Sessão de Abertura das Jornadas da“International And Penitenciary Foundation”

Lisboa
22 de Maio de 1999


Compreenderão V. Exas. que, tendo percorrido a barra dos tribunais vinte e cinco anos a fio, e, como simples operário da luta pelas liberdades, aí tenha levantado a voz em defesa dos direitos humanos, desdenhados pela ditadura deposta em 25 de Abril, me sinta especialmente honrado por estar, hoje, na sessão inaugural destas Jornadas da Fundação Internacional Penal e Penitenciária, colégio de sábios que, há décadas, vem reflectindo sobre a prevenção do crime e o tratamento dos delinquentes e tem contribuído, de modo singular, para o aperfeiçoamento dos sistemas penais e penitenciários do mundo contemporâneo.
Esse contributo, que, no plano prático, tem o seu ponto alto nas “Regras Mínimas para o Tratamento de Delinquentes”, elaboradas, em 1955, pelo 1º Congresso da ONU sobre a Prevenção do Crime e o Tratamento dos Delinquentes, com base no trabalho científico da FIPP, jamais se afastou do que tem sido a ideia rectora e o limite de todo o trabalho científico desta Fundação - os direitos humanos e a sua defesa.
E por isso a temática dos “Direitos Humanos e Detenção Penal”, no Colóquio Internacional de Neuchâtel de 1992, ou os “Aspectos Legais da Prevenção do Crime”, nas Jornadas de Berlim de 96, sem esquecer o tema da “Detenção Policial à Luz das Garantias dos Direitos Humanos” nas Jornadas de Macau de 94, numa atitude pioneira de levar ao Extremo Oriente a reflexão e a mensagem dos direitos humanos, exactamente no território que melhor simboliza o diálogo Oriente/Ocidente e as promessas de enriquecimento mútuo que contem.
Para esta escolha feliz contribuiu, decisivamente, o Prof. Jorge Figueiredo Dias, que, com assinalável brilho, vem presidindo à FIPP desde 1990, juntando ao seu trabalho científico, de reconhecido mérito, e ao seu labor de docente e de responsável por muitas das reformas penais dos últimos anos, este serviço à comunidade jurídica internacional, que honra a Faculdade de Direito de Coimbra e honra Portugal.
Comunidade jurídica internacional que não pode, não deve, esquecer a África, esse extenso continente tantas vezes perturbado por sucessivas lutas de procura e consolidação de identidades, e cuja estabilização em muito dependerá do esforço de integração de que a FIPP dá exemplo com a admissão da África do Sul e o assento, como membro correspondente, de Cabo Verde, país a que nos ligam laços especiais de amizade e cooperação. Aos seus representantes, uma saudação especial.
Uma palavra, também, para os representantes da Association Internationale de Droit Pénal, da Société Internationale de Criminologie e da Société Internationale de Défense Sociale. E uma palavra de estímulo, para que prossigam na cooperação que, de parceria com a FIPP, vêm realizando no Comité Internacional de Coordenação, que tão valioso contributo tem prestado para os trabalhos dos Congressos quinquenais das Nações Unidas sobre a Prevenção do Crime e o Controlo da Delinquência.
Minhas Senhoras e meus Senhores,
O tema que nestas Jornadas é proposto para reflexão - “Novas Orientações do Regime Prisional” - revela-se de irrecusável actualidade.
O crescimento económico, a rápida alternância de ciclos de expansão com ciclos de recessão, o desemprego, a exclusão social, a droga, as condições de vida dos meios urbanos, têm constituído importantes factores de indução da criminalidade, condicionando, ainda, o modo como a comunidade se representa o crime e as reacções sancionatórias a que dá lugar.
E porque a criminalidade de rua, sobretudo ligada à droga, gera, compreensivelmente, um nível apreciável de insegurança urbana, a tendência social é para pedir mais, e mais graves, penas de prisão e para o acompanhamento distraído do que se passa dentro dos estabelecimentos prisionais.
Daí às conhecidas derivas securitárias, que concebem a prisão como simples meio de incapacitação do delinquente, o passo é curto e não raro tem sido objecto de inaceitável demagogia.
Contra isso, continuarei a fazer o discurso da cidadania, porque se há uma cidadania da vítima e irrecusáveis exigências de segurança social, há também uma cidadania do delinquente, maxime, do recluso, tanto mais carente de tutela quanto o módulo prisional o coloca em especiais condições de vulnerabilidade.
Temos nesse domínio uma magnifica tradição, tributária do ideário socializador que Beleza dos Santos, pioneiro do control jurisdicional da execução de penas, tão bem protagonizou, dentro e fora de portas, a partir dos anos 30, e que se expressa na reforma de 79, verdadeira e própria lei fundamental da execução de penas e de medidas de segurança privativas da liberdade, que emparceirou com o amplo movimento legislativo verificado na década de setenta.
É que se é essencial dispôr de uma lei penal e de processo que realize os valores expressos nos direitos humanos, universalmente declarados e reconhecidos, tanto ou mais importante é garantir que, aplicada a pena, a sua execução não passe apenas por uma perspectiva asilar e marginalizante, que degrade o cidadão recluso, que é sujeito de direitos, em mero objecto de poderes, tantas vezes incontrolados.
E por isso o tema destas Jornadas se revela tão actual e decisivo.
É que o direito penitenciário, para que o recluso continuae a ser cidadão, tem de deixar de viver na situação de pobreza envergonhada a que, amiúde, é votado, no compêndio das disciplinas criminais, e aproveitar esta oportunidade, em que a sobrelotação das cadeias faz título por esse mundo fora, para se firmar como garante de que a reclusão e marginalização de alguns, sem tutela dos direitos fundamentais, nem é justa para com eles, nem é exigida, necessariamente, pela segurança de todos.
A comunidade jurídica portuguesa não sofreu, pelo menos de modo significativo, o choque dos chamados “modelos penais de justiça”, que, balizados, nos extremos, ora por inspirações libertárias, ora por ideologias de segurança, acompanharam o desencanto e, não raro, os abusos a que deu lugar o ideal socializador.
A geografia destas Jornadas é, assim, propícia para constatar que se os “modelos penais de justiça” não cumpriram os objectivos que se assinalaram - decréscimo de criminalidade, maior celeridade do sistema judiciário, melhoria das condições de detenção e de motivação das performances dos agentes prisionais - tiveram, todavia, o mérito de colocar em cena os direitos fundamentais do recluso, e a imprescindibilidade de qualquer modelo de tratamento ter de ficar sujeito ao regime garantístico que eles expressam.
Restaurado o sentido de recuperação social da pena de prisão, então a sua eficácia exige que se estabeleça entre o recluso e a administração prisional uma relação de direitos/deveres recíprocos e que o modelo de tratamento se funde na voluntariedade.
Possa a vossa reflexão explorar estas vias e, à semelhança do que ocorreu com as “Regras Mínimas”, verem projectado nas condutas e incorporado nas leis o labor científico feito actor de mudança.
Trata-se de uma exigência da cidadania, em que não me cansarei de insistir.
Se punir é um direito do Estado, então corresponde-lhe o dever de preparar o recluso para o regresso à vida social, que a prisão é Quaresma e não uma penitência sem sentido, nem destino.
E porque assim é, o módulo prisional deve prefigurar o modelo social em que o recluso se reintegrará, o que implica normalização, apenas com as limitações necessárias, da vida prisional; estabelecimento, no âmbito de execução de pena, de relações de liberdade/responsabilidade; e criação de mecanismos que compensem a diminutio em que o recluso se encontra - serviços de saúde, de formação profissional, de trabalho voluntário, de animação cultural -, sob pena de a desigualdade, que a prisão necessária e licitamente comporta, se degradar em desigualdade tout court; no limite, em injustificada discriminação, que a ética censura e a Constituição da República proíbe.
Quando a população prisional é composta, em grande percentagem, por toxicodependentes, seropositivos, estrangeiros, reclusos com penas de longa duração ou problemas de saúde mental, ergo, com os níveis de dessocialização que já trazem consigo quando ingressam nos estabelecimentos prisionais, então aquela abordagem é irrenunciável. De outro modo, as prisões não serão mais do que marginalidade; agora ex lege, é verdade, mas com as mesmas virtualidades criminógenas da que gerou o delinquente e o seu crime.
Torna-se, por outro lado, necessária uma adequada cooperação e coordenação entre a administração penitenciária e as entidades, sejam estaduais, sejam da sociedade civil, que possam contribuir para o desiderato da reintegração no termo do cumprimento da pena, à mingua do que todo o projecto de recuperação social poderá falir.
Minhas Senhores e meus Senhores
A consideração do regime prisional numa perspectiva ético-jurídica de recuperação social do recluso é uma exigência da cultura que professamos e do Estado de direito que informa esta comunidade. Mas é também uma condição de eficácia do próprio sistema que, recusando a incapacitação como o fim universal das penas de prisão, tem então de organizar os meios que impeçam a dessocialização e promovam a não-dessocialização.
Que na reflexão agora iniciada sobre “Novas Orientações do Regime Prisional” se não perca de vista que, nas prisões e seu regime, está comprometida uma questão essencial - sermos todos, reclusos e não reclusos, cidadãos.