Sessão de Encerramento das Conferências sobre“ O Direito Português de Macau – Um Legado para o Futuro”

Lisboa
28 de Outubro de 1999


O processo de actualização do ordenamento jurídico de Macau constituiu uma inadiável necessidade dos tempos novos, filha da inércia que, décadas a fio, acompanhou a vida do território, e uma resposta inafastável às exigências da Declaração Conjunta.
Daí que a criação, no fim dos anos 80, do Gabinete de Modernização Legislativa tenha representado a linha de partida justa de um árduo e laborioso processo, que está agora em vias de ser concluído com sucesso. E se a isso juntarmos a obra notável levada a cabo pelo Gabinete de Tradução Jurídica, criado no mesmo momento em que era instituído o Gabinete de Modernização Legislativa, abarcar-se-á todo um marco importante da Administração Portuguesa de Macau pós-Declaração Conjunta. Mas em Macau actualizar era também traduzir para chinês o ordenamento jurídico local; e, por isso, cumpre-me sublinhar o carácter absolutamente inédito que a obra feita representa, quer organicamente, quer na qualidade do trabalho produzido.
É também a excelência da qualidade o que caracteriza a actualização do sistema jurídico de Macau, efectuada nos últimos dez anos, que nos permite, hoje, registar e festejar, com orgulho, a edição de todos os códigos estruturadores do sistema jurídico local. Tratou-se de um processo conduzido com a preocupação de manter intocada a matriz portuguesa do direito, mas com a sua prudente e sensata adaptação às realidades locais e regionais. E isto sem perda de rigor técnico, até pela reconhecida valia de todos os que intervieram neste laborioso processo de actualização.
Processo também laborioso, porque feito em permanente cooperação com a Parte Chinesa, de modo a garantir, face aos termos da Declaração Conjunta, que o ordenamento jurídico vigente, por com ela se conformar, teria vida garantida nos 50 anos que se seguirão à transferência do exercício de soberania, e nos mais que a História lhe reserve.
Foi um momento de frutuosa colaboração no âmbito do GLC, que não poderia ter o sucesso alcançado sem a cooperação pericial nunca regateada pela Administração do Território, e cuja qualidade, quer no domínio da actualização legislativa, quer no da tradução jurídica, se revelou de incontornável.
Nem tudo se fez, sempre se dirá. Mas o universo abrangido, na medida em que esteve subordinado às limitações de um inafastável consenso diplomático, tem a extensão que nesse consenso foi possível obter. E aí, é justo realçar o denodo e a perícia reveladas pela nossa diplomacia, que me apraz lembrar neste momento de celebração.
Certo é que, no essencial, ficam adequadamente disciplinadas as relações jurídico-privadas e o modo de as tutelar. Séculos de evolução legislativa em matéria penal e no estabelecimento de garantias processuais da liberdade das pessoas serão a matriz, no território, da defesa dos valores essenciais da vida em sociedade. E se nem todos os direitos e liberdades têm regulamentação expressa, que detalhe o seu reconhecimento pela Declaração Conjunta e a directa aplicabilidade daí decorrente, foi-se até onde o consenso permitiu. Ter ido além dele, de forma unilateral, traria apenas ao Estado Português um inútil atestado de confirmação dos valores que proclama e pratica – que para mais não serviria a edição unilateral de regulamentação, aí onde o consenso não chegou.
Podemos orgulhar-nos do legado que deixamos em Macau.
Ele fica a dar testemunho de que a cidade não foi apenas um entreposto nos confins do Império, e que séculos de presença se constituíram, sempre, um momento de comércio das coisas e de aproveitamento de oportunidades, umas legítimas, outras dispensáveis, fundaram, sobretudo, a sede mais longínqua de uma vontade de criar liberdade e progresso, respeito e entendimento na diferença, esperança de difusão dos valores e de compreensão dos direitos fundamentais. E isto numa zona do mundo onde tem sido difícil conciliar liberdades reais e liberdades formais, e onde os mecanismos de expressão da vontade política dos povos e do controle por eles dos espaços de decisão política e comunitária vão percorrendo caminhos dolorosos, em que muitos têm sacrificado a liberdade pessoal e seguido, amiúde, as agruras do exílio forçado.
É essa expressão de Justiça e de Liberdade que o Direito deixado em Macau proclama e protege. Assim os Juizes da terra saibam fazê-lo respeitar, com a independência que faça deles os reconhecidos guardiões do tempo futuro.
É com este voto que estarei em Macau, às zero horas de 20 de Dezembro, como testemunha qualificada da República Portuguesa, a assumir, de corpo inteiro, a herança de 450 anos, e a lembrar a todos o indeclinável cumprimento da palavra dada, solenemente, perante as Nações e perante a História.