Sessão Solene de Abertura do Ano Judicial

Supremo Tribunal de Justiça Lisboa
22 de Janeiro de 1997


Neste acto solene da liturgia judiciária a que me é tão grato presidir, a minha primeira palavra é de homenagem — de homenagem à Justiça de que VV. Ex.as, Senhores Juízes, Senhores Magistrados do Ministério Público, Senhores Advogados, Senhores Solicitadores, Senhores Oficiais da Justiça, sois os símbolos e os artífices institucionais.
E digo artífices institucionais porque a Justiça se é direito de todos e para todos, é também, e terá de sê-lo cada vez mais, dever de todos — poderes e cidadãos, em permanente cooperação.

Minhas Senhoras e meus Senhores,

Na construção do Estado moderno, os poderes foram separados para que os súbditos pudessem ser cidadãos. Mas o essencial da separação de poderes não é a sua divisão, mas a sua interdependência, pois cada um na sua esfera — e pela separação não têm mais do que a sua esfera — não pode fazer tudo.

A Justiça é, por isso, tema de cooperação de poderes — e dos cidadãos com eles.

A insatisfação geral que o funcionamento das instituições judiciárias vem gerando, aqui como por toda a Europa, num quadro de novos conflitos, de acelerado crescimento de litígios e de preocupantes fenómenos de ruptura social e mesmo civilizacional, já não é questão que respeite tão-só a Parlamentos, a Governos e a Tribunais, ou que só por eles possa ser resolvida.

Pelo contrário: num tempo de justa reivindicação da cidadania plena — cidadania dos direitos civis e políticos, do emprego, da habitação, da saúde, da cultura — nela se terá de incluir a cidadania da Justiça, esse indeclinável direito de ver feita justiça e o não menos indeclinável dever de cada um agir e cooperar para
o funcionamento, tantas vezes decepcionante, das instituições judiciárias.

Que o mesmo é dizer: a questão da Justiça passou a ser uma questão eminentemente política, no seu sentido mais nobre e mais amplo, que a todos interpela e a todos compromete.

Mas se a realidade problematiza a Justiça, em termos de lhe conferir instante dimensão política, certo é que tal problematização não é isolada e emerge num quadro de dúvidas, de inquietações e de bloqueios, que atravessam todo o tecido político-social e nos levam a falar de crise da educação, de crise do emprego, de crise da segurança, no limite, de crise da contemporaneidade.

A crise da Justiça não é, por isso, um fenómeno isolado, sendo antes, e em medida diversa, causa e efeito, num universo global de adaptação da sociedade e do Estado às novas condições do seu percurso histórico.

Essa adaptação é, em primeira linha, objecto da política, logo, tema de cidadania e da intervenção de todos na modelação da Cidade, para usar a magnífica expressão agostiniana.

Neste contexto, e sobretudo a partir da década de 80, vem-se desenhando a tendência para o poder político, na sua intervenção modeladora, responder com a lei à crescente complexidade dos problemas que a vida moderna comporta em sociedades desenvolvidas.

Daí que a crise da Justiça, revelada na insatisfação geral quanto ao funcionamento das instituições judiciárias, e na consequente desconfiança com que são olhadas, não tenha a sua origem na falta de leis. Poder-se-á mesmo dizer que se há alguma coisa que caracteriza as nossas sociedades é a pretensão de tudo regulamentar, porventura com tal largueza que em algumas áreas bem se poderá falar de excesso de leis.

Não há, por isso, uma crise da lei. A insatisfação geral quanto à Justiça e o clima de desconfiança instalado obrigam-nos, sim, a ponderar em que medida não estamos defrontados com uma crise, mas de autoridade, de confiança na autoridade da lei, que se exprime na garantia judiciária.

A democracia existe para que a autoridade não seja ditadura e arbítrio, que em democracia, autoridade é legalidade democrática.

Ora a legalidade não se esgota na lei e no seu comando; só é verdadeira e propriamente legalidade quando se cumpre e é feita cumprir. Para isso existe, em última instância, o poder judicial.

Trata-se aqui de questão de primeira importância.

É que de bem pouco valerá ter direitos ou deveres, se não houver garantia de que os direitos são respeitados e os deveres cumpridos.

De bem pouco valerá ter um Estado de Direito formalmente instituído e formalmente ordenado, se ele não se desenvolver democraticamente e se a democracia não for controlada pelo Estado de Direito.

Pedra-de-toque é o Povo.

Para que os cidadãos não percam a confiança nas instituições judiciárias e continuem a rever-se no seu funcionamento, é preciso mobilizar todos os poderes e todos os cidadãos, para devolver às instituições o princípio ordenador e a dinâmica inicial, perturbadas pela evolução de um percurso cheio de escolhos e de dificuldades.

Revalorizar, neste sentido, o Estado de Direito, é, assim, tema de política e, por isso, de exercício empenhado e responsável da cidadania.

É que sem Justiça e sem Segurança não há direitos dos cidadãos, não há cidadania efectiva.

Cumpre-nos, assim, nas sociedades modernas em que vivemos, tão sofisticada e legalmente regulamentadas, encontrar as vias para impedir que, na voragem do crescimento e da globalização, ser cidadão deixe de ser um estatuto para passar a ser apenas um nome.

Questão que a todos interpela e, para cuja resolução, insisto, se exige o contributo de todos — cidadãos e poderes.

Há-de ser, por isso, na cooperação dos poderes entre si, e dos cidadãos com os poderes, que teremos de enfrentar a crise de autoridade que nos inquieta e preocupa, e restabelecer a plena confiança de todos nas suas instituições judiciárias.

O crescimento económico, a rápida alternância de ciclos de expansão com ciclos de recessão, o desemprego, a exclusão
social, a droga, as condições de vida dos meios urbanos, fizeram subir em flecha e com incontrolável rapidez o volume de processos — civis e criminais — a cuja resolução os tribunais foram chamados. E, com acelerado ritmo, trouxeram-lhe novas questões, de insuspeitada complexidade. E nem os ajustamentos da organização judiciária, nem as modificações introduzidas nas leis de processo, se revelaram suficientes para uma resposta eficaz à nova situação criada.

Importará mesmo considerar se o tipo de organização e de procedimentos instituídos ainda terão virtualidades para dizer o Direito e modelar as realidades do presente e do futuro.

A crise da Justiça vem assumindo, efectivamente, tal dimensão nas sociedades desenvolvidas que passou a ser também objecto de cultura, e, por essa via, de alargado debate sobre os seus pressupostos, quadros de funcionamento e medidas e meios de permanente reconstrução do tecido social, rompido pelas violações do ordenamento constituído.

A indispensabilidade de nos mantermos abertos a esse debate e de nele participarmos, de colhermos os seus ensinamentos e de os vertermos nas práticas e nas leis, não nos dispensa, todavia,
de olhar para o imediato e para ele encontrar respostas.

Neste sentido, vale a pena relembrar que a morosidade da Justiça se tornou endémica, a opacidade do seu funcionamento acentuou-se e a margem de ineficácia da sua intervenção passou a ser um lugar-comum de todas as retóricas, das autoritaristas às libertárias.

O bloqueio do sistema radica essencialmente em três áreas:
excesso de leis, burocracia e excesso de garantismo das leis de processo, desregulação da organização judiciária.

A criação de leis não pode, efectivamente, ser o modo habitual de dar resposta às interpelações do quotidiano. À parcimónia do legislador há-de, sim, corresponder a iniciativa do Executivo, no quadro e pelos meios que lhe são próprios, com a eficácia, e também os riscos, de, no caso, dizer o sim e dizer o não. E sem qualquer perigo para a democracia, sublinhe-se, desde que, em sede própria — a Assembleia da República — continue a efectivar-se, de modo cada vez mais amplo, a responsabilidade política do Governo. Só por esta via poderão os tribunais cumprir a sua função de racionalização da sociedade e deixar de tender para suprir, no quotidiano, as deficiências ou as omissões dos Parlamentos e dos Governos, com uma indesejável judicialização do político e, consequentemente, uma não menos indesejável politização do judiciário.

Mas os procedimentos instituídos são também motivo de bloqueio, e, por isso, as leis de processo terão de ser simples e expeditas.

Com louvável e compreensível generosidade, construímos, quer em processo penal, quer em processo civil, um sistema tão apertado de garantias, que ele se transformou num perigoso factor de bloqueio da Justiça, sobretudo quando está em causa a perseguição criminal dos poderosos — «não tenho colarinhos», desabafava em recente reportagem de televisão uma senhora humilde, gravemente vitimada nos seus direitos —, os quais podendo custear sofisticada utilização dos meios que a lei faculta, acabam por atrasar, indefinidamente, o apuramento das suas responsabilidades, por essa via constituindo motivo de escândalo, de injustificada desigualdade de tratamento, e, no limite, de acrescentada desconfiança no funcionamento dos tribunais.

Não é possível — e cito apenas alguns casos — manter uma tramitação processual de complexas e sofisticadas fases e contrafases, um sistema de recursos, às vezes em triplo e quádruplo grau, para tudo o que não sejam decisões de mero expediente, uma panóplia tão larga de fundamentos de adiamento de audiências que se eternizam os processos, ou uma nova acção para fazer cumprir o direito já declarado por sentença, com tramitação tão complexa e morosa como a utilizada para fazer reconhecer o direito violado.

É preciso que convenhamos de um modo definitivo em que se é indispensável uma forte garantia de direitos, de legítimos interesses e de liberdades tão duramente conquistadas, o excesso de garantismo, tornando ineficaz o funcionamento das instituições judiciárias, retirará toda a protecção aos direitos, interesses e liberdades que afinal visava acautelar — o excesso de garantismo é a via mais rápida e perigosa para a denegação da Justiça que as próprias garantias se destinam a tutelar, criando nos cidadãos uma crescente desconfiança nas instituições e no seu papel protector.

Não admira, por tudo isto, que as instituições judiciárias, formalmente organizadas, corram o risco de entrar em desregulação, impotentes para dar resposta eficiente e rápida a uma explosão de litígios, vertida em procedimentos burocratizados e propícios a todos os expedientes dilatórios.

A necessidade de compaginar celeridade e volume de processos, justiça pronta e sucessivas dilações legalmente toleradas, exigência de verdade e rigor com práticas sociais de laxismo e de falsificação de justificações — como é o caso das faltas a diligências judiciais —, impedem que a actividade dos tribunais se desenvolva de modo ordenado.

A questão assume particular delicadeza em Lisboa e Porto, onde os tribunais cíveis ocupam grande parte do seu tempo com a cobrança de dívidas de entidades financeiras e de seguradoras; e, nos meios urbanos, em que a droga e a criminalidade de rua, a ela associada e por ela causada, enxameiam secretarias judiciais e salas de audiência.

Ora se todos concordaremos em que se torna necessário prolongar o esforço de organizar meios simples para obrigar os devedores a pagar as suas dívidas, ou, pelo menos, de encontrar procedimentos extrajudiciais expeditos de não onerar fiscalmente os credores com a proliferação de devedores relapsos, já a questão criminal assume maior complexidade.

A insegurança urbana que começa, aliás, a contagiar cada vez mais as zonas rurais e o interior, é causada, essencialmente, pela criminalidade de rua, que, por sua vez, tem origem no fenómeno da droga.

É questão para a qual temos de olhar com toda a determinação, mas com a prudente humildade de ser matéria em que o mais que temos é não ter certezas — apenas uma: que para tal flagelo não há só uma resposta, há várias, e todas elas insuficientemente eficazes.

Na minha recente deslocação ao Chile, mais uma vez me defrontei com a reiterada afirmação, por responsáveis da AméricaLatina, de que a droga, independentemente de mecanismos preventivos e repressivos, introduz na sociedade uma ruptura de imprevisível recuperação.

«As nossas sociedades estão gravemente afectadas pela corrupção, pela lavagem do dinheiro, pelos sistemas alternativos de justiça», diziam-me, e «as vossas hão-de estar».

Sério aviso que nos obriga a reflectir e a actuar.

Não pensemos, sobretudo, que a repressão do tráfico e a dura penalização dos traficantes, cuja indispensabilidade se impõe sublinhar sem qualquer reticência, resolverá o problema. Serão tão importantes como a cirurgia dos cancros, mas ai de nós se cedêssemos à tentação de deixar de procurar as causas e os remédios definitivos.

E se é domínio em que nenhumas certezas existem, então não delonguemos uma mobilização mais alargada de meios, de pessoas e de iniciativas, para observar, aferir e ajuizar da praticabilidade e eficácia relativa de todas as experiências que se vão fazendo no mundo, para abrir auscultações, reflexão e debates em todas as comunidades, para expandir e racionalizar terapias e seus custos à luz dos conhecimentos actuais, para sensibilizar a opinião pública da complexidade desta verdadeira doença da civilização, de modo a que se não crie a perigosa ilusão de que lei e ordem possam ser, no estado a que se chegou, caminho único para combater tal desgraça.

Os esforços utilizados na prevenção da toxicodependência, são, evidentemente, essenciais e é necessário aprofundá-los todos os dias. E não posso deixar de acentuar também a importância da educação neste domínio, pela dimensão moral cada vez mais necessária no processo educativo.

Numa sociedade que privilegia a não reflexão e a resposta imediata, é preciso reforçar a dimensão da responsabilidade perante os jovens.

Ao valorizarmos a dimensão afectiva no relacionamento, na família e na escola, ao promovermos o estímulo e ao criarmos condições para a partilha e para a participação, estamos afinal a contribuir para a formação de personalidades menos vulneráveis e mais empenhadas no futuro.

Vejo com inquietação algumas pessoas participarem em manifestações contra aqueles que estão dependentes de uma ou de várias substâncias.

Não posso aceitar que a guerra à droga se transforme na guerra aos utilizadores de drogas!

É preciso acentuar que o debate sobre a toxicodependência tem de contemplar uma dimensão de responsabilidade ética.

Sei bem, sabemos todos, que a marginalização só contribuirá para o agravamento do problema e que o empenhamento dos que sofrem e das suas famílias é essencial para a sua recuperação.

O modo como em muitos países, entre os quais Portugal, os utilizadores de drogas foram capazes de tomar medidas preventivas face à epidemia da sida, faz-me pensar que, também no domínio da droga, é essencial responsabilizar os actores no processo de resolução do problema.

Estou, portanto, empenhado em aprofundar o debate sobre a droga, ultrapassando a discussão habitual sobre as carências de soluções preventivas e terapêuticas, que são conhecidas de todos, particularmente daqueles ligados ao sistema judicial.

A questão económica ligada ao problema não pode ser esquecida; e gostaria, também por isso, que se discutissem abertamente todos os prós e os contras da actual política de proibição das drogas.

Observo com atenção experiências em curso noutros países, de que cito, a título de exemplo, a política de «redução de riscos».Esta orientação prevê a possibilidade de redução dos prejuízos causados pela droga, através da substituição desta por substâncias controladas medicamente.

Este procedimento não implica a perda do objectivo final da luta contra a droga, mas permite que pessoas, há muito dependentes e gravemente marginalizadas, possam melhorar a sua saúde e interromper comportamentos à margem da lei.

São estes alguns dos pontos que poderão ser tratados em posteriores reflexões, que espero participadas.

A criminalidade de rua que aparece associada à droga — para não falar dos furtos e violências familiares que o pudor das pessoas mantém na reserva doméstica — não pode, naturalmente, esperar pela cura de uma doença de etiologia e terapêutica eivadas de dúvidas e de perplexidades.

Exige-se aqui a instituição de processos rápidos que permitam levar a julgamento em poucos dias todas estas situações de delinquência, pari passu com mecanismos de justiça restaurativa — aliás, as preferidas pelas vítimas, como evidencia inquérito recente — de que cito, por exemplo, o trabalho a favor da comunidade ou a indemnização às vítimas, operada directamente pelo ofensor ao lesado, em condições por ambos acordadas, sob tutela do juiz.

Mas a acção da Justiça só será minimamente eficaz em termos de paz pública se for reforçado o necessário clima de confiança entre os cidadãos e as polícias.

A diminuição da exigência de intervenção judicial passa, efectivamente, por uma grande proximidade entre as populações e as autoridades policiais, e pela confiança que a sua acção possa gerar.

É, por isso, indispensável que as polícias e as suas esquadras sejam sempre sentidas como factores de protecção e que se enfatize o rigor no emprego dos meios de coacção disponíveis e o respeito pelo cidadão, ainda que sujeito a acção policial.

Para o que será de grande utilidade que as esquadras policiais possam dispor em permanência de um defensor para os detidos que assegure, de imediato, a protecção dos seus direitos — com o que sairão prestigiadas as polícias e melhor garantidos os direitos dos cidadãos.

Mas que fique bem claro: o Estado tem o direito e tem o dever de usar a força que seja indispensável para fazer respeitar a lei e restabelecer a ordem. Mas só a indispensável.

Sempre que um agente da autoridade excede manifestamente o nível de força que uma situação exige, impõe-se um imediato esclarecimento que reconstitua a paz pública que pelo uso da força se pretendia restabelecer, e que é, de novo, perturbada pelo excesso cometido; e o agente tem de ser, sem delongas, enviesamentos, ou tergiversações, responsabilizado e penalizado — em primeira linha pela própria instituição a que pertence.

Com o que não se desautorizam, nem se enfraquecem as polícias. Antes pelo contrário: não só se prestigiam perante os cidadãos, como aperfeiçoam a ética da sua conduta e contribuem para a existência de corpos altamente disciplinados e conscientes do sentido e limites da sua actuação.

A criminalidade de rua e a droga são ainda factores de peso no estado de sobrelotação a que chegaram as nossas prisões, pela prática estabelecida em matéria de prisão preventiva e pela morosidade dos procedimentos judiciais.

Antes de mais é importante que a comunidade, toda a comunidade, interiorize que a prisão preventiva não é uma punição antecipada, por isso que nos mantemos irrecusavelmente fiéis a que todo o acusado se presume inocente até que seja condenado em definitivo por um tribunal.

É que a natureza ou gravidade de um crime não deverá continuar a ser critério para prender preventivamente quem quer queseja: ou há perigo efectivo de continuação da actividade criminosa, de perturbação da investigação criminal ou de fuga à acção da justiça, ou então todo o arguido em que não concorra tal perigo deve aguardar o julgamento em liberdade, com sujeição a medidas cautelares alternativas, que o juiz entenda no caso adequadas.

A questão da prisão preventiva, exactamente porque se dirige a um presumível inocente, tem levado a que legisladores e juízes, políticos e publicistas, discutam por esse mundo fora se não deverá mesmo ser decidida por um colectivo de três juízes, em audiência pública sujeita ao princípio do contraditório.

É que também aqui se impõe aperfeiçoar, na lei e nos costumes, o princípio da igualdade de armas, hoje tantas vezes perturbado pela dimensão mediática que as questões criminais passaram a ter.

A deslocalização do político para o judiciário e o consumo fácil pela opinião pública das situações criminais de maior impacto trouxe, efectivamente, acrescidos problemas à protecção da presunção de inocência e à necessidade do tempo e distância próprias da decisão judicial.

Para que tudo seja preservado — presunção de inocência, condições de decisão judicial e direito de informação — é necessário fundar regras claras que, gerando um indispensável espaço de comunicação e adequados limites de reserva, não transformem os media em tribunais e os agentes da Justiça em opinion makers.

Para isso é necessária a definição de regras de publicitação de factos processuais e de decisões judiciais, que sejam compatíveis quer com os valores da Justiça, quer com as exigências da comunicação social, a quem se terá de pedir, no tratamento destes temas, sólida formação técnico-jurídica que habilite os profissionais do sector a compreender todo o alcance da linguagem, do tempo e da decisão judiciárias.

Aqui a palavra é do legislador, pois não poderão ser os agentes da Justiça, no terreno, e caso a caso, quem há-de definir o quadro de funcionamento do espaço mediático nas suas relações com o judiciário.

Assim se poderá contribuir, em acréscimo, para um alargado entendimento de que a responsabilidade política não passa pelos tribunais, mas pelos órgãos constitucionalmente instituídos para, nesta sede, louvarem, censurarem, pedirem contas.

O respeito pela função de cada poder é essencial para a democracia. Os juízes não são a garantia jurídica das disfunções dos outros poderes.

Quiseram os constituintes, quer a Constituição da República, que o Estado de Direito fosse garantido, e a democracia constantemente racionalizada, por magistrados providos mediante concurso de provas públicas, com uma carreira definida por lei, independentes, irresponsáveis e inamovíveis — essa a sua função e o seu estatuto.

A vontade do Povo — e quem senão o Povo! —, expressa pelos constituintes na Constituição da República, funda a legitimidade democrática dos juízes, como a nomeação do Procurador-Geral da República pelo Presidente da República, sob proposta do Governo, para dirigir um corpo autónomo, hierarquicamente organizado e hierarquicamente responsável, funda a legitimidade democrática do Ministério Público.

Neste domínio, sejam quais forem as conclusões a que cheguem os constituintes, sempre se terá de assegurar que as soluções encontradas permitam ao Ministério Público ser dirigido e ter actuações com o mesmo mérito assinalável que o têm distinguido.

Tudo isto não pode nunca significar que a actuação e as decisões judiciais estejam imunes ao livre exercício do direito de crítica.

Em democracia não há intocáveis.

Mas a crítica das decisões judiciais terá sempre de se fazer não só com respeito pela independência dos tribunais e sem associação a comportamentos que revelem ilegítimas pressões, mas também com observância do necessário rigor, que não se compagina com um conhecimento deficiente da lei ou dos processos específicos de formação da decisão judicial.

Minhas Senhoras e meus Senhores,

A simplificação e celeridade dos procedimentos judiciais só contribuirão de um modo decisivo para a melhoria do estado da Justiça se a organização e o funcionamento dos tribunais comportar acrescidos meios de trabalho e aperfeiçoamento do estatuto dos magistrados e da sua actividade.

A Justiça não é um luxo, nem pode estar apenas ao dispor dos que dispõem de meios vultuosos para assegurar a defesa dos seus interesses, com o que isso importa de discriminação de cidadania para largos estratos da população.

Nem deve esmorecer, agora na perspectiva da sua organização, o louvável esforço de dotar os tribunais com os necessários instrumentos da tecnologia moderna, sem o que não será possível, nem racionalidade, nem optimização, sobretudo do trabalho daqueles com quem na minha vida de advogado tanto aprendi — os Senhores Oficiais de Justiça.

Mas o funcionamento das instituições judiciárias se depende de uma adequada cooperação entre todos os agentes da Justiça, exige também um permanente diálogo entre magistraturas, sobretudo através dos seus órgãos de gestão e de disciplina; e destas com os advogados, por intermédio da sua Ordem.

Sem advogados não há processo, nem garantias, nem Estado de Direito.

À dignidade da sua função, tem de continuar a corresponder por parte dos magistrados judiciais e do Ministério Público um alto sentido de respeito mútuo e de saudável cordialidade, sem prejuízo da posição eminente e superpartes que aos juízes sempre terá de ser reconhecida e que nem sempre é por todos partilhada com a mesma clarividência e com o mesmo empenho.

Mas a cooperação orgânica deve ser estendida, no respeito dos respectivos estatutos, à Assembleia da República e ao Governo, responsáveis e impulsionadores de toda a política legislativa; e no caso do Governo, também da política criminal.

Minhas Senhoras e meus Senhores,

Como todas as sociedades modernas, também nós estamos defrontados com a crise da Justiça.

Em democracia, ter problemas não é dramático. Só os regimes totalitários não têm problemas, porque os escondem. Seria, sim, dramático se não estivéssemos atentos a eles ou, despidos de injustificáveis corporativismos, não dispuséssemos da vontade e dos meios para os resolver.

Termino, por isso, com uma palavra de apelo e de grande confiança: de apelo, a uma renovada atenção e empenho de todos no trabalho pela Justiça e pela dignificação das suas instituições; de grande confiança, na energia e determinação de todos para travar este combate.

É que se a qualidade da Justiça depende do empenho e da capacidade dos seus agentes formais, depende também, e muito, do modo como cada um, em responsável exercício da cidadania, coopere com as instituições judiciárias.

Minhas Senhoras e meus Senhores,

Que a cidadania vença, para que a Justiça se cumpra!