Conferência integrada no Ciclo de Conferências“Perspectivas da Realização do Direito e dos Valores que ele Integra e Veícula no Início do Terceiro Milénio”

Coimbra
30 de Abril de 1999


Quero começar por saudar a Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra pela ideia de realizar este Ciclo de Conferências, numa iniciativa que consubstancia uma das principais tarefas que se me afigura caberem a uma Universidade do nosso tempo: preparar para o futuro, pondo em debate pontos de vista diferentes, alicerçados em concepções plurais e em experiências diversas. Preparar o futuro, questionando as ideias feitas e estimulando o gosto da reflexão e a abertura a novos horizontes de pensamento.
Agradeço o amável convite que me dirigiram para encerrar este Ciclo, mas, apesar de ter dedicado a minha vida à prática do Direito, não pude contudo, quando o recebi, deixar de sentir alguma perplexidade, próxima daquela que José Saramago referiu no início da Conferência que aqui fez.
De facto, ao receber o vosso convite, que muito me honra, pensei: como posso eu, que não tenho na matéria outro título que o de simples, embora devotado, advogado, responder à expectativa e, numa Escola com o prestígio desta e que conta com Mestres tão eminentes, abalançar-me a um exercício que exige dotes que não possuo e que já foi aqui realizado por quem tão manifestamente os tem em maior grau do que eu?
Creio, porém, que, independentemente da consciência que tenho dessa situação devo, como Presidente da República, participar e estimular o debate sobre os caminhos e os desafios do futuro, que neste ano de viragem tão simbólico nos interpela fortemente, sob a forma de muitas esperanças e também de grandes perplexidades.
Abordar as “Perspectivas da realização do Direito e dos valores que ele integra no início do Terceiro Milénio” é proceder a uma análise prospectiva que terá também de assumir uma dimensão política e cultural.
O tema que me é proposto suscita impulsos de orientação e análise de sentido divergente ou até contraditório.
De um lado, há uma predisposição para salientar, no balanço das realizações do século XX, as conquistas e extraordinários progressos verificados, nos últimos 50 anos, designadamente nos domínios da manutenção da paz, do progresso das instituições democráticas e da protecção dos direitos do homem. Esses são os alicerces em que pode assentar uma visão optimista e mobilizadora perante os problemas que a realização do Direito e da Justiça nos colocam no dealbar do novo século.
Mas, contraditoriamente, sobram os motivos de insatisfação e de carência, de desilusão e de crise, para alimentar, não apenas o discurso, mas também uma visão marcadamente pessimista dos novos tempos.
Não deixa de ser significativo que nas conferências das personalidades que me antecederam neste ciclo se possam observar algumas linhas de reflexão comum onde perpassam essas duas notas dissonantes características do pensamento crítico dos nossos dias.
De resto, aí estão os trágicos acontecimentos que estamos presentemente a viver, e que mais directamente nos tocam, como em Timor ou na Jugoslávia, para ilustrar a forma contraditória como renovadas e justificadas expectativas de solução são, a cada momento, ensombradas por retrocessos, inquietações e incertezas.
A minha perspectiva não será, aqui, a de me enredar em conjecturas ou de me aventurar em profecias sobre o que nos reserva o futuro, para o que, como disse, não disponho nem dos instrumentos de análise nem de qualquer habilitação especial.
Vou limitar-me a formular algumas dúvidas e considerações assentes numa vivência particular de quem, fruto das funções que exerce, se vê directa e permanentemente confrontado, não apenas com a necessidade de reflectir estas questões, mas, também, de nelas prescrutar aquilo que possam encerrar de sementes de mobilização de energia e esforço colectivos em prol da realização dos valores que partilhamos.
Neste sentido, abordarei as dimensões que, neste tema, mais directamente repercutem na actividade do Presidente da República, ou seja, a do papel e natureza do Direito enquanto limitação do Poder e enquanto realização de valores de justiça material.
Não vou ignorar os factores de crise nem a grandeza das dificuldades que se colocam àquelas duas dimensões do Direito na transição do século. Pelo contrário, salientarei a forma como, nos diferentes planos da comunidade internacional e dos Estados nacionais, nos vemos confrontados com problemas inéditos para os quais não existem nem soluções conhecidas nem respostas fáceis. Mas isso não pode, na minha perspectiva, constituir fundamento de passividade ou desesperança nem servir para alimentar pessimismos tão em voga e tão típicos de final de milénio.
Colocar-me-ei sempre no ponto de vista de quem, sem escamotear as dificuldades ou os aparentes bloqueios que se nos deparam, formula dúvidas e interrogações para estimular a formulação de estratégias orientadoras da procura de respostas.
Designadamente, esforçar-me-ei por demonstrar que, em geral, as dificuldades não têm a ver com uma qualquer incompatibilidade essencial ou insolúvel entre as necessidades e conveniências políticas do nosso tempo e o Direito e a Justiça, mas são, sobretudo, o resultado de inadaptações ou inadequações próprias de uma época de transição.
Há, em todo o caso que ter consciência, não apenas das incapacidades subjectivas de quem procura novas vias, como do carácter necessariamente precário, falível e limitado que a novidade das circunstâncias objectivas do tempo presente impõe às tentativas de solução a que vamos chegando.
Durante muitos séculos, a filosofia e a cultura foram dominadas pela criação de grandes paradigmas, que se sucederam e que constituíram referências estáveis e duradouras. Mas vivemos hoje uma época em que as escolhas e as decisões são mais radicalmente responsabilizadoras porque privadas dessas grandes referências que condicionaram a formação dos saberes e o modo de exercício do poder.
No nosso tempo, a incerteza e a contingência vêm-se revelando como a verdadeira dimensão ontológica das criações humanas, ocupando o lugar que no Mundo antigo era o do destino, no Mundo medieval o da providência e no Mundo moderno o da certeza determinística, do historicismo e do cientismo.
Hoje, sabemos que a complexidade é a qualidade mais notória do Universo, mesmo do universo humano e social, e que cada momento da vida representa um confronto com o risco e com a incerteza.
O desenvolvimento do conhecimento científico moderno pôs em causa os próprios fundamentos epistemológicos da ciência clássica, que postulavam uma concepção mecanicista, determinista, regular e ordenada, abrindo caminho à formulação do princípio da incerteza, substituindo os critérios determinísticos por critérios probabilísticos, concebendo o conhecimento como descoberta progressiva e valorizando a falibilidade e o erro como factores dinâmicos de progresso segundo um método de conjecturas e refutações.
Sabemos agora, como disse o grande físico Niels Bohr, que “o contrário de uma verdade profunda pode ser uma outra verdade profunda”. E, poderíamos acrescentar, que o contrário de um grande erro pode continuar a ser um grande erro.
Sabemos também que pensar ou conhecer não consiste mais em construir sistemas fechados com fundamentos estáveis, mas pressupõe dialogar com a incerteza e a mudança, com a instabilidade, a transitoriedade e a imprevisibilidade.
Tal exigência implica a necessidade de uma atitude mental radicalmente nova, cuja validade de princípio, embora comece a ser aceite, demora tempo a integrar os nossos hábitos de pensamento e de acção.
Também nos mundos do Direito e da Política entre as lições a retirar do século XX estará, seguramente, a de que não há, na sociedade pluralista e aberta em que vivemos soluções "duras", grandiosas e definitivas para os grandes problemas do nosso tempo.
Também aqui as ideias de ponderação, de tolerância, de ductibilidade ou de compromisso são mais sinal de prudência e sageza que sintoma de fraqueza ou de renúncia à prossecução de ideais. Num contexto próprio de uma sociedade aberta a transformações profundas, revelam-se cada vez mais inadequadas as concepções da Política e do Direito construídas sobre lógicas de amigo/inimigo, de exclusão e de formulação de verdades e conceitos absolutos.
De facto, qualquer das referidas dimensões do Direito enquanto limitação do Poder e enquanto realização de valores se encontra, hoje, envolvida numa teia de tendências divergentes ou contraditórias, de uma complexidade que não se coaduna com respostas de ambição globalizante ou definitiva.
Todavia, começo por assinalar, no plano internacional, alguns elementos positivos de uma evolução recente que se traduzem, designadamente, na generalização do reconhecimento universal do rule of law.
A importância desse facto tem que ser relativizada, note-se, por força da natureza, muitas das vezes, meramente proclamatória ou semântica desse reconhecimento. Mas, o simples facto de, cada vez mais, e seja na Ásia, na África ou na América Latina, a adesão a este princípio se constituir como fonte de legitimação do Poder é, por si só, significativo.
As novas expectativas de generalização, partilha e revitalização dos ideais universais da justiça e da dignidade da pessoa humana que, por essa via, se podem abrir para centenas de milhões de pessoas são de um valor inestimável.
É certo que a história do século XX é pródiga nos exemplos de manipulação ou instrumentalização do princípio da legalidade para efeitos de legitimação de regimes essencialmente autocráticos. Mas, também aqui, a adopção de uma concepção tendencialmente universalista dos direitos do homem vem constituindo factor poderoso de pressão no sentido da progressiva transformação dos Estados de mera legalidade em verdadeiros Estados de Direito. Neste capítulo cabe destacar o renovado empenhamento da comunidade internacional na realização prática deste objectivo, nomeadamente através da instituição de mecanismos internacionais de controlo de eficácia crescente.
No entanto, e ainda no plano internacional, a rápida evolução verificada, sobretudo na última década, gerou também, como seria porventura inevitável, evidentes situações de desequilíbrio e instabilidade. É que, em grande medida fruto das transformações assinaladas, alteraram-se radicalmente as relações de forças sedimentadas ao longo de várias décadas pelo que, no fundo, é toda a estruturação conhecida da comunidade internacional que está posta em causa.
Trata-se, por outro lado, de compreender que assistimos, neste final de século, à evidência da erosão de alguns pilares sobre os quais se havia construído todo o edifício do Estado moderno e do Direito Público interno e internacional. Entre eles está, seguramente, o paradigma da soberania do Estado nacional.
O sentido que esta evolução assumirá no próximo século é, por ora, inapreciável, mas, pelo menos, traduz-se, desde já, na necessidade de reavaliar, adaptar e transformar todo um legado aparentemente consolidado nos últimos séculos.
As relações entre Direito e Política não poderiam ficar imunes às profundas alterações verificadas, sobretudo quando a cada dia e em cada nova crise se revela a consequente inadequação de um quadro jurídico internacional pensado para uma outra realidade. Assim, ao mesmo tempo que aumentam as solicitações para uma crescente intervenção intensiva e extensiva da comunidade internacional, mais evidente surge o desfasamento entre as novas realidades e necessidades da sociedade internacional e o enquadramento jurídico que actualmente a sustenta. Daí resultam inevitáveis riscos de tensão e conflito entre a efectividade da acção reclamada e os limites jurídicos que a condicionam.
Nestas situações há uma enorme pressão, não apenas das partes envolvidas, como da própria opinião pública, para privilegiar a realização pontual e circunstancial dos princípios materiais, mesmo quando eles são expressão de uma ideia de Direito apenas emergente, em desfavor da estrita observância das formas jurídicas gerais e abstractas, eventualmente incómodas e paralizantes.
Porém, e infelizmente, também o século XX é fértil em demonstrações de como a prossecução não juridicamente limitada e sustentada de valores materiais, por mais vinculados que eles sejam à prossecução da justiça, igualdade e liberdade, rapidamente corre o risco de degenerar em abuso de poder e, em última análise, em violação daqueles mesmos valores.
Encontramo-nos perante problemas de uma enorme complexidade, cuja resolução não se compadece com meros e piedosos apelos à reforma ou à adaptação das instituições e do Direito Internacional. É que aquilo que é deveras problemático não é a necessidade da reforma —em que todos concordaremos—, mas antes o sentido e conteúdo que ela deva assumir.
Tomemos, a título de exemplo, o caso do chamado "direito de veto" no Conselho de Segurança das Nações Unidas. Fácil é constatar a sua inadequação à actual relação de forças internacional e o seu efeito potencialmente paralizante de intervenções necessárias. Difícil é, no entanto, encontrar novos mecanismos que sejam adequados às actuais necessidades, que previnam eventuais tendências hegemónicas potencialmente ameaçadoras da própria subsistência do Direito Internacional, mas que, simultaneamente, sejam aceitáveis pelos Estados com uma posição dominante na comunidade internacional.
No fundo, as dificuldades que hoje vivemos são os afloramentos de uma contradição básica: é que a comunidade internacional só se pôde desenvolver com base em princípios como os da soberania nacional e da não ingerência nos assuntos internos, mas hoje, vinculada que está a prosseguir valores como a justiça, a liberdade, a igualdade, a democracia e os direitos do homem, vê-se obrigada a questionar a intocabilidade dos velhos paradigmas que haviam permitido a sua própria constituição enquanto tal.
Por outro lado, tais dificuldades espelham, e cada vez de forma mais evidente, a contradição inerente a uma comunidade que apresenta aqueles valores como fonte de legitimidade da sua intervenção, mas que só muito limitadamente se mostra capaz de os acolher e reflectir na sua própria organização e estruturação internas.
A época que vivemos coloca-nos, assim, perante problemas de uma enorme complexidade, relativamente aos quais é mais fácil rejeitar pretensas soluções cujo carácter erróneo já foi tragicamente comprovado no século XX que encontrar respostas novas e adequadas.
Parece seguro, de um lado, que os anteriores paradigmas já não correspondem ao actual estádio de desenvolvimento civilizacional. A actual consciência jurídica universal não tolera mais uma comunidade internacional satisfeita no auto-comprazimento das realizações que o Mundo desenvolvido obteve nos últimos anos à sombra dos velhos dogmas, enquanto assiste impavidamente, à sua volta, à miséria, à destruição, à desesperança e o atropelo sistemático dos valores em que essa mesma comunidade se pretende fundar.
Neste quadro, o Direito cumpriria um trágico destino se, não só abdicasse da sua função emancipatória de realização da justiça, como ainda pudesse ser invocado como alibi hipócrita de uma passividade intolerável.
Mas, por outro lado, a solução não pode ser a de uma intervenção política pontual e voluntaristicamente decidida à margem ou até contra os limites jurídicos existentes. Por mais bem intencionada que seja, uma actuação política sem Direito pode produzir, no imediato, uma ilusão de eficácia, mas, a prazo, e porque apenas se sustenta na capacidade de imposição do mais forte, gera inevitavelmente novos abusos, novas injustiças e novas desigualdades.
A via de realização da justiça no século XXI terá que ser construída no Direito e através do Direito, por mais contraditórias, difíceis ou incómodas que se nos apresentem, agora, as reformas institucionais da comunidade internacional e a adaptação correspondente do Direito Internacional.
Há inevitavelmente inúmeros riscos que impendem sobre este processo; com toda a probabilidade, o movimento que vivemos será feito de avanços e retrocessos, tentativas e erros, optimismo e desilusão. Mas, por isso mesmo, precisamos de caminhar ancorados numa estratégia orientadora. Ora, quando olhamos a espiral de tragédias que marcou indelevelmente este século e nos interrogamos como foi possível que um progresso científico e tecnológico sem precedentes fosse acompanhado de um tal cortejo infindável de horrores, a conclusão só pode ser a de fundar aquela estratégia nos valores da tolerância e da inclusão, da democracia e da igualdade, da paz e dos direitos do homem e dos povos.
Esta postura dinâmica e aberta de transformação pressupõe, é certo, a adaptação e inovação, mas também a manutenção e reforço das mais importantes realizações dos últimos séculos, como seja, a do imprescindível papel do Direito como a mais efectiva garantia de limitação do Poder. Continuamos longe, ou, pelo menos, não estamos mais perto da realização da utopia clássica em que, nas palavras de Engels, o governo das pessoas cederia lugar à mera administração das coisas. Logo, a ordenação e limitação jurídica do Poder continuará a ser, no novo século, uma dimensão essencial nas relações entre Estado e Direito. Não um qualquer Direito, note-se, mas um Direito orientado a valores que, na nossa época, não podem ser outros que os valores da justiça e da igualdade, da dignidade da pessoa humana, da autonomia pessoal e dos direitos fundamentais.
Também no plano da política interna a transição de século coloca novos e não menos complexos problemas à função do Direito enquanto limitação do Poder.
Há também, tal como acontece internacionalmente, uma pressão da necessidade de obtenção efectiva e imediata de resultados sobre a manutenção das garantias e direitos individuais.
É que se estes cumpriam, reconhecidamente, uma função insusbstituível de protecção nas épocas ou em situações de advento ou ameaça de autoritarismo estatal, são agora muitas das vezes mal compreendidos e criticados como relíquias anacrónicas e dispensáveis. Como se o actual estádio de desenvolvimento democrático das nossas sociedades fosse o fim da história ou como se a democracia ou o desenvolvimento económico constituíssem garantia absoluta contra violações que, por serem pontuais, nem por isso são menos graves ou menos atentatórias da dignidade da pessoa humana.
Estas dúvidas ou reservas são pouco significativas num contexto de claro progresso no domínio da sensibização social e política para a imprescindibilidade da protecção dos direitos fundamentais e das garantias próprias de Estado de Direito. No entanto, embora de forma desfocada, elas convocam a nossa atenção para a necessidade de repensarmos, no contexto das sociedades democráticas e desenvolvidas do final do século, a articulação dos direitos, liberdades e garantias individuais com a prossecução de outros valores comunitários igualmente relevantes.
A perspectiva não pode ser a de opor garantias processuais individuais a, por exemplo, realização de uma justiça célere, até porque, se é certo que não há direitos fundamentais onde eles não possam fazer valer-se judicialmente em tempo útil, também não há administração de verdadeira justiça se ela não se fizer no respeito e observância estrita das garantias fundamentais.
O verdadeiro problema não está numa pretensa incompatibilidade entre valores igualmente dignos de protecção, mas na necessária abertura de caminhos da sua realização optimizada em termos de ponderação e de concordância prática.
No exemplo em apreço, não há um dilema que nos obrigue a optar entre realização da justiça ou garantia dos direitos fundamentais. Há, antes, o problema de evitar que garantias processuais inadequadas redundem, na prática, em meros mecanismos de salvaguarda dos mais ricos, dos mais poderosos ou dos mais hábeis em desfavor da realização da justiça e, consequentemente, dos direitos fundamentais dos outros cidadãos. Há, antes, o problema do afinamento e descoberta das garantias processuais que verdadeiramente protejam os cidadãos no labirinto de um mundo que não controlam e onde cada vez mais se defrontam com novos poderes.
O problema não está, recorrendo a outro exemplo, na possibilidade de os cidadãos recorrerem ao Tribunal Constitucional. Estará, eventualmente, na inadequação de um sistema que permite que um advogado conhecedor arraste indefinidamente um processo através da hábil arguição de uma insignificante pretensa inconstitucionalidade de uma norma, mas não permite que um cidadão possa recorrer àquele Tribunal para tutela de um direito fundamental clara e gravemente violado por uma decisão eventualmente prepotente ou , pura e simplesmente, errónea de um juiz.
Estamos presentemente, por outro lado, perante um Direito que foi pensado e cumpria o seu papel enquanto instância de regulação da vida económica, dos conflitos sociais e dos mecanismos de decisão política num Estado soberano e regulador, mas que hoje se vê em grande medida impossibilitado ou, pelo menos, prejudicado no desempenho dessas funções.
Há transformações institucionais que, apesar de voluntariamente decididas, aceites ou assumidas pelo próprio poder político, não deixam, todavia, de significar uma perda substancial de soberania no plano interno e, consequentemente, de produzir consequências profundas na ordem jurídica e política dos Estados nacionais. Vejam-se, sobretudo, e para além do aprofundamento e complexificação dos já conhecidos processos de descentralização e autonomia institucional e territorial internamente decididos, a tendência para deslocação do centro de decisões políticas fundamentais para instâncias internacionais, a possibilidade de recurso dos cidadãos nacionais a mecanismos de controlo jurisdicional internacional sobre as decisões políticas, administrativas ou judiciais internas, e, de uma forma geral, os profundos efeitos fácticos e jurídicos derivados dos processos de globalização económica.
Por outro lado, e constituindo uma perigosa e importante ameaça que os Estados nacionais têm que enfrentar, desenvolveu-se, nos últimos anos, todo um conjunto de dificuldades derivadas do surto e ramificação de poderosas formas de economia subterrânea, de branqueamento de capitais, de emergência de redes de influência e de pressão não publicamente conhecidas e controladas. Mas, com cobertura da lei, assistimos também à concentração de poderes e acumulação de influência por parte de grupos que se constituem em novos poderes fácticos perante os quais o cidadão comum é deixado totalmente desarmado por um Direito estatocêntrico e baseado em concepções de direitos fundamentais predominantemente orientadas para a protecção do indivíduo isolado face ao Estado.
Assim, os mecanismos de regulação, controlo, limitação e participação aperfeiçoados durante décadas no plano nacional, se bem que imprescindíveis, são agora confrontados com os problemas da sua questionável adaptação e generalização às relações de interdependência, cooperação e integração internacional e com a sua duvidosa capacidade de resposta a formas até agora desconhecidas de exercício real de poder político, económico e social.
Estas novas circunstâncias produzem um enorme desgaste nas instituições e geram ondas de insegurança, insatisfação ou desconfiança dos cidadãos relativamente ao respectivo funcionamento. Nessa medida, projectam-se sobre toda a ordem jurídica e política nacional. Não apenas sobre o plano do Direito enquanto regulação da vida social e económica, mas também sobre as suas funções de ordenação do poder político, de limitação dos poderes e de protecção das garantias individuais.Não apenas sobre a estruturação e o funcionamento geral da democracia representativa, mas também sobre o exercício concreto dos direitos políticos, de participação e de cidadania.
São enormes e complexas, como se vê, as solicitações que o novo século coloca ao Direito e aos juristas.
A caracterização desta realidade como significando uma "crise" (seja da Justiça, do Direito ou do Estado Social) já não contribui, por tão banalizada e recorrente, para a tomada de consciência da gravidade dos problemas de que tratamos. Prefiriria, por ser mais positivamente iluminante, a ideia de que às nossas sociedades é imanente uma dinâmica de permanente transformação e consequente necessidade de permanente adaptação das instituições e do Direito e é perante essas responsabilidades que todos nos encontramos.
Estes problemas, que tantas vezes se nos afiguram imensos e sem soluções fáceis nem imediatas, não nos devem levar a uma atitude passiva, céptica ou mesmo niilista. Obrigam-nos, pelo contrário, a ter a coragem e a responsabilidade de eleger valores, escolher caminhos, defender convicções.
Não podemos aceitar que as inquietações, dúvidas e perplexidades do tempo que vivemos levem, tantas vezes com propósitos inconfessáveis, à exploração do irracionalismo mais primário, da superstição mais grosseira, do fundamentalismo mais agressivo.
A única maneira de não sermos paralisados pela incerteza e pela imprevisibilidade é encará-las, através de estratégias adequadas, como sendo conaturais aos problemas. Estratégia significa isso mesmo: a abertura de vias de progressão de conhecimento e de acção por entre a complexidade e a incerteza.
Sabemos hoje que as sociedades são organismos em equilíbrio dinâmico nunca definitivo, flutuante e variável, percorridas por factores contraditórios de coesão e de desagregação. As necessidades de permanente reforma, inovação, transformação e adaptação são co-naturais à própria dinâmica da vida e dos Estados democráticos dos nossos dias.
Sem a tentação das soluções fáceis mas redutoras e ilusórias, precisamos de nos habituar a pensar e a agir sobre o que é complexo, desconhecido e aleatório, rejeitando o pensamento único e unidimensional, ligando o que está isolado e estando atentos à multidimensionalidade dos problemas.
É por isso que, ao contrário das antigas formas de previsão, que partiam da regularidade e da repetição, a moderna prospectiva assume a complexidade e a incerteza, sabendo que o futuro não está sujeito a leis derminísticas, pois resulta de uma mistura de necessidade, de estabilidade e de regularidade, mas também de acasos, de rupturas, de erupções e de vontades, até porque é sempre construído por grupos humanos que procuram realizar projectos e interesses muitas vezes contraditórios.
Qualquer presente tem sempre à sua frente uma pluralidade de futuros. A escolha dos futuros possíveis e a invenção de alguns outros que parecem mesmo impossíveis é da nossa responsabilidade e essa pode ser exercida com a eleição de valores.
Tal é o ensinamento que recebemos dos acontecimentos que, nas últimas décadas do século, mudaram o Mundo. Essa tem sido também para nós, portugueses, a lição que nos é dada pelos vinte e cinco anos que estamos a comemorar e que constituem um riquíssimo património de experiência.
Iniciamos o novo século perante três grandes e preocupantes questões: a do eco-sistema e da capacidade de avaliar as suas alterações; a da solidariedade e da luta contra a exclusão e as desigualdades, a dos fundamentalismos e do combate pelo melhor conhecimento dos outros e de nós próprios.
A excelência de uma preparação científica e técnica que se abra decididamente às novas realidades e interrogações, mas, simultaneamente, integre os valores comunitários de justiça, igualdade, participação e democracia que constituem o legado mais positivo das realizações do nosso tempo será um factor decisivo no sucesso com que enfrentaremos os problemas do novo século.
Ao pensamento da complexidade no domínio filosófico e cognitivo deve corresponder, como defende Edgar Morin, no plano político e social, o pensamento da solidariedade. Perante a crise de algumas formas tradicionais e localizadas de cooperação e entre ajuda, precisamos de reforçar a coesão da sociedade, considerando a solidariedade não apenas como um valor moral, mas como um valor social que responde à insegurança gerada pela incerteza, que por vezes se traduz também numa “crise de futuro”. O Futuro não é mais uma via de sentido único, para o qual é possível termos previamente um mapa de estradas. O futuro é um caminho que se faz caminhando.
Sabemos que a complexidade da nossa época e dos problemas que nos põe exige maior informação, mais esclarecimento, mais comunicação, mais participação, mais ciência, mais consciência. O próprio destino das sociedades democráticas depende, em larga medida, disso mesmo. Não podemos aceitar um Mundo ou uma sociedade atravessada por um novo e ainda mais terrível, dualismo — de um lado os poucos que possuiriam tudo, poder, saber, tecnologia, informação, dinheiro, capacidade de decidir, de escolher, de manipular; do outro, os muitos que nada teriam e nada poderiam. Nessa sociedade, que constituiria uma nova e mais perversa versão da profecia de Orwell, não haveria nem liberdade, nem progresso, nem cidadania, nem participação.
É necessário compreendermos que não há neste mundo soluções reais que não sejam globalmente partilhadas. Ou seja, é preciso instalar uma cultura de cooperação, abandonando a ideia de que pensar o futuro é algo que nos não compete por não podermos dirigir os destinos do planeta.
Sabemos, sobretudo, que as soluções terão de ser procuradas através de uma estratégia firmemente ancorada em princípios de justiça que não se encontram, seguramente, num quadro desregrado de mecanismos em que prevaleça a lei do mais forte e que desprezem, humilhem e anulem os valores e as iniciativas dos outros.
O Direito e a Justiça estão, pela sua própria natureza e função, no centro das mudanças e das transformações que temos vivido e, não tenhamos ilusões, continuaremos a viver no início do novo milénio.
Significa isso que debates como o que este Ciclo propôs representam uma tomada de consciência do que está em causa e dos valores que é imperioso defender. E, como sabemos, tomar consciência é a primeira condição para que a nossa liberdade se afirme como um valor universal que faz da condição humana uma aventura portadora de futuro.