A Ernesto Melo Antunes

(Homenagem publicada na revista “O Referencial”, da Associação 25 de Abril”)
01 de Outubro de 1999


Há amizades que se forjam, desenvolvem e aprofundam por intermédio de uma variedade de sentimentos, de palavras, silêncios, actos, porventura de bem assumidas omissões. O lugar comum registará a palavra complexidade. Outros, mais optimistas, falarão da riqueza do relacionamento humano.
Como descrever em A4 vinte e cinco anos de amizade com o Ernesto? Como recordar o Ernesto, ou o Melo, ou o Melo Antunes? Como ser tolerante com a manifestação de apreço post-mortem de vários que nunca o suportaram? Como alinhar palavras para descrever os momentos cruciais da nova democracia portuguesa que se viveram em comum? Como não lembrar a redutora forma de descrever a história recente, incapaz de perceber que os protagonistas foram muitos e que há, apesar de envoltos pelo manto da distância e do silêncio que sossega os que gostam de ver o chão rarefeito à sua volta, alguns que foram determinantes na evolução das coisas? Como não recordar que as convicções, os princípios, os valores podem ser assumidos com austeridade de comportamento na relação com os outros, e que é também por isto que a memória do Ernesto se não apagará?
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Se bem me lembro, conheci pessoalmente “o oficial do Exército da Oposição”, como a memória da CDE recordaria, após o 11 de Março de 1975, em casa do César de Oliveira. Sempre o César, a mais fraterna combinação de utopia e militante fraternidade. O Melo Antunes, acabado de ser designado “para os Estrangeiros” - como se dizia na gíria da formação dos Governos – pediu-me para o acompanhar como Secretário de Estado da Cooperação Externa. Lá fui, para escassos meses de responsabilidade num país em ebulição.
Não é o Portugal de 1975 que quero recordar agora. Tem havido para isso os especialistas do costume. O que importa é que o Ernesto Melo Antunes, acompanhado dos seus amigos militares, com os apoios e diálogos que conseguiu, foi capaz de exprimir, na vertente militar, as aspirações maioritárias do povo anónimo a uma sociedade de liberdade, de democracia e de justiça. A tarefa não era de somenos, se nos lembrarmos da fragilidade de uma sociedade civil pouco habituada a exprimir-se e de uma vida político-partidária, com uma assinalável excepção, então ainda construída, na prática, por emoções precariamente organizadas. Essa parte, entre aspirações populares básicas e aparelho militar reformista, só poderia ser feita pelo Melo Antunes. Claro que foram marcantes, decisivamente marcantes, outros militares dos Nove. Mas convenhamos que só ele estava colocado nos dois lados ao mesmo tempo. Do lado da sociedade, digamos assim, porque dentro dela há muito tinha assumido, antes do 25 de Abril, o percurso do intelectual que arrisca estatuto e carreira na luta pela liberdade e por uma sociedade moderna. Do lado dos militares porque a referência tematizadora e de enquadramento do “Movimento dos Capitães” tinha a sua marca fundadora.
Esta síntese operativa foi crucial no Verão de 1975 e ao protagonismo discreto, mas fortíssimo e inquebrantável, do Melo Antunes se ficou a dever a solidez da nova componente militar que deu suporte físico e anónimo (as palavras são as indicadas) a quem, na chamada vida política civil, se preocupava com a construção do regime das liberdades e da democracia.
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Recordo, também, como tudo fez, com a determinação – quase obstinada – que se lhe conhecia, para que a nossa enorme saga colonizadora terminasse com a dignidade de novas relações de cooperação. Ainda teve tempo para ver como tantas frases feitas sobre o perigo do terceiro-mundismo (e de que ele seria o irrealista e perigoso teórico, lembram-se?) acabaram por desaparecer envergonhadas, dando lugar, felizmente, a uma comunidade de povos de língua portuguesa, componente essencial do percurso de povos que se exprimem do mesmo modo.
Este ponto não é aqui referido para dar razão ao Ernesto Melo Antunes, no debate da época, e á correcção do seu posicionamento. A verdade é que compreendeu que futuras relações de cooperação com os novos Estados eram o único cimento possível para uma descolonização efectuada nas piores condições, ainda por cima quando, no ex-poder colonial, se ensaiava a construção de um novo regime democrático.
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Acompanhei de perto o isolamento a que foi votado pelas frases célebres proferidas nas horas imediatas ao 25 de Novembro. Uma vez mais, e agora por outro lado, procurou assegurar o espaço plural com que se faz uma democracia moderna. Resistiu sempre do mesmo modo, sem um queixume, e com incomparável dignidade.
Lembro-me também da chamada passagem à vida civil, após a revisão constitucional que terminou com o Conselho da Revolução e consolidou o regime. Teria então apreciado um gesto de fraternidade democrática vindo do novo poder que decididamente ajudara a consolidar. Mas percebi, pelo seu fortíssimo silêncio, como lhe foi insuportável a sua inclusão na designação genérica “de poder militar finalmente derrotado”, quando precisamente a sua grande batalha de 1975 fora travada para derrotar a degenerescência de um novo situacionismo militar em deriva, incapaz de perceber a aspiração de tantos a uma sociedade democrática, europeia, de ambição modernizadora...
Também me é impossível esquecer a sua posterior inscrição na secção da Ajuda do PS, afinal como homem só mas brutalmente acompanhado pela força das suas convicções de sempre. Foi um grito pouco escutado. Não se admirou com isso, aliás.
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E agora recordo tudo, na velocidade do tempo cheio que a morte do Ernesto faz desfilar à minha frente.
Fico a vê-lo na sua última presença em reunião do Conselho de Estado que se ocupou, uma vez mais, de Timor. Não me sai dos olhos o esforço físico que fez para estar presente e dar o seu contributo experiente e sabedor, sempre no contexto de uma inapagável fidelidade aos princípios.
Mas quero permanecer com a sua imagem, quando o fui visitar no passado 25 de Abril de1999, em plenas comemorações dos vinte e cinco anos. Tinha pedido ao António Franco para o sondar sobre a possibilidade da visita, sabendo como avesso era a qualquer aproveitamento mediático.
Acompanharam-me os Generais Espirito Santo (hoje CEMGFA) e Faria Leal. Percebi-lhe nos olhos e na figura tão emagrecida, no discreto sorriso, no seu quase permanente silêncio, como gostou de ver os seus colegas militares naquele dia. Terá pensado – porque não julgar assim? – que aquela carreira militar, a dele, lhe propiciara afinal dar ao seu país tudo quanto aprendera sobre a eterna batalha do Homem pela dignidade, pela liberdade, pela justiça, pela Verdade, pela igualdade de oportunidades. E para mim, face à evidência do destino próximo do Ernesto, fiquei discretamente feliz por lhe ter permitido viver ainda, connosco ali, a retrospectiva fantástica que naquele dia se comemorava e que não teria sido possível sem o seu contributo, central e decisivo.
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O Ernesto Melo Antunes não é apropriável por ninguém. Não se pode pretender dar, sobre ele, qualquer testemunho, com a convicção de que, pelo conhecimento passado, valerá mais do que qualquer outro.
Cá para mim fiquei contente por ter ouvido tanto elogioso comentário, escrito e falado, sobre o Melo Antunes. Nem sequer me dei ao trabalho de elencar aqueles que provinham dos que só se lembraram dele no post-mortem. Não importa. Esta forma de fazer justiça não prescreve, felizmente. Nem é justo duvidar das intenções de ninguém. A verdade é que não me larga, porém, a ideia de que a vida do Ernesto teria sido mais feliz se pudesse ter ouvido antes algumas coisas que sobre ele, foram, muito justamente, ditas depois. Mas também é certo que o Ernesto nunca esperou que isso acontecesse.
Morreu um grande português e um grande europeu. Deixou-nos um dos pais fundadores da democracia portuguesa.