa - cerca de 64% .- nos cuidados hospitalares e mais de 72% nos distritos de Lisboa, Porto e Coimbra. Mais preocupante ainda é, também, a demografia médica, com o envelhecimento dos quadros, verificável pelos cerca de 20% de efectivos com 55 ou mais anos de idade.

O número de enfermeiros situa-se, ainda, em valores muito baixos, como também o das profissões paramédicas, concentrados, ambos, nos cuidados hospitalares, embora com uma assinalável juventude dos seus quadros.

Apesar dos esforços verificados com a criação de novas escolas e o aumento do número de diplomados, o ritmo de formação é demasiadolento. Lento para fazer face à situação criada com a aposentação de muitos profissionais, lento para suprir as necessidades, em especial nos centros de saúde, lento para dar resposta às necessidades colocadas com a abertura de novas unidades.

A escassez de técnicos de saúde tem sido parcialmente suprida com a admissão de profissionais de outros países. Não estando em causa a eficácia dessa solução, ela representa e prova a debilidade das políticas de ensino e de formação, em especial no planeamento da necessidade de recursos humanos para o Serviço Nacional de Saúde.

Mas representa, também, um inqualificável cerceamento de direitos, ao frustrar, pelo numerus clausus , a expectativa de milhares de jovens, a quem é extraordinariamente dificultado o acesso a cursos na área da saúde.

Permitam-me que vos refira alguns números.

Se considerarmos apenas os alunos com notas de candidatura iguais ou superiores a 17 valores não entraram nas faculdades de medicina 1414 estudantes em 1997, 1471 em 1998, e 767 em 1999.

Com que direito, pergunto, ou em nome de que valor, se impede o acesso a uma profissão a jovens altamente qualificados quando a formação a que se candidatam tem uma tal falta de profissionais no mercado de trabalho que o país tem de recorrer a técnicos vindos do estrangeiro para suprir essa falta?

Apelo, portanto, ao Governo e às Escolas a que revejam a definição das prioridades no ensino e na formação para o sistema de saúde. E que o façam consistentemente. Pelos doentes, para quem um médico, um enfermeiro, um técnico, representam recursos preciosos. Pelos jovens que pretendem iniciar uma formação em saúde. E por uma inalienável responsabilidade do Estado: a de assegurar a eficaz continuidade da prestação de cuidados de saúde aos portugueses que deles necessitam.

O Estado tem responsabilidades a que não se pode sobrepor nenhum interesse. Estamos perante um desses casos. O Estado tem de garantir que a formação de profissionais assegura, de forma sustentada, os recursos humanos necessários na área da saúde.

É este o meu apelo. É urgente a resposta. Todos estamos conscientes de que o impacto das medidas que se tomem só produz efeitos a médio ou a longo prazo, atendendo à duração e complexidade das formações nesta área.

Não é legítimo esperar mais.