Sessão de Encerramento do Colóquio de Direito Internacional "Comunidade de Países de Língua Portuguesa"

Universidade de Coimbra
25 de Abril de 1997


Senhor Presidente da República de Cabo Verde
Senhor Secretário de Estado dos Negócios Estrangeiros e da Cooperação

Senhores Embaixadores

Senhor Comissário para as Minorias Étnicas

Magnífico Reitor da Universidade de Coimbra

Senhor Reitor Honorário, Prof. Ferrer Correia

Senhor Presidente do Conselho Directivo

Senhor Presidente do Conselho Científico

Senhor Presidente da Câmara Municipal de Coimbra

Senhores Professores,

Ilustres Cientistas

Caros Estudantes

Minhas Senhoras e meus Senhores.


Quero, em primeiro lugar, distanciar-me um pouco das notas que trago para saudar a feliz síntese que o Professor Gomes Canotilho aqui produziu no início da sua alocução, reinventando a gramática da República, feita toda ela de tolerância, justiça, igualdade e fraternidade e juntando, logo de seguida, esta coisa tão bela que é continuarmos a ter múltiplas facetas, mas com a capacidade de olharmos uns para os outros. Penso que está aqui resumido o essencial desta iniciativa tão significativa, que é a Comunidade de Países de Língua Portuguesa.

Também, ainda neste prólogo, quero dizer que não posso resistir a pensar – e peço desculpa por isso aos ilustres organizadores do Colóquio - o que foram estes meus últimos oito dias e, de alguma maneira, como eles foram tão significativos e como não teriam lugar se não fosse o 25 de Abril, se não fosse o acontecimento que as flores que temos na lapela simbolizam.

Há oito dias, estava com o Senhor Presidente de Cabo Verde e alguns Chefes de Estado da África Austral, na tomada de posse do Governo de Unidade e Reconciliação Nacional de Angola, acompanhado do nosso Ministro dos Negócios Estrangeiros e do Senhor Secretário de Estado dos Negócios Estrangeiros, numa cerimónia profundamente densa, de aspiração de paz, de reconciliação, de diálogo e senti esse pulsar tremendo da África que procura o seu destino, da África que quer ter o seu lugar no Mundo. Naquela ocasião, tive também a oportunidade de visitar instalações da Força de Manutenção de Paz das Nações Unidas e conviver com o conjunto das forças portuguesas que integram essa força internacional, forças que são hoje saudadas por todo o mundo pela capacidade que revelam em prover à logística e às comunicações de todo o processo de paz angolano. Apercebi-me, ao mesmo tempo, que aqueles soldados, sargentos e oficiais, também ensinam português a meninos abandonados e, de todos aqueles com quem falei, não houve nenhum que relativamente àquela acção, fosse capaz de pensar duas vezes e olhar para trás. Todos eles foram sim capazes de olhar em frente e de pensar o futuro.

Depois, ontem mesmo, praticamente até à meia-noite, participei em Bruxelas, numa reunião da NATO, onde o Presidente de Portugal teve a honra de ser convidado a intervir perante uma vasta plateia, composta não apenas pelos representantes dos 16 países que formam a Aliança Atlântica, mas pelos mais de quarenta que hoje, entre parcerias para a paz e iniciativas de cooperação com a Rússia e com a Ucrânia, fazem com que, afinal, o diálogo europeu se produza num contexto profundamente diferente. Hoje estou aqui, num quadro da CPLP, discutindo e vendo em que medida é que deste colóquio sairá - e sairá com certeza - um contributo decisivo para o nosso relacionamento internacional. Depois de amanhã, parto para Moçambique, onde não vou há tantos anos, com um espírito aberto num propósito de preparar o futuro, numa jornada que começou com o início do meu mandato em Cabo Verde e que agora se prolonga em Moçambique.

Excelências

As vossas palavras ilustraram este curto percurso, porque na realidade nada disto teria sido possível sem o acontecimento que comemoramos hoje e que há 23 anos celebrámos com ansiedade e grande felicidade pelas ruas. Veja-se só o que foi o caminho percorrido, o que foi preciso de esforço, de convergências, de rupturas, como aqui já foi dito. E por isso mesmo, creiam que, apesar de toda a minha actividade me parecer nestes dias uma maratona infindável, é profundamente gratificante estar aqui hoje e comungar a perspectiva de tratamento científico, de tratamento cultural e de pesquisa aprofundada deste tema que este Colóquio necessariamente encerra. Foi por isso que, com todo o gosto, fiz tudo para que aqui pudesse estar convosco, neste momento tão significativo.

Esta iniciativa, num quadro tão prestigioso e de tão alta qualidade dos seus participantes, serve para demonstrar que a Comunidade dos Países de Língua Portuguesa está viva e bem viva, como não podia, aliás, deixar de o ser, e que o seu projecto já foi, e felizmente com toda a naturalidade, apropriado por quem deveria sê-lo, isto é pela sociedade civil e designadamente pelas instituições universitárias, pelos académicos, pelos intelectuais, pelos profissionais, pelos homens de cultura.

A Comunidade dos Países de Língua Portuguesa, em cuja construção estão permanentemente empenhados, ao mais alto nível, os sete Estados membros, é não apenas um projecto empolgante, como uma instituição necessária e actual.

À partida, a língua e a história são as dimensões mais fortes da nossa união, transportam consigo vínculos culturais e humanos, que transcendem qualquer conjuntura. A sua tradução, tanto tempo adiada numa instituição comum, fundada por um acto livre e de vontade soberana de cada um dos Estados de língua portuguesa, representa para todos um indispensável reencontro com a história, um acto de responsabilidade perante os imperativos do presente e uma atitude de confiança serena no futuro. A Comunidade é assim uma instituição particularmente adaptada às circunstâncias actuais da política internacional.

Com efeito, o fim da guerra fria tanto tempo adiada e a transição para um mundo multipolar, caracterizam-se pela emergência de novos espaços e por uma crescente interdependência regional, factores que definem o novo mapa das relações internacionais. Como já foi aqui lembrado pelo Professor Gomes Canotilho, os sete Estados membros da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa, estão todos plenamente inseridos nessa dinâmica de regionalização.

O Brasil é um dos motores e o centro natural da integração regional na América do Sul, que se exprime no desenvolvimento do MERCOSUL.

Os cinco Estados africanos pertencem à Organização de Unidade Africana e Angola e Moçambique constituem pilares essenciais da Comunidade de Cooperação e Desenvolvimento da África Austral.

Portugal pertence à União Europeia e está firmemente empenhado no processo da construção europeia.

Cabo Verde, São Tomé e Guiné, ensaiam também em simultâneo outros olhares.
Esses processos de regionalização que temos de perceber desde o primeiro minuto, criaram naturalmente também uma necessidade urgente e acrescida de formação de instituições multilaterais de cooperação inter-regional, um domínio em que a Comunidade dos Países de Língua Portuguesa é pioneira.

A vocação dessas instituições de cooperação inter-regional deve ser a de ultrapassar as descontinuidades, ultrapassar os obstáculos e as divisões geográficas, com a afirmação dos valores comuns da paz, do direito e da solidariedade. Esses valores são essenciais para completar os processos de regionalização e também para impedir o agravamento das clivagens internacionais, para contrariar a tendência para uma maior desigualdade entre as regiões, com diferentes níveis de desenvolvimento económico e social, e para consolidar o diálogo e a cooperação entre espaços com culturas e entidades próprias. Creio que a Comunidade dos Países de Língua Portuguesa é nesse contexto uma instituição exemplar. Desde logo, por recusar a lógica do egoísmo sem regras na competição inter-regional. Por outro lado, por se fundar na defesa dos grandes princípios da paz e do direito, da democracia e dos direitos do homem, do desenvolvimento e da cooperação. São esses os valores seguros que nos unem num propósito comum de caminhar para uma sociedade internacional.

Para realizar esse desígnio temos, naturalmente, que dar expressão a esses valores na construção da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa, e nesse quadro, são particularmente importantes e promissoras todas as iniciativas que por entre dificuldades e com determinação, procuram dar corpo a algo que possa ser um dia uma cidadania lusófona, incluindo o reconhecimento de direitos civis e políticos, num quadro de reciprocidade e dentro dos limites impostos por cada uma das comunidades regionais em que sete Estados membros estão integrados. Do mesmo modo, devem ser apoiadas todas as formas de cooperação, cujo objectivo é o reforço da democracia, do pluralismo e dos direitos do homem, de que este Colóquio é um exemplo a todos os níveis notável.

A nossa Comunidade tem de ser cada vez mais uma Comunidade de Direito e também uma Comunidade de Direitos, como é próprio de uma instituição onde se reúnem democracias de três continentes. É com essa visão e com a vontade política que lhe dá força e consistência que temos de afirmar a Comunidade dos Países de Língua Portuguesa no mundo.

A nossa Comunidade constituirá, estou certo, um meio importante de projecção de língua comum, um factor de valorização dos nossos recursos estratégicos de cooperação económica, de captação de interesses, afinal, de olhares múltiplos. Constituirá também um quadro relevante de concertação política e diplomática, face ao número crescente de questões internacionais, onde se pode traduzir e deve traduzir um interesse comum.

É com esse propósito que quero exprimir neste momento o reconhecimento público de Portugal pela solidariedade dos Estados da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa para com Timor-Leste, na Comissão de Direitos Humanos na Organização das Nações Unidas. A causa timorense é uma causa comum da defesa do direito e da democracia, que nos obriga a um dever de solidariedade para com o povo mártir de Timor-Leste, sujeito à ocupação ilegal da Indonésia e a um regime de permanente violação dos direitos humanos, que foi justa e recentemente condenado pela Resolução aprovada na Comissão dos Direitos Humanos das Nações Unidas.

Não temos nenhum objectivo egoísta na defesa da causa timorense. O único propósito dos nossos esforços é garantir o respeito pelo direito internacional e contribuir para resolver a questão timorense, designadamente num quadro de cooperação com o Secretário-Geral das Nações Unidas. O nosso dever como potência administrante de jure, como tal reconhecida pela comunidade internacional, resume-se a assegurar uma fórmula pacífica e democrática para a resolução dessa questão, através do livre exercício do direito de autodeterminação do povo de Timor-Leste e a lutar pela defesa dos direitos humanos dos timorenses, constantemente violados pela brutal ocupação militar indonésia. Principalmente desde a atribuição do Prémio Nobel da Paz ao Bispo Dom Carlos Ximenes Belo e a José Ramos Horta, a causa timorense tornou-se uma causa universal e, por maioria de razão, uma causa que mobiliza todos os que defendem os valores da paz e da liberdade, nos sete países de língua portuguesa, que inscreveram esses princípios na Carta fundadora da sua Comunidade.

Permitam-me, minhas senhoras e meus senhores, que partilhe convosco, neste dia 25 de Abril, a esperança de que o dia da paz e da liberdade chegará em breve a Timor-Leste, como chegou afinal a cada um dos nossos países. E que as flores que hoje temos possam inundar os nossos espíritos de uma visão de tolerância e de compreensão para com o próximo, da compreensão da diferença e da ajuda mútua. Agora que as cooperações se desenvolvem e que novos espíritos se reencontram com uma visão de futuro, as relações são – porventura, na sua diversidade, praticamente as mesmas, mas têm que ser profundamente diferentes, porque elas agora repousam na igualdade, na fraternidade e na solidariedade.

Bem hajam, portanto, os promotores deste Colóquio, porque foi para mim uma grande emoção e um grande prazer compartilhar convosco, neste dia, esta realização.


Jorge Sampaio