Sessão de Encerramento do X Congresso da Associação Nacional de Municípios

Ponta Delgada, Açores
23 de Março de 1996


Permitam-me que inicie as minhas palavras por uma referência muito especial à Região Autónoma dos Açores.
Quero assim manifestar-vos o contentamento que tenho por me encontrar, ainda que por breves horas, neste arquipélago, a que me ligam tão boas memórias. Os Açores são uma parte tão importante da diversidade do todo nacional e elemento essencial da componente Atlântica que com orgulho caracteriza a nossa História e define a nossa inserção geoestratégica.

Mas quero, também, fazer uma referência muito especial à riquíssima experiência autonómica regional dos Açores e da Madeira.

As autonomias regionais foram decisivas para a transformação da vida das populações destes arquipélagos. Provaram ser importantes instrumentos de articulação de uma parte de Portugal na unidade do seu todo.

Senhoras e Senhores Congressistas,

Momento de balanço e de síntese, mas também de formulação de novas vias, um Congresso da Associação Nacional dos Municípios constitui uma afirmação da vitalidade do poder local e dos seus protagonistas.

Permitam-me que, saudando os organizadores e participantes deste Congresso, exprima a minha satisfação pessoal pelo reencontro de pessoas com as quais partilhei preocupações comuns numa fase importante do meu próprio percurso político. Tantode umas como de outras — pessoas e preocupações — recebi um estímulo incomparável, a que procurei corresponder com um contributo empenhado, de que muito me orgulho.

O poder local que hoje conhecemos tem origem no 25 de Abril e distingue-se das experiências municipais anteriores. Em primeiro lugar, porque tem uma legitimidade eleitoral, em segundo, porque se consolidou em torno de uma primeira fase de descentralização administrativa do País.

O poder local, apelando à participação das populações e exercendo funções em grande proximidade com as pessoas, tem sido uma autêntica escola de cidadania que acumulou um capital de confiança da maior importância para a democracia portuguesa.

Os eleitos locais, são porta-vozes e mediadores dos interesses das comunidades. Eles dão corpo a uma das formas de representação política onde a dimensão de responsabilização directa e de resposta imediata às expectativas das populações são, porventura, mais exigentes.

Quero sublinhar o alto serviço que têm prestado ao País os autarcas portugueses. O balanço da experiência de 20 anos de poder local permite destacar o seu contributo positivo e sólido dado ao combate a tantas dificuldades nacionais que o centralismo histórico do Estado não estava em condições de travar.

Sob o lema «Reforçar o poder local para melhor servir as populações» ocupou-se este X Congresso dos principais desafios e propostas que os autarcas gostariam de ver respondidos e concretizados. Fizeram-no, aliás, considerando não só a componente interna da sua acção mas equacionando também a dimensão europeia e internacional.

De facto, muitos dos temas aqui abordados são hoje problemas políticos e civilizacionais de enorme actualidade, nomeadamente na Europa, como o prova a presença aqui do Senhor Presidente do Conselho dos Poderes Locais e Regionais da Europa.

Quero expressar a minha compreensão relativamente às preocupações aqui enunciadas. Mas quero também congratular-me com a forma do diálogo com que o actual Governo tem abordado as questões postas pela Associação Nacional dos Municípios Portugueses.

As reformas aqui enunciadas merecem toda a ponderação. Elas apontam no sentido de uma maior flexibilização da gestão autárquica, e para a empresarialização de serviços municipais.
A revisão do regime de financiamento das autarquias continua a ser um tema premente, como neste Congresso amplamente se demonstrou. É igualmente importante a reivindicação de medidas que possibilitem uma maior racionalização e desburocratização dos serviços.

Defendeu-se, também, neste Congresso, uma ampliação das competências dos municípios. É um tema recorrente, associado como sempre esteve ao reforço da autonomia municipal. Mas ganha hoje uma nova acuidade, perante a expectativa natural de uma nova fase de descentralização administrativa.

Está terminada uma primeira fase de consolidação do poder local. Não se trata de uma página totalmente virada, porque subsistem carências e inadequações em infra-estruturas e atrasos na cobertura de serviços básicos que não podem ser ignorados.

Como aqui se referiu, a adopção de uma definição estratégica de objectivos, a priorização de políticas do qualitativo, ou do «imaterial», e a prática de negociação com os diversos níveis da Administração, tornar-se-ão, cada vez mais, os indicadores da nova fase do poder local.

Entretanto, as autarquias são confrontadas com novas áreas de intervenção, como resulta, aliás, dos relatórios presentes a este Congresso.

A valorização do património natural e construído é uma dessas áreas, onde se espera que os municípios exerçam uma política activa. Não se trata apenas de recuperar patrimónios no sentido de uma cultura de excepção, mas de os requalificar em função das pessoas, dos seus laços com os sítios, das suas memórias, da sua identificação enquanto membros de uma comunidade.

Cuidar da herança das paisagens, das pedras e das pessoas, deve ter prioridade sobre o começar tudo de novo à custa de recursos não renováveis, de novas infra-estruturas e novas edificações, e, sobretudo, de novas raízes, que as pessoas por vezes penosamente terão que forjar.

Quero sublinhar a necessidade de uma ampla campanha de informação e debate sobre as prioridades estratégicas da revalorização do território herdado, numa perspectiva de defesa da memória colectiva e de poupança de recursos escassos.

É necessário que as populações e os agentes económicas incorporem nos seus interesses a noção de desenvolvimento sustentável e apreciem soluções duráveis, ainda que menos espectaculares,
e criadoras de sinergias entre centro e periferia, entre público e privado.

É preciso cuidar do ordenamento do território e da humanização dos espaços habitados, designadamente urbanos. Este é um desafio de civilização, pois desse ordenamento dependem a qualidade de vida das pessoas e as próprias condições de afirmação da cidadania.

Fenómenos como o estrangulamento das acessibilidades, o envelhecimento dos núcleos históricos, a exclusão social e a marginalidade impõem aos responsáveis autárquicos a definição de políticas orientadoras globalmente fundamentadas, susceptíveis de contrariar a tendência para a degradação da vida nas periferias das grandes cidades.

Mas os instrumentos renovadores da vida urbana são igualmente indispensáveis para a afirmação dos núcleos de menor dimensão, que travam uma luta de quase sobrevivência contra a desertificação e a litoralização.

A fixação e atracção de populações nestas zonas, fundamental para o equilíbrio do conjunto do espaço geográfico e humano nacional, impõe uma extensa qualificação dos recursos à disposição dos concelhos com mais pequenos núcleos urbanos.

A atenção aos recursos humanos é pois um dos temas que não pode deixar de ocupar lugar central na agenda política dos autarcas, como aqui foi sublinhado. Refiro-me aos domínios da educação e da formação, nos quais aliás se suscitam múltiplos planos de complementaridade entre a administração local e a administração do Estado.

De forma pertinente, debateu-se aqui também a intervenção social do poder local. O desemprego, a pobreza e a exclusão ocorrem na generalidade do território e não são problemas apenas das grandes metrópoles. O apoio à integração dos mais jovens e dos grupos desarmados face à concorrência é sentido pelos autarcas — dada a complexidade dos problemas — como uma área a exigir não já respostas pontuais mas uma acção coordenada, organizada, técnica e financeiramente apoiada.

O aumento da delinquência e da toxicodependência e do sentimento de insegurança, particularmente nos grandes centros urbanos, confronta igualmente o poder local com a necessidade de criar e desenvolver respostas inovadoras.

A coordenação das intervenções projectadas pelos diversos organismos com responsabilidade na execução de políticas sociais é outro dos papéis que as autarquias têm desempenhado e desempenharão cada vez mais no futuro.

As limitações do sistema prisional e em geral do sistema punitivo tradicional, levaram diversos países a adoptar mecanismos de colaboração das autarquias nas tarefas da política criminal, através, por exemplo, duma alternativa à prisão consubstanciada numa pena de trabalho a favor da comunidade.

Do mesmo modo devem merecer atenção os programas que, dentro dos limites legais, favoreçam as experiências de trabalho em regime aberto, ou levem serviços locais a apoiar a reinserção social dos ex-reclusos.

A cooperação internacional institucionalizada é um outro domínio exemplar das novas funções dos municípios, num quadro
de descentralização de funções do Estado. Das iniciativas de geminação em que se têm envolvido tantas câmaras têm-se tirado claros benefícios no relacionamento cultural entre povos.

Trata-se de uma modalidade de cooperação internacional, particularmente actuante, porque ao intercâmbio cultural pode somar o intercâmbio técnico.

Gostaria de chamar a atenção para o papel insubstituível que esta modalidade de intervenção pode representar no desenvolvimento da cooperação com os países africanos que se exprimem oficialmente em português.

Quero, aliás, saudar a presença neste Congresso de um número tão significativo de autarcas de Angola, Cabo Verde, Guiné-Bissau e São Tomé e Príncipe.

Senhoras e Senhores Congressistas,

Após um longo período de consolidação do poder autárquico, o processo de descentralização administrativa do Continente vai conhecer uma nova fase.

Em Portugal, acumularam-se profundas assimetrias regionais. Há regiões onde as actividades tradicionais foram quase por completo sacrificadas, sem que alternativas viáveis surgissem em substituição. Há regiões assoladas pela desertificação, com uma população relativamente envelhecida e de baixo índice de escolarização. Há regiões cujos centros urbanos foram relegados para um plano periférico face ao objectivo de concentrar equipamentos em grandes pólos. Há em suma regiões cuja identidade se expressou num saber fazer e numa criatividade que correm entretanto riscos de destruição por acção ou omissão.

Entendo que a descentralização administrativa pode constituir um poderoso estímulo ao desenvolvimento, corrigindo desfasamentos, valorizando recursos e competências, fortalecendo, nesse sentido, a coesão nacional.

A descentralização administrativa só pode ser um factor de coesão nacional, se em vez da homogeneidade respeitarmos a diferenciação, se, em vez da hierarquização e subordinação, adoptarmos o equilíbrio e a partilha, enfim, se à desigualdade inter e intra-regional soubermos responder com empenhada solidariedade.

Entendo que a entrada numa nova fase do processo de descentralização, que deverá conduzir à criação de regiões administrativas no Continente deve ser encarada com toda a naturalidade. Trata-se de um normativo constitucional, há muito objecto de debate na opinião pública e de formulações e reformulações por parte dos partidos políticos.

Mas tratando-se também de adoptar um modelo de gestão e de um modelo de divisão territorial, que implica todos os portugueses, importa assegurar que ninguém se sinta excluído de um debate que, por natureza, deverá ser um profundo e sereno debate nacional.

Numa matéria desta relevância, que implica alterações profundas à estrutura do Estado, entendo dever advogar a vantagem de se obter um consenso tão amplo quanto possível.

Senhoras e Senhores Congressistas,

A regionalização não pode fazer-se sem os municípios, muito menos à custa dos municípios.

A definição do quadro de competências das regiões administrativas implicará provavelmente ajustamentos no quadro de competências municipais. Pondo ênfase na condição prévia a descentralização não deve ser feita com limitação dos poderes locais actuais nem do seu natural desenvolvimento — conviria que uma clarificação das competências dos Municípios pudesse ter lugar desde já, para o que julgo este Congresso deu uma oportuna contribuição.

Ficaria assim definida uma espécie de núcleo essencial de competências exclusivas, permitindo que outras figurassem num elenco de competências a sujeitar a contratos, ou seja, competências que se traduziriam em projectos ou programas articulando dois ou mais níveis da Administração do Estado.

Mas as regiões administrativas também não podem ser constituídas à margem dos municípios. Elas devem oferecer ao poder local uma nova instância de participação e de negociação e um ensejo de potenciação dos seus recursos, no quadro dos novos instrumentos de planeamento e de gestão que aquelas regiões não deixarão de constituir.

O reforço das instituições municipais, e a descentralização são peças indispensáveis para revigorar uma coesão nacional que um certo tipo de modernização, feita numa perspectiva centralista
e desacautelada do ponto de vista das consequências sociais, afectou.

O novo ciclo político apela a uma renovada capacidade de dar respostas concretas às expectativas e ansiedades do quotidiano. As grandes reformas da Administração do Estado não podem ser nem exercícios teóricos sem debate nacional, nem instrumento de desnecessária conflitualidade política, mas sim modalidades de aproximação entre o Estado e os cidadãos. Só assim serão compreendidas e aceites pela população

É nessa direcção que temos de caminhar.