Iniciativa dedicada à Educação Pré-Escolar

Palácio de Belém
13 de Dezembro de 1999


Nunca como hoje, as crianças ocuparam um lugar tão importante na vida familiar e social. Elas concentram grande parte das nossas atenções e afectos, das nossas esperanças e anseios.
Mas, ao mesmo tempo, nunca como hoje, tivemos tão pouco tempo para cuidar dos nossos filhos, para com eles convivermos no dia-a-dia. A evolução do emprego das mulheres e das condições de vida nas cidades, bem como o desaparecimento progressivo das estruturas familiares "alargadas", são aspectos que permitem explicar esta realidade.
Portugal é hoje o país da União Europeia com a maior proporção de mães jovens a trabalhar a tempo inteiro.
Não espanta, por isso, que ao longo das últimas décadas tenham crescido instituições que se dedicam ao acolhimento de crianças, desde os primeiros meses de vida até à entrada na escola obrigatória. Recentemente, e graças a uma política que tem suscitado grande consenso na sociedade portuguesa, tem sido possível dar passos muito significativos no desenvolvimento da educação pré-escolar para crianças dos três aos cinco anos.Com esta iniciativa, dedicada aos problemas da educação de infância, quero dar público testemunho da importância de prosseguir esta política, contribuindo para que todos os jardins-de-infância tenham as condições previstas na lei e para que, progressivamente, haja um aumento de frequência e um maior cuidado com a acção educativa junto das crianças até aos três anos de idade.
Ao fazê-lo, quero lembrar "que a Humanidade deve dar à criança o melhor de si própria", como se escreve na Convenção dos Direitos da Criança, que este ano comemora o seu 10º aniversário. Ora, é preciso reconhecer que ainda falta muito para garantir os direitos das crianças, tal como estão consagrados neste texto das Nações Unidas.
As minhas primeiras palavras são, justamente, para denunciar as situações de violência e de abandono que impedem muitas crianças de serem crianças, que as transformam em vítimas da ignorância e da exploração dos adultos. É para elas que se dirige a minha atenção e o meu pensamento. Não quero que haja "crianças a chorar na rua", "crianças exiladas dos outros", como dizia Fernando Pessoa, crianças perante as quais os nossos "corações estão desprevenidos e exaustos".
Todos sabemos que a infância é uma idade decisiva. As nossas acções - e as nossas omissões - marcam as crianças, tantas vezes de forma definitiva e irreparável.
Recordo as palavras de João dos Santos: "O segredo do homem é a própria infância". Recordo-as, para dizer que ninguém se pode isentar desta responsabilidade social. A educação é o dever primeiro que temos como adultos, como pais, como cidadãos.
Sei que tem sido realizado um esforço difícil mas consequente ao nível da justiça, da solidariedade social e da educação para proteger, valorizar e dignificar a infância. Foram já dados como resultado dessa cooperação, alguns passos significativos.
Gostaria também de louvar as iniciativas para dar a conhecer os Direitos da Criança. Lembro com emoção um episódio que vivi nos Açores quando numa festa popular, um grupo de crianças apresentou um interessante trabalho realizado na escola sobre esses direitos.
Proponho falar-vos de três aspectos que me parecem essenciais para pensar, hoje, as questões da educação de infância.
Em primeiro lugar, quero dizer-vos que a educação de infância não é apenas um problema da escola.
É evidente que, para muitas crianças, a escola constitui uma forma de protecção dos seus direitos e um elemento extremamente importante de desenvolvimento pessoal e cultural. Hoje, todos estamos de acordo quanto à necessidade de alargar a rede da educação pré-escolar, prolongando o investimento que tem sido feito nos últimos anos.
Mas, ao mesmo tempo, é preciso sublinhar a importância dos pais e das famílias, dos amigos e dos espaços informais na educação das crianças. E, por isso, é tão importante avançar com medidas que favoreçam uma maior presença das mães e dos pais junto dos seus filhos, e a conciliação entre a vida profissional e a vida familiar com políticas de apoio às famílias, com acções concertadas sobre a qualidade de vida (em particular nas cidades), com mudanças na própria vida social e comunitária.
A educação das crianças mais pequenas não se faz apenas nos jardins-de-infância. Não podemos contentar-nos em deixar as crianças, e ir buscá-las no final do dia. A nossa responsabilidade é mais ampla.
Temos de assegurar as melhores condições educativas, nos jardins-de-infância, mas também num conjunto de outras situações de acolhimento, em particular das crianças até aos três anos. É preciso que a educação facilite o seu despertar lúdico estimulando-as na sua curiosidade e nos seus afectos, e apoiando-as no seu desejo de comunicar.
É preciso também que sem prejuízo das crianças e do seu direito a estarem com os pais, se pense na situação específica das mulheres portuguesas, aproximando os serviços prestados das necessidades das famílias em matéria de horários das instituições, e assegurando uma componente socio-educativa e de animação de qualidade.
São tarefas que implicam uma responsabilidade partilhada de pais, educadores e autarcas, dentro e fora dos espaços formais, que "cruzam" uma diversidade de dimensões no respeito pela identidade própria de cada criança. Repito uma frase conhecida: "É precisa a aldeia toda para educar uma criança".
O segundo aspecto que gostaria de tratar nesta ocasião, prende-se com o sentido do trabalho educativo nos jardins-de-infância. Creio que todos estaremos conscientes da importância de uma "intervenção precoce" na educação fundamentada em modelos pedagógicos consistentes.
Há uma enorme diversidade de situações de acolhimento das crianças mais pequenas. Esta diversidade deve ser preservada, procurando assim dar respostas às diferentes necessidades das crianças e das suas famílias. Se o conceito de "escolaridade obrigatória" implica, por definição, a existência de certos padrões comuns, a situação não é idêntica no âmbito da educação pré-escolar.
A importância de assegurar um ambiente educativo propício ao desenvolvimento, e de harmonizar objectivos não deve favorecer a adopção de modelos rígidos e uniformes. Bem pelo contrário. Os jardins-de-infância devem organizar-se com grande maleabilidade, tendo em conta as tradições familiares e as comunidades em que estão inseridos. Deste modo, eles poderão constituir um elemento essencial para a formação, muito em especial das crianças oriundas de meios socio-económicos desfavorecidos, que não usufruem de um ambiente familiar culturalmente estimulante.
Esta atitude não é incompatível com a organização das actividades educativas respeitando as orientações pedagógicas publicadas.
Para além do desenvolvimento pessoal, há duas dimensões do trabalho educativo que é essencial assegurar nos jardins-de-infância:
Por um lado, a aprendizagem da vida em comum, da partilha dos espaços, das regras da comunicação. A ideia de "cidadania democrática", baseada na promoção moral e cívica dos alunos, deve ser a pedra-de-toque do nosso esforço de educar. É aqui, na escola da primeira infância, que se dão os primeiros passos no caminho da tolerância e da solidariedade. (Gostaria de sublinhar como me foi grato conhecer as práticas de educação para cidadania que tivemos ocasião de visitar hoje, designadamente a aprendizagem do diálogo, de regras de vida colectiva, da tolerância ).
Por outro lado, o contacto com o conhecimento e a cultura. Já não nos servem instituições preocupadas apenas em "entreter" . As crianças devem iniciar-se no mundo da cultura, da ciência e na aquisição dos instrumentos do conhecimento segundo procedimentos próprios, adaptados à sua idade.
A convivência com os outros e com a cultura define-se por referência ao desenvolvimento próprio de cada criança, à criação das condições para o seu despertar autónomo e para a sua expressão como pessoa.
Por último, gostaria de me referir ao actual "edifício legislativo", que valoriza os contributos prestados pelas redes pública, solidária e particular e cooperativa, assegurando a "tutela pedagógica" do Ministério da Educação. Historicamente, o Estado português não teve durante décadas uma intervenção significativa no sector pré-escolar. É importante, por isso, valorizar a experiência e o conhecimento que existiram e ainda existem nas instituições de solidariedade social e no sector particular e cooperativo. Experiências em muitos casos de grande mérito pedagógico que marcaram muito positivamente o sector. Do mesmo modo, não podemos esquecer o importante esforço que tem sido realizado pelo Estado (entre 1996 e 1999, o Orçamento do Ministério da Educação para a Educação pré-escolar aumentou de cerca de 140 por cento) e por muitas autarquias.
O Estado deve assumir uma parte importante no financiamento da educação de infância, bem como uma função de regulação, de inspecção e de avaliação. O objectivo da gratuitidade da educação pré-escolar, pelo menos na sua componente educativa, deve ser atingido o mais rapidamente possível, prosseguindo o esforço que vem sendo realizado a bom ritmo. As visitas que já efectuei durante o dia de hoje, confirmam o interesse de alargar as parcerias e a cooperação institucional. Temos de encontrar fórmulas organizativas inovadoras, que respondam adequadamente à diversidade das solicitações das famílias e das necessidades das crianças. Durante décadas a educação pré-escolar foi reservada a um número muito restrito de crianças graças à iniciativa assistêncial e particular. Temos de continuar a trabalhar para:
― Assegurar a qualidade dos serviços educativos prestados a todas as crianças;
― Progredir no esforço de construção de edifícios e aquisição de equipamentos para as creches e para os jardins-de-infância;
― Criar condições profissionais dignas e justas para todos os educadoras de infância.
Mas, durante as visitas que já realizei hoje tenho verificado que houve uma evolução muito positiva neste sector, evolução que importa prosseguir e consolidar nos próximos tempos.
Não quero terminar sem deixar uma palavra de muito apreço a todos os profissionais que têm dedicado a sua vida à educação de infância (nas creches, nos jardins-de-infância, nas escolas de formação de educadoras, etc.). Aproveito para afirmar uma palavra de muita saudade pelo desaparecimento de Maria da Luz Deus, grande educadora que profundamente marcou este sector. É nas palavras de Irene Lisboa, ditas há mais de 50 anos, que simbolicamente vos saúdo (cito): "O erro fundamental é o de julgarmos que a educação consta apenas de umas tantas regras, e de escola. Já podemos ir um pouco além disto! A atenção que damos a uma criança, por amor, ou por interesse espiritual, faz-nos descobrir grandes verdades, ter relâmpagos de entendimento sobre a alma infantil. É esta atitude de observação e de amor a mais útil para a convivência com crianças. (...) Todos nós nos educamos e educamos os outros, de vários modos". Não há, certamente, tarefa mais nobre do que esta de educar crianças, de as preparar para um futuro como cidadãos de corpo inteiro, de sentimento inteiro. Mas nos jardins-de-infância não se constrói apenas o futuro.
Vive-se também o presente. Nós queremos um futuro melhor para as nossas crianças. Mas queremos também um presente melhor, mais afectivo, mais estimulante, mais feliz. O amanhã das nossas crianças depende do modo como formos capazes de as educar hoje.