Cerimónia Evocativa da Implantação da República

Câmara Municipal de Lisboa
05 de Outubro de 1996




O 5 de Outubro de 1910, que hoje comemoramos, foi durante décadas evocado num contexto de Resistência.
A Ditadura Militar instaurada com o 28 de Maio de 1926, e o Estado Novo de Salazar, lançaram sobre a I República as mais violentas acusações, e do seu descrédito procuraram tirar efeitos legitimadores da negação da Liberdade. Por isso, a oposição ao autoritarismo salazarista não podia deixar de integrar uma componente reabilitadora dos valores e até da experiência republicanas em Portugal.

Os condicionalismos da luta política podem ter conduzido a algumas simplificações de análise duma realidade que foi complexa e contraditória. O poder assente no arbítrio pretendeu limitar as escolhas segundo um critério maniqueísta e há que reconhecer que a Oposição nem sempre pôde evitá-lo.

Sejamos no entanto justos: no combate pela Liberdade, a que se aplicaram diversas gerações, entre 1926 e 1974, esse contributo republicano foi muitas vezes decisivo.

Quero pois prestar homenagem aos homens e mulheres que, nas mais adversas circunstâncias, com sacrifícios pessoais em dimensão só equiparável ao seu empenhamento político, transportaram para o período da Ditadura a chama da resistência e o
sonho da restauração de um regime liberal.

Sob múltiplos aspectos o significado da I República em Portugal é hoje mais uma questão da História do que da Política. O méritodessa transposição cabe à Democracia. O juízo sobre o 5 de Outubro e o regime republicano saiu do palco da luta política. A legitimidade do poder democrático edificou-se sobre regras e procedimentos largamente consensuais na sociedade portuguesa e a invocação da I República pôde assim deixar de funcionar como arma de arremesso da contenda política.

Minhas Senhoras e meus Senhores,

Se alguma comparação é permitido hoje estabelecer entre os dois regimes republicanos portugueses, essa comparação é amplamente favorável ao que saiu do 25 de Abril.

A Democracia, sobre a qual chegou a pairar, como se recordam, o espectro da ingovernabilidade, que outrora tinha sido associado à I República, tem sabido não apenas garantir a Liberdade, como assegurar um quadro de normal funcionamento das instituições, mesmo em situações de alguma tensão e risco.

Um traço comum une, todavia, estas duas datas revolucionárias do século xx. Assinalam ambas a eclosão de uma forte componente popular, que se apresenta com programas de modernização do Estado e da Sociedade. Essa forte componente popular contribuiu em ambos os casos para vincar o carácter nacional dos movimentos que quiseram promover um Estado aberto a novos protagonistas e uma sociedade mais dinâmica.

Defensores da descentralização administrativa do País, os republicanos difundiram uma cultura cívica da participação social e política, suportes indispensáveis da vitalidade das organizações sociais e duma opinião pública influente. Por isso mesmo a República possibilitou o acesso de novas camadas sociais — até então excluídas ao protagonismo e ao combate social e político. A República reconheceu um amplo leque de liberdades e de novos direitos. Prometeu — ainda que não o tenha cumprido — o sufrágio universal. Mas mesmo se muitos destes objectivos e promessas não lograram concretização, ou foram desvirtuados, o modelo de legitimação do poder político que a República advogou — o princípio das eleições a todos os níveis — constituiu indubitavelmente um dos pilares do Estado Democrático Moderno.

O 5 de Outubro promoveu igualmente um novo conceito de cidadania, baseado no nexo entre a nacionalidade e a integração política, como forma de coesão nacional, com tradução em duas reformas nucleares: o Exército miliciano e o Ensino. Neste último domínio, o período republicano constituiu um riquíssimo laboratório de criações, algumas das quais, como o ensino superior aliado à investigação, que ontem tive a ocasião de evocar no aniversário do Instituto Superior Técnico, lograram repercussão positiva e duradoura na qualificação dos Portugueses.

Das propostas dos republicanos do 5 de Outubro constava, como se sabe, a promoção do laicismo. Dele decorria o princípio da separação entre as Igrejas e o Estado, uma das primeiras medidas do Governo Provisório, com múltiplos efeitos no Direito e nas relações sociais. A execução desta medida lançou uma das controvérsias políticas e sociais mais graves da vida da I República, cujos ecos só abrandaram depois da Grande Guerra. Mas o princípio da Separação permaneceu inabalável, como um dos pilares do Estado Moderno e foi à sua sombra que se assegurou em Portugal a liberdade religiosa e que a Igreja Católica deu corpo a uma nova autonomia do seu múnus próprio.

A República reforçou igualmente, importa sublinhar, um entendimento mais activo do papel de Portugal na Europa, no quadro do qual o Estado português não só participou na Grande Guerra, como se empenhou na construção da Sociedade das Nações.

Minhas Senhoras e meus Senhores,

Os republicanos difundiram, como tive já ocasião de referir, uma cultura cívica da participação social e política. O seu programade modernização do País comportava como condição necessária a participação dos cidadãos como sustentáculo essencial da vitalidade nacional. Se é verdade que, na prática, essa ideologia não se transformou em programa político plenamente realizado, não é menos verdade que a nova República, saída do 25 de Abril e herdeira desses valores, necessita hoje, como então, de assentar o seu programa de modernização do País num reforço de participação dos cidadãos na Res Publica.

A dimensão política dessa participação, sendo condição necessária não é porém suficiente. Enfrentar com êxito a modernização obriga, igualmente, a um esforço acrescido das instituições
sociais, no quadro da articulação de interesses e do amortecimento dos efeitos da desigualdade e da exclusão social.

É um grande desafio nacional que não poderemos deixar de encarar com rigor, com firmeza e com sentido do destino do País.

Sem capacidade de inovação, não há modernização. Mas sem solidariedade não há integração social nem coesão nacional. No centro deste problema estão o Estado, as instituições políticas, lado a lado com as instituições sociais, com a família, a escola, as empresas, as organizações voluntárias.

O esforço de solidariedade que temos de exigir aos Portugueses, para diminuir a exclusão social e para garantir a capacidade de absorção dos custos da modernização do País, não pode ser encarado de uma forma exclusivamente tributária e redistributiva.

O apelo e o incentivo a que se mobilizem energias para enfrentar as dificuldades e absorver os custos sociais da mudança tem de ser acompanhado de políticas coerentes de combate à exclusão social e de uma maior capacidade de articulação entre o cidadão, as formas organizadas da sociedade civil e as instituições do Estado.

A solidariedade é um conceito que tem de ser praticado pelos cidadãos, como forma de participação e condição do processo de modernização do País. Não pode ser apenas um discurso ideológico exercido pelos governos através de dotações orçamentais. Um coisa sem a outra será sempre insuficiente.

A capacidade de adaptação à mudança das instituições, da família, da empresa, da escola, é uma condição decisiva da modernização. O sistema político não pode ignorar esse factor e tem por isso de encontrar mecanismos de integração e de aprofundamento da participação cívica dos cidadãos.

Permita-me, aliás, Senhor Presidente da Câmara Municipal de Lisboa, que refira em particular que o republicanismo é, também, inseparável de um importante movimento de urbanização do País que foi decisivo para a modernização do Portugal de então.

Terei amanhã, numa importante iniciativa organizada pelo Município de Lisboa e a Campanha Europeia das Cidades Sustentáveis, ocasião de me referir com maior detalhe ao importante tema da «Cidade» nas sociedades contemporâneas.

Na passagem do século xix para o século xx a cidade desempenhou um papel fundamental na consolidação de novas sociabilidades, associadas à afirmação de novas classes sociais e a uma ruptura entre estas e a sociedade rural. Mas, hoje, no momento em que vivemos já o trânsito do século xx para o século xxi, a reflexão que nos é imposta pela realidade é de procurar novas formas de relacionamento entre a administração da cidade e da República como condição de sucesso dos processos de absorção das transformações sociais.

A nova cultura democrática que importa desenvolver assenta numa informação que deve estar cada vez mais difundida e acessível. É essa nova cultura democrática que abrirá vias inovadorasde relacionamento entre as administrações e os cidadãos, aumentando a responsabilização e a transparência nos processos de decisão, aumentando a capacidade de intervenção dos cidadãos, facilitando e clarificando os procedimentos e a anulação da componente arbitrária das práticas administrativas.

Da modernização do País faz necessariamente parte a crescente capacidade de adaptação da Administração às novas exigências de eficácia das sociedades contemporâneas. Só isso pode criar um clima de confiança na Administração por parte dos cidadãos e dos agentes económicos.

Creio que no dia em que se cumpre mais um aniversário sobre a fundação do regime republicano em Portugal importa sublinhar os valores essenciais que ditaram a implantação desse novo regime. Continuamos a reconhecer-nos nesses valores. E eles continuam a ser os elementos fundadores do Estado Democrático.

Viva Portugal!

Viva a República!