Discurso de abertura da Conferência "Os Cidadãos e a Sociedade de Informação"


09 de Dezembro de 1999


Sociedade de Informação, Sociedade de Vigilância, Sociedade da Comunicação, Sociedade em Rede, Sociedade Globalizada. Todas estas são designações que podemos encontrar na reflexão de especialistas, no discurso presente na maioria dos órgãos de informação e mesmo à volta de muitas mesas em conversas informais.

O que parece unir todas estas tentativas de caracterização das sociedades contemporâneas é a ideia de que as tecnologias de informação e comunicação e os seus conteúdos representam hoje um elemento central para a evolução social, económica e cultural dos cidadãos.

Levando um pouco mais longe esta descrição poderíamos dizer que parece surgir um novo ideal de Homem, aquele que está permanentemente informado, contactável e que domina a utilização de uma multiplicidade de tecnologias: da Internet ao telemóvel, passando pelas consolas de jogos e pela televisão.

No entanto, grande parte da atenção pública dada às utilizações das tecnologias de informação e comunicação parece concentrar-se excessivamente no domínio do económico, relegando para um segundo plano as análises das implicações sociais e culturais.

É este o ponto de partida que me levou a promover esta iniciativa, a qual, partilhando do princípio de que a informação é um elemento central nas nossas sociedades, procura trazer para a discussão as implicações dos novos media para a participação dos cidadãos na vida pública.

Tem sido uma das minhas preocupações salientar a necessidade de proceder a reformas no sistema político, a par do assegurar de um efectivo reforço da proximidade, da participação e da confiança dos cidadãos. Julgo, igualmente, fundamental questionar o papel potenciador ou limitador que podem ter as tecnologias de informação e comunicação neste quadro.

Tal como vós, julgo não ter respostas definitivas para estas interrogações mas penso ser essencial afirmar a minha convicção de que, a par dos chamados direitos civicos, sociais e políticos, se afigura a necessidade de considerar que a cidadania plena implica igualmente o direito ao acesso à informação e à comunicação. E que nas sociedades contemporâneas esta "quarta geração" de direitos é condição necessária para o exercício e o acesso aos restantes direitos de cidadania.

No entanto, o desejo de dar iguais oportunidades de acesso às novas tecnologias de informação e comunicação em geral e à Internet em particular, continua a ser um desejo não cumprido para muitos dos cidadãos do planeta. Esta desigualdade é algo que cresce não apenas entre os países do hemisfério norte e sul, mas também entre países desenvolvidos e dentro destes.

Daí que, embora muito já tenha sido feito ao nível do acesso a terminais públicos em escolas e bibliotecas e com a chamada “Internet grátis”, é fundamental que se verifiquem as condições necessárias para um abaixamento drástico dos preços do equipamento e dos acessos. Só assim poderemos aproveitar plenamente as possibilidades criadas pelos novos media.

Gostaria, igualmente, de salientar que, no acesso dos cidadãos à informação e comunicação, é fundamental percepcionar que as barreiras não se centram apenas no nível económico, mas sobretudo no plano cultural e educacional, ou seja, no que respeita ao número de mulheres e homens que utilizam as novas tecnologias, à sua capacidade de aceder aos conteúdos em línguas diferentes do português e na capacidade de o sistema educativo proceder à formação de utilizadores e produtores de informação que estejam atentos à nova ética dos novos media.

A referência que faço a uma nova eacute;tica tem como objectivo colocar também a discussão no plano das competências educacionais.

Julgo que, no mundo das redes interligadas e da Internet, já não basta apenas saber utilizar um computador.

É fundamental saber destrinçar a informação útil da não útil, a falsa e prejudicial da verdadeira e, acima de tudo, treinar a capacidade crítica face aos conteúdos, sejam eles escritos, visuais ou sonoros.

A iniciativa que nos junta hoje no Centro Cultural de Belém está igualmente a ser seguida por muitos outros cidadãos no território nacional e fora dele.

Isso é hoje possível pois a difusão da Internet e a sua convergência com outras tecnologias de informação e comunicação permitem que as distâncias geográficas e o tempo ganhem novas dimensões.

Estas alterações merecem a nossa reflexão e não podem deixar de representar desafios, oportunidades ou ameaças para a comunicação e participação dos cidadãos na construção e aprofundamento da democracia.

Sabemos hoje que a nossa identidade como País, livre e democrático, é inseparável e provém, em larga medida, da energia da nossa afirmação cultural e científica.

E tal como afirmei no discurso que proferi no dia 1 de Dezembro, a complexidade da nossa época e dos problemas que nos coloca, exige maior informação, mais esclarecimento, mais comunicação, mais participação, mais ciência, mais consciência. O próprio destino das sociedades democráticas depende, em larga medida, disso mesmo.

Não podemos aceitar um Mundo ou uma sociedade atravessada por um novo e ainda mais terrível dualismo – de um lado, os poucos que possuiriam tudo, poder, saber, tecnologia, informação, dinheiro, capacidade de decidir, de escolher, de manipular; do outro, os muitos que nada teriam e nada poderiam.

A opinião pública, os segmentos especializados da população, o sistema educativo, os actores e agentes económicos e políticos não se podem alhear nem alienar das grandes questões da ciência, envolvendo a ciência, interrogando a ciência no vasto leque das suas aplicações. O alargamento e aprofundamento da cultura científica é tarefa primordial em todas as sociedades que querem continuar a ser avançadas.

Devemos ter presente que a ciência exige recursos e meios poderosos. Temos de ganhar consciência de que, apostar a fundo na investigação científica é o investimento a prazo mais rentável, pois é o que mais valoriza o que os países têm de precioso: a capacidade intelectual de criar, de inventar, de descobrir, de realizar.

É cada vez mais claro que as actividades científicas têm que ser consideradas como inseridas em fenómenos de natureza cultural mais vasta e, portanto, que a ciência é ela própria uma parte integrante e indissociável da cultura.

Hoje, mais do que nunca, torna-se imprescindível compreender o mundo em que vivemos, bem como as escolhas que nele se configuram. Mais do que nunca, temos, igualmente, necessidade de aprender, observar e experimentar ao longo de toda a nossa vida. A cidadania implica a participação. A solidariedade implica a independência.

A democracia pode, por vezes, parecer frágil no seu funcionamento. Mas o nosso dever colectivo é reforçá-la sistematicamente, porque o seu fortalecimento é, inclusivamente, a medida da sobrevivência da nossa identidade cultural, dos nossos valores e das nossas percepções.

As novas ditaduras e os totalitarismos nunca desprezam a força das máquinas nem a eficiência da propaganda; antes as estimulam, no quadro de uma combinação perversa com a ignorância política e com novas ou recicladas superstições.

É preciso estimular nos mais jovens o dom de imaginar, o prazer de aprender, o gozo de descobrir, a vivência de participar. Este é um campo onde uma sociedade democrática não pode fazer quaisquer concessões. Porque é dos jovens que dependerá a prática da cidadania na sociedade que queremos construir.

É este o momento de exprimir algumas questões que julgo devem merecer a nossa atenção e que constituem um ponto de partida para a discussão do exercício da cidadania na Sociedade de Informação.

São elas as seguintes:

Como poderemos potenciar as práticas e instituições da democracia representativa através do uso das tecnologias de informação e comunicação ?

Será o acesso a mais informação suficiente para falarmos de mais e melhor cidadania ?

Que papel poderão desempenhar as tecnologias de informação e comunicação para a consulta da opinião dos cidadãos e para a proposta de temas e questões a abordar pelos representantes eleitos ?

Será a discussão sobre democracia directa e representativa uma mera questão de possibilidades tecnológicas ou implicará a discussão mais vasta de modelos de sociedade ?

Como é que iremos encarar a formação da opinião pública numa televisão com públicos cada vez mais segmentados e numa Internet onde a característica fundamental é a da possibilidade de produzir e consumir informação em simultâneo ?

Como se poderá assegurar os direitos dos cidadãos no que respeita à sua privacidade no consumo, quando cada vez mais as transações feitas com o recurso a meios electrónicos e o próprio comércio electrónico criam um rasto digital das nossas opções e das nossas compras ? E como proteger o cidadão face a uma nova burocracia digital, com tendência para entrar na esfera privada dos cidadãos ?

Que novas formas de exclusão social podem as tecnologias de informação e comunicação promover?

Qual o papel das instituições do Estado-Nação e da União Europeia num mundo cada vez mais articulado e dependente das redes de informação ?

Esta não é uma discussão apenas sobre o futuro. Ela é também uma constatação de que a cidadania se encontra já hoje ligada à utilização da Internet, da televisão, dos telemóveis e das redes em geral.

Como a mobilização a favor do povo de Timor demonstrou, os portugueses souberam utilizar o impacto das imagens televisivas das manifestações em Portugal, o correio electrónico, as petições na Internet, o envio de faxes, as mensagens de telemóvel e mesmo o multibanco para sensibilizar a opinião pública global e os decisores internacionais para as atrocidades ocorridas no outro lado do planeta.

Este é apenas um dos exemplos de como as tecnologias podem ser utilizadas para uma maior e melhor cidadania. Cabe-nos agora, a todos nós, cidadãos, discutir, propor, experimentar. Em suma, colocar ao serviço da sociedade a utilização dos novos media, procurando um melhor exercício da cidadania no próximo milénio.

Jorge Sampaio