Jantar com Representantes Universitários,Investigadores e Directores de Revistas de Ciências Sociais (Jornada de apoio ao desenvolvimento económico, cultural e científico)

Palácio de São Marcos, Coimbra
22 de Abril de 1996


Com esta iniciativa, tomada no quadro de um programa destinado a celebrar o 22.º aniversário do 25 de Abril, pretendi em primeiro lugar pôr em destaque a relação entre a alvorada das Ciências Sociais em Portugal e o combate pela democracia.
Muitas foram as dificuldades enfrentadas pelas Ciências Sociais ao longo das quase cinco décadas do regime autoritário encerrado com o 25 de Abril.

O salazarismo tolerou, é certo, algumas disciplinas, como a História ou a Geografia. A censura ou o silenciamento exerciam-se, neste caso, sobretudo em relação aos quadros teóricos e às metodologias que mais incisivamente se mostrassem capazes de restituir os mecanismos e fundamentos do poder e, portanto, as manifestações de arbitrariedade no seu exercício.

Noutros casos, porém, a repressão atingiu domínios inteiros do conhecimento, que, no estrangeiro, há muito se tinham constituído e consolidado. Foi exactamente essa a situação da Sociologia, que, como se sabe, era encarada pelos mais obscurantistas como um disfarce dos mais tenebrosos desígnios políticos.

Adérito Sedas Nunes, a quem se deve um contributo fundamental para a abertura duma passagem para as Ciências Sociais em Portugal, fazia questão de lembrar que para os responsáveis do regime autoritário «a Sociologia não era somente inútil e abstrusa, era também e sobretudo perigosa, suspeita, subversiva. Salazar dissera que se tratava de um ‘socialismo disfarçado’ ou de qualquer coisa confusa que já no seu tempo não se sabia o que era».

Não será de mais salientar, a este propósito, a acção de cientistas portugueses, como o já citado Sedas Nunes, e os felizmente ainda vivos Armando de Castro e Vitorino Magalhães Godinho, ao conseguirem, com sacrifícios de toda a ordem, no País ou no exílio, ir forjando as condições intelectuais e institucionais favoráveis à afirmação das correntes teóricas e dos quadros disciplinares mais adequados a uma análise crítico-analítica da realidade social.

Eles alimentaram e despertaram um interesse crescente pelos problemas sociais e do desenvolvimento do País. Com as suas investigações e reflexões deram combate aos preconceitos contra as Ciências Sociais. E fizeram demonstração da sua utilidade, na medida em que os seus estudos se revelavam valiosos contributos para o entendimento da contemporaneidade.

Com o advento da democracia, a situação alterou-se radicalmente. Desde logo no plano institucional. Em poucos anos, criaram-se cursos de licenciaturas e pós-graduações em quase todas as Universidades portuguesas. O regresso de muitos professores e investigadores a Portugal deu suporte a esse movimento de criação institucional. Na década de 80 cumpriram-se os primeiros doutoramentos em Sociologia na Universidade Portuguesa. As Ciências Sociais creditaram-se não apenas na comunidade científica como na sociedade em geral.

Acertado o passo com as orientações teóricas mais influentes da comunidade científica internacional, os investigadores portu-gueses têm desenvolvido projectos de investigação sobre as especificidades da nossa realidade. Fizeram e fazem-no, na esteira dos pioneiros já referendados, mas com as imensas dificuldades de quem percorre um caminho deixado quase ao abandono durante décadas.

Senhores Professores Doutores,

A produção científica na vossa área é hoje felizmente diversificado e abundante. Graças aos seus resultados, estão a criar-se condições para que o nosso país deixe de ser uma inextricável teia de opacidades ou o alvo predilecto de um amontoado de clichés e de explicações fáceis.

Há efectivamente que saudar o facto de em vários domínios disciplinares das Ciências Sociais, a reflexão, a investigação e o ensino se não terem desligado das preocupações de intervenção sobre o próprio tecido social. Não são apenas os programas de trabalhos da Academia que o atestam. São frequentes grandes encontros onde as experiências de investigadores e outros profissionais se cruzam e mutuamente enriquecem. Diversos nomes das Ciências Sociais portuguesas têm um estatuto mediático, a que emprestam um conteúdo pedagógico ou de intervenção cívica. O recurso por parte de organismos públicos à celebração de contratos com centros de investigação visando a realização de estudos sociais deixou de constituir uma prática excepcional.

Mas não são só os responsáveis governamentais, nos seus diversos departamentos, que devem ser chamados a dar apoio — e a utilizar o contributo das Ciências Sociais. Esse apoio deve vir também de outras áreas com influência decisiva na vida e na qualidade de vida dos cidadãos — as autarquias, as associações empresariais, os sindicatos, as empresas.

Escusado será dizer que, numa altura em que os processos de transformação social surgem à nossa volta com contornos
de autêntica ruptura civilizacional, os esforços de inteligibilidade realizados pelos cientistas sociais portugueses são, não apenas de aplaudir, como de estimular, e estimular francamente.

Não existe entre nós uma consciência suficientemente aperfeiçoada sobre custos e benefícios sociais decorrentes de tomadasde decisão, em sedes as mais diversas. Os resultados de uma tal indiferença são preocupantes. É de desejar que uma convivência regular com o mundo das Ciências Sociais, despertando um interesse generalizado pelas suas propostas interpretativas, pelos resultados de análises concretas a que chega, e pelas orientações práticas que sugere, permita inverter a situação.

A mobilização das energias do País para suplantar as dificuldades que se lhe colocam, num contexto de mudança global como o que atravessamos, não se compadece com desperdício de recursos, incluindo, em lugar de destaque, os recursos intelectuais.

As questões postas pela modernização, designadamente as que se manifestam em espirais de exclusão e desesperança, exigem um crescente rigor e aperfeiçoamento dos critérios e instrumentos intelectuais de percepção do social e dos fenómenos da mudança. Não podemos enfrentá-las, repito, nem com ideias feitas, nem com esquemas simplificadores que rejeitam o pluralismo de análise e o necessário confronto de perspectivas.

Eis porque neste momento o meu voto vai no sentido de que saibamos olhar para o futuro com a lucidez crítica que o saber das Ciências Sociais põe ao nosso alcance.