Discurso na Recepção às Associações de Doentes, Semana da Saúde

Palácio da Ajuda
30 de Novembro de 1999


Termino hoje um conjunto de visitas e de encontros sobre o sistema de saúde, que me levou a hospitais e a centros de saúde e a ouvir especialistas de diversos saberes.

Constatei quer os resultados positivos, quer as suas muitas deficiências.

Sublinho primeiro as realizações:

Desde logo a evolução favorável de importantes indicadores do estado de saúde das populações, identificáveis na regressão das mortalidades infantil, materna e específica por doenças transmissíveis.

Confirmei, também, a qualidade da formação dos profissionais de saúde e o empenho demonstrado, por vezes em circunstâncias muito adversas, pelas condições físicas em que se desenvolve o trabalho e pela especial penosidade em lidar quotidianamente com a doença e com a morte.

Visitei, ainda, unidades que incorporam grande inovação tecnológica e que constituem, também, pólos de investigação científica e que nos permitem ter uma grande confiança na crescente eficiência do processo de diagnóstico e de tratamento.

Não deixei, porém, de constatar sérios problemas e dificuldades que subsistem no nosso sistema de saúde.

Em primeiro lugar, problemas no acesso aos cuidados de saúde e na equidade do sistema. Existem, ainda que de uma forma desigual, barreiras dramáticas no acesso dos cidadãos aos serviços de saúde, que se quantificam em longas listas de espera para consultas, intervenções cirúrgicas ou exames de diagnóstico. Este é um problema muito grave, quer por aquilo que ele em si representa, quer porque penaliza os mais pobres e os menos instruídos. Essa é uma inaceitável injustiça.

Por outro lado, a mudança nas condições sociais e familiares de apoio tem-se traduzido, também, por uma crescente indisponibilidade das famílias para cuidarem dos seus idosos e doentes. Os cuidados informais, outrora prestados de forma humanizada pelas famílias dão, assim, progressivamente lugar a respostas afectivamente mais distantes, impessoais e institucionalizadas.

Há que saber adaptar o sistema a esta nova realidade e a prevenir as situações dramáticas de exclusão social na doença. A sociedade, as famílias e o Estado têm de encontrar formas humanizadas de resolução destes problemas. Ninguém se pode desresponsabilizar da atenção a dar aos cidadãos mais idosos e àqueles que necessitam de tratamento e carinho por se encontrarem doentes.

Em segundo lugar, e ainda relacionado com o problema do acesso aos cuidados de saúde, confrontamo-nos com problemas na articulação desses cuidados. Tenho vindo a constatar, e congratulo-me com isso, a utilização progressiva dos cuidados de saúde primários e do médico de família.

O alargamento do horário de funcionamento dos centros de saúde, a deslocação de equipas móveis a locais de menor acessibilidade geográfica, o desenvolvimento do serviço domiciliário e de projectos integrados de promoção da saúde e de prevenção da doença, têm vindo a fomentar a articulação entre as diferentes unidades do sistema.

Em terceiro lugar, constatei a urgente necessidade de aumentar o número de profissionais de saúde que anualmente se formam. Este é um dos maiores desafios que o país tem de enfrentar. Existem já, em diversas unidades, carências significativas. O sistema de formação - as universidades e as escolas - não formam por ano os profissionais de saúde necessários. Não podemos continuar a investir nos equipamentos e deixar a descoberto o investimento prioritário nas pessoas. Acelerar o ritmo de formação e melhorar o processo educativo deve constituir preocupação prioritária do Estado.

Quis terminar esta "semana da saúde" falando convosco, enquanto representantes de associações de doentes e, também, como cidadãos que dedicam parte da vossa vida a promover a qualidade e a humanização da estadia dos doentes nas instituições de saúde.

Faço-o por duas razões.

Primeiro, para sublinhar de forma inequívoca que o sistema de saúde deve ser orientado para servir as pessoas, para ajudar aqueles que necessitam de cuidados.

Depois, para vos prestar o meu testemunho de reconhecimento pelo valorosíssimo contributo que, com a vossa actuação, dão para uma sociedade mais humanizada, mais justa e mais solidária. Vocês são o testemunho inesquecível de que não compete apenas "aos outros" e a um qualquer "sistema" resolver os problemas. As relações humanas são fundamentais porque as pessoas são, e serão sempre, a única razão de ser do sistema de saúde.

Quero com isto dizer que os princípios orientadores e a principal preocupação dos governantes se deve situar no estudo e resolução dos principais problemas dos cidadãos que têm necessidade de aceder aos cuidados de saúde e não na gestão da conflitualidade interna do sistema. É importante não confundir nunca esta ordem de prioridades.

Julgo, por isso, que os representantes dos cidadãos doentes devem ter uma voz institucionalizada, a ser ouvida no acompanhamento regular dos problemas que se manifestem no desenvolvimento no funcionamento do sistema de saúde. Devem ser apoiadas e incentivadas as diversas formas de participação da comunidade na vida das instituições de saúde. Desde logo facilitando-se o acompanhamento dos doentes e as visitas, estimulando a intervenção do voluntariado e das ligas de amigos, reforçando o papel dos conselhos gerais nos hospitais e os gabinetes dos utentes.

Por último, penso que, em todo este processo, a intervenção das autarquias pode ser determinante para o seu êxito, pelo conhecimento que possuem das realidades locais, pela forte ligação, que existe, seguramente, com a comunidade e com as suas instituições sociais, pela sua representatividade democrática. Em muitos dos projectos que visitei vi, com satisfação, associadas as autarquias e outras entidades, como as escolas, as misericórdias e outras organizações não governamentais.

Esta combinação de diversas legitimidades propiciará, estou certo, uma forma diversa de encarar os problemas e as suas soluções.

Termino estes dias que dediquei aos problemas complexos da saúde em Portugal convosco. Visitei instituições, ouvi técnicos e especialistas. Constatei realizações. Encontrei os problemas que todos já conhecem e já estudaram. No debate das diversas soluções possíveis para esses problemas, discutem-se opções ideológicas, paradigmas, modelos, sistemas, reformas. Expressões técnicas e abstractas com que se lida com uma realidade que é feita, afinal, de pessoas. E o debate envolve interesses organizados, dotados de grande capacidade de promoção da sua perspectiva particular para a solução desses problemas. Mas acima desses interesses û legítimos, naturalmente - deve estar o Estado que nunca, em circunstância alguma, pode abdicar de defender as necessidades dos cidadãos doentes como a prioridade que deve orientar as reformas que se queiram introduzir num sistema que claramente delas necessita.

Só assim se promoverá uma cultura de responsabilidade e de governabilidade na gestão do sistema de saúde em Portugal. Só assim se dará corpo efectivo ao objectivo de colocar o cidadão como personagem central do sistema.

Muito obrigado por terem aceite este convite.