Sessão Comemorativa do Dia Internacional da Mulher

Palácio Nacional da Ajuda
08 de Março de 1997



As cerimónias comemorativas como esta que hoje nos reúne em torno da celebração do Dia Internacional da Mulher, criam a oportunidade de sublinhar uma ideia, um conjunto de valores, um contexto que se deseja que a comunidade nacional interiorize como elemento constitutivo da sua própria identidade.
Creio, todavia, que o mero comemorativismo, banalizando rituais de uma socialização abstracta, pode afinal distrair as nossas atenções do ponto essencial da responsabilidade que aos titulares do poder está confiada: a avaliação concreta do estado da sociedade, no que diz respeito à prática de uma igualdade efectiva de direitos, à definição de políticas para a consagração dessa igualdade, à assimilação cultural das práticas sociais que lhe deverão estar associadas.

Esta é a nossa responsabilidade e ela não pode ser subsumida no simples recurso a uma celebração anual. Exige-se mais, porque, em boa verdade, temos de reconhecer que há ainda um longo caminho a percorrer.

Sei que o Governo não deixará de fazer o seu melhor para materializar uma opção política que tornou clara e, assim, honrar as propostas que assumiu perante o eleitorado. Na efectivação dessa política terá sempre, sem dúvida, o meu estímulo e apoio. Quero, aliás, aproveitar para sublinhar a importância das decisões tomadas no último Conselho de Ministros sobre esta matéria.

Na sua essência, as temáticas evocadas pelo Dia Internacional da Mulher não se reduzem apenas à questão da consagração dedireitos — sem dúvida necessária, porque muitos há ainda a consagrar. Elas abarcam ainda uma profunda questão de valores, e como tal toda uma problemática cultural, e delicadas e complexas questões sociais. É com um tema de civilização, que, no fundo, estamos confrontados.

Se é verdade que em matéria de defesa de princípios e de valores não deve haver concessões, não é menos verdade que a sua defesa pressupõe um empenhamento, uma persistência, uma prática política e social de consagração desses princípios e valores como novas dominantes culturais de uma sociedade. A sua
defesa pressupõe opções claras.

Hoje, em tantos casos, e não apenas neste, instalou-se, progressivamente, a noção de que o essencial das diferenças que polarizaram as sociedades até à década de 80 desapareceram. Hoje essas diferenças parecem esbater-se na procura de um certo tipo de consensos que nascem mais de conveniências de estratégia política do que de uma relação efectiva de dependência entre esses consensos e a consagração de novos direitos.

Procurei lutar toda a minha vida em nome de convicções. Creio que a afirmação serena, mas constante e coerente, das nossas convicções longe de ser um factor de divisão é um factor de clarificação de caminhos e escolhas, um factor de construção
de uma identidade e, como tal, de mudança das sociedades. É o exercício das nossas convicções que nos liberta do amorfismo e da anomia, é esse exercício que caracteriza a dimensão política essencial da cidadania: lutar por uma causa que julgamos melhor servir os Portugueses.

Onde parecem não existir escolhas possíveis, ou sequer necessárias, verifica-se, inevitavelmente, o desinteresse do indivíduo pelo processo político, a limitação da cidadania activa e, nesse estrito sentido, o enfraquecimento do regime democrático.

Cabe, em primeiro lugar, aos partidos políticos, a função essencial de clarificar as opções, confrontar caminhos, discutir valores, debater as diferenças entre as políticas que são factores de identidade de cada um deles.

Esta é uma tarefa da maior importância. É certo que a crise das ideologias que marcou o início da década de 90, o estreitamento das opções macroeconómicas colocadas à disposição dos países inseridos em espaços económicos em processo de convergência, e a consagração efectiva de muitos direitos que, durante décadas, foram território de confronto entre programas diversos para a sociedade, funcionaram no sentido de atenuar, aos olhos de observadores menos atentos, as diferenças, as opções, os caminhos.

Mas hoje, por um lado a reemergência da questão social, enquanto questão central das sociedades contemporâneas, colocada na ordem do dia pelo agravamento dos processos de exclusão social, por outro a complexidade das novas questões éticas, e o fenómeno da xenofobia, entre vários, vieram de novo exigir uma clarificação dos valores que cada um defende, dos direitos que se deverão consagrar, do sentido que se quer dar à cultura e aos valores dominantes da sociedade portuguesa.

Só esta prática de assunção clara de posições permitirá a evolução e a clarificação dos direitos que no plano político deverão obter vencimento. Só assim se poderá transformar a vontade reformista e o acto legislativo correspondente em realidade efectivamente vivida.

Permitam-me que aproveite, por isso, para saudar todos aqueles que com convicção, primeiro, e com frontalidade, depois, se manifestaram a favor ou contra a alteração da lei vigente sobre a interrupção voluntária da gravidez. O confronto de posições que se colocam perante a consciência individual de cada um e
que, naturalmente, nos divide nas opções a tomar, trouxe consigo um sobressalto de cidadania, uma militância por valores, e uma atenção ao fenómeno legislativo e às suas incidências que foi extremamente enriquecedora.

Oxalá, tantos outros problemas éticos e de direitos colocados hoje perante a sociedade, mas, tantas vezes, sem eco na agenda política, possam colher merecimento em iniciativas legislativas e em consultas mais amplas que permitam esclarecer o sentido que queremos dar à transformação da nossa sociedade e a extensão do direito que queremos consagrar à livre escolha de cada um.

As sociedades e os regimes políticos só evoluem revelando as escolhas, e sobre elas tomando posição e nunca evitando, por esta ou aquela conveniência de momento, a respectiva clarificação.

Minhas Senhoras e meus Senhores,

Quis comemorar este Dia Internacional da Mulher com um conjunto de cerimónias simbólicas que chamassem à atenção para alguma da substância das coisas, para a necessidade de insistir, dia a dia, na afirmação das nossas convicções profundas sobre a prática da igualdade de direitos.

Faço-o, juntamente com a minha mulher, permitam-me que o diga, de uma forma duplamente simbólica, mas visando, em ambos os casos, dar um sinal de estímulo e incentivo. Ontem, visitando um conjunto de realidades sociais e empresariais protagonizadas por mulheres, que afirmaram o seu caminho e as suas carreiras baseadas no seu mérito pessoal e na qualificação das suas iniciativas. Hoje, distinguindo um conjunto de mulheres a quem a República, ao condecorar, presta um tributo de reconhecimento ao valor e ao trabalho que com tanta coragem, qualidade e mérito realizaram.

Por condecorar apenas mulheres esta é uma cerimónia discriminatória, tenho disso consciência. Mas é assumidamente discriminatória, porque essa discriminação é ainda necessária.

Não o faço, todavia, por acreditar que este é um problema que diga exclusivamente respeito às mulheres. Trata-se de um recurso destinado a chamar a atenção para um problema que é uma questão de democracia, de direitos humanos e da sociedade em geral.

Não quero, em matéria de direitos, nem tornar-me fastidioso com a listagem daqueles que já são lei, nem percursor, ao tentar enumerar aqueles que possa pensar que estão por consagrar. Não porque queira, neste último caso, fugir às minhas responsabilidades, mas pela simples razão, que assumo em toda a sua extensão, de que não tenho ideias fechadas sobre os caminhos a seguir para consagrar na prática uma efectiva igualdade.

Ao longo das últimas três décadas, para recuar apenas até aos meus tempos de Universidade, muitos têm sido, internacionalmente, os caminhos testados. Sobre essas escolhas há opiniões genuinamente divergentes. Ainda que muitos desses caminhos possam, até, ser complementares.

Tão-pouco me quero alongar detalhadamente no enunciado dos problemas que hoje afectam ainda um número tão impressionante de mulheres portuguesas: da violência doméstica a práticas empresariais discriminatórias, do assédio à falta de apoio às famílias monoparentais; do peso de tantos preconceitos a uma vida política ainda esmagadoramente fechada à participação cívica das mulheres.

Todos os indicadores mostram graus elevados de discriminação feminina, na participação, na população activa, no emprego, no desemprego, na distribuição profissional do emprego e das qualificações, na precariedade do emprego, na duração do trabalho e na remuneração.

A disseminação de novas formas de reorganização do tempo de trabalho ou o acesso à educação e à formação atingem diferentemente homens e mulheres, porque diferente é também a partilha entre os sexos das actividades não remuneradas, dentro e fora das famílias.

Sem querer entrar no pormenor de cada um dos temas, que a Doutora Teresa Beleza aliás aprofundou com o brilho que lhe é reconhecido — e a quem quero prestar o meu público agradecimento por ter aceite participar, como oradora, nesta Cerimónia —, quero, todavia, sublinhar dois aspectos que me merecem a maior atenção.

O primeiro, prende-se com uma certa cultura empresarial ainda muito instalada onde vigoram inaceitáveis práticas discriminatórias no acesso ao emprego, violação de direitos constitucionalmente consagrados, abuso do trabalho precário e a quase constante prioridade dada no despedimento às mulheres.

O segundo, prende-se com a dimensão da exclusão social. A sociedade portuguesa, bem como a sua economia, têm passado por um processo de restruturação no sentido da sua modernização.

Este processo de modernização desenvolveu-se, porém, sem que muitas das conquistas sociais, nomeadamente no domínio da igualdade de direitos — mesmo se consagrados na Constituição e nas leis ordinárias —, tivessem tido tempo de se enraizar na sociedade, nem por via do sistema educativo, nem por via de uma persistente e generalizada reivindicação social.

A modernização recente da sociedade portuguesa provocou um processo de marginalização de certos grupos sociais e em todos eles as mulheres são ainda mais duramente afectadas que os homens.

Julgo que não podemos assistir, sem reflectir nem agir, à extensão que já alcançou entre nós, à escala europeia, o fenómeno da exclusão social, quer no seu todo, quer, em particular, na forma como ele afecta as mulheres.

Nas últimas décadas assistimos à transformação da organização económica que tendia a garantir o pleno emprego, mas assistimos também à desestruturação das relações familiares e, por isso, ao enfraquecimento de todas as solidariedades que ela acarretava, e dos efeitos sociais a ela associados.

No plano individual, tudo isto se traduz num risco acrescido de fenómenos de exclusão de que nenhum grupo social se pode hoje considerar a salvo. Do quadro de empresa ao trabalhador indiferenciado — com impactos diferentes, naturalmente — o risco da desafiliação social e da exclusão são cada vez maiores.

Há uma crescente espiral de precariedade que envolve na insegurança e num futuro sem esperança grandes franjas da população. Assistimos ao desenvolvimento de uma cultura do aleatório, sem valores de referência, sem consolidação de mecanismos de integração do indivíduo no grupo, na vizinhança, na família, nas práticas institucionais da sociabilidade.

Assistimos à generalização de situações ambíguas, de espaços intermediários entre estudo e emprego, entre desemprego e reforma, feitos de estatutos incertos, frequentemente provisórios, onde se difundem os riscos permanentes de precarização.
E quanto mais incertos e precários são esses estatutos, mais difícil se torna a aplicação, a defesa e o desenvolvimento de direitos sociais.

O silêncio fruto da precariedade do emprego é humilhante no plano individual e inaceitável no plano político.

É preciso agir com firmeza e reconhecer que, muitas vezes, o discurso sobre estas questões, e as políticas que sobre elas se formulam, se dirigem muito mais aos efeitos, tentando minorá-los, do que às causas, tentando erradicá-las. As políticas que procuram agir apenas sobre os efeitos sociais das políticas económicas têm limitações evidentes.

É necessária, à escala europeia, uma nova sensibilidade à questão social. À origem dos seus problemas: a desigualdade, a injustiça. Uma nova sensibilidade à necessidade de ponderar com rigor o impacto social de longo prazo das políticas económicas adoptadas.

Nas sociedades contemporâneas, a função social do Estado não se pode esgotar nas políticas amenizadoras da exclusão extrema, e só poderá adquirir uma nova amplitude se se reforçarem também as políticas que dêem prioridade à melhoria do sistema educativo, à protecção da família, à preservação dos direitos
sociais adquiridos e à consagração de outros que há muito deviam ser realidade em Portugal e na Europa.

A reforma do Estado Providência deve, por isso, assentar numa dimensão social que tem de ter como objectivo a consagração de políticas sociais activas, favorecendo a inserção social e profissional.

A resolução de muitos dos problemas que afectam as mulheres portuguesas passa por estas questões. Por isso, me permiti abordá--las hoje, aqui, convosco. Se é verdade que muitos dos problemas que afectam as mulheres assumem um carácter específico, é também verdade que a maior parte desses problemas não encontrará resposta noutro plano que não seja o plano da sociedade no seu todo.

Reconheço, porém, que as desigualdades que afectam as mulheres também não podem ser entendidas como uma fatalidade, dada a persistência do fenómeno, a ineficácia da legislação e a ausência de uma nova geração de políticas inovadoras. Como todas as questões sociais, elas exigem um comprometimento para a sua solução.

Mas, no pior dos cenários, se muitos empresários não forem capazes de encontrar uma nova racionalidade para as relações de trabalho, se o Estado não for capaz de formular políticas activas, umas, e repressivas, outras, susceptíveis de consagrar direitos e de reprimir abusos, se os partidos e os sindicatos não forem capazes de persistir na luta pelo aprofundamento desses direitos e na denúncia das discriminações, se isso não se fizer, se os
actores políticos e económicos não forem capazes de cumprir o seu papel, as desigualdades não serão, apesar disso, uma fatalidade a que as mulheres estão condenadas a ser vítimas.

Haverá todo um percurso que será, sem dúvida, trilhado pela própria sociedade, feito de persistência, de aprendizagem de intervenção e determinação, feito em solidariedade entre os homens e as mulheres que se reconhecem nesta causa.

No fundo, foi assim que se consagraram muitos dos avanços e conquistas sociais. Pela força dos indivíduos no exercício das suas convicções. Mas será isso que queremos que aconteça na sociedade portuguesa? Será isso sinal e expressão de uma democracia consolidada, ou sinal de alerta para um défice de representação de muitas necessidades e anseios que, por esta ou aquela razão, não estão já, ou ainda, na ordem do dia.

Reconheço, alertando, sem dramatismos, que se está a desenvolver em Portugal um défice de eficácia das instâncias de representação. É preciso ter a maior atenção a este fenómeno.

Por isso, para além do simbolismo desta cerimónia, não me quis escusar de olhar para o que julgo ser a substância das coisas: uma clarificação de convicções, uma renovada atenção aos temas da questão social, a exigência de os agentes políticos e económicos cumprirem o seu papel de representação e modernização solidária da sociedade portuguesa.

É preciso fazer mais por esta questão. É preciso ter a coragem de marcar as diferenças, assumir opções, dar corpo nos partidos à questão da desigualdade e denunciar com firmeza os abusos, as prepotências, as práticas discriminatórias.

Minhas Senhoras e meus Senhores,

Hoje tive o privilégio de poder distinguir um conjunto de mulheres cuja obra e notoriedade pública é por todos reconhecida ou merece sê-lo, no meu entendimento.

Mas quero, com este conjunto de actos simbólicos, evocar todas as mulheres portuguesas e deixar-lhes o testemunho claro da minha atenção à diversidade das problemáticas que exigem uma dedicação constante à defesa de conquistas sociais, à determinação na contenção de práticas abusivas e ao empenhamento no alargamento de direitos.

Uma política de efectiva igualdade de oportunidades entre homens e mulheres é uma condição essencial ao alargamento da cidadania e ao aprofundamento da democracia. Oxalá esse caminho se possa percorrer cada vez mais depressa. Trabalhemos por e para isso.