Sessão de Abertura do «Fórum do Património»

Universidade do Algarve, Faro
10 de Outubro de 1996


E´ com o maior prazer que aceitei o convite de V. Ex.ª, Senhor Reitor, para presidir à sessão de abertura do «Fórum do Património», tema de indiscutível actualidade e que demonstra bem o sentido de oportunidade das instituições que o promovem e apoiam face às problemáticas com que se debatem hoje as sociedades contemporâneas.
Prometi visitar esta Universidade quando me desloquei em Junho ao Distrito de Faro. Queria então, o que não foi possível, exprimir o meu apoio ao importante trabalho que aqui se realiza. Julgo ter uma ideia clara da diversidade de domínios em que a intervenção destacada desta Universidade se faz sentir. A pertinência da investigação aqui realizada e a importância da formação ministrada são amplamente reconhecidas na região e no País. O papel revitalizador da sociedade que instituições como a Universidade desempenham, é insubstituível. Creio ser este um exemplo positivo das virtualidades do caminho da descentralização do Ensino Superior, para além de ser esta uma experiência a acompanhar com interesse sobre as modalidades de articulação entre ensino universitário e ensino politécnico.

Vejo, com prazer, que a Universidade continua a crescer e tem em execução projectos de reforma e modernização de cursos e equipamentos. Peço-lhe, Senhor Reitor, que transmita a todos os órgãos académicos os meus votos de êxito para os projectos de desenvolvimento da Universidade do Algarve.

Considero que esta evolução, que corresponde ao que se passa um pouco por todo o país nas instituições de ensino superior, trará consequências muito positivas ao desenvolvimento de Portugal.

A modernização do País depende, fortemente, da percepção de que o papel social das instituições — como a Universidade — se alterou significativamente. Da capacidade de adaptação às exigências do desempenho de novos papéis sociais depende a modernização da sociedade. Por isso, a aposta na Educação, em geral, e no Ensino Superior, em particular, constitui uma base essencial do desenvolvimento. Mas, para tal, a formação cultural da sociedade portuguesa tem de estar mais fortemente imbuída dos aspectos relacionados com a ciência e a tecnologia. A divulgação científica é uma base cultural essencial à compreensão das grandes mutações do mundo contemporâneo.

Hoje, o ensino superior, como centro de inovação e de formação exigente das novas gerações, tem, cada vez mais, pelo ambiente cultural e científico que proporciona e pelo contributo que deve dar na educação para uma cidadania activa, de desempenhar um papel essencial na transformação de atitudes e de comportamentos face à inovação.

Vivemos um período de grande transformação no ensino superior. Mas estamos, também, irreversivelmente, num momento onde se impõe maior rigor e maior exigência. A avaliação do sistema e a exigência na qualidade, são também elas condições de modernização do País.

Mas esse importante caminho tem necessariamente de ser acompanhado pela conclusão da negociação sobre o modelo de financiamento do ensino superior. Esta é uma necessidade incontornável.

Minhas Senhoras e meus Senhores,

Este Fórum inscreve-se no programa de trabalhos de um Mestrado em «Gestão Cultural» que a Universidade do Algarve desenvolve em cooperação com a Universidade de Paris VII.

É-me grato reconhecer que à oportunidade do tema está associada a experiência de intercâmbio universitário internacional, como garantia de inserção numa rede mais alargada de experiências e de aquisições técnico-científicas, através de um protocolo com uma prestigiada universidade francesa. Por outro lado, ao pretender qualificar profissionais numa área como a gestão cultural, a Universidade soube aliar um desígnio de intervenção estratégico às funções de reflexão e de investigação.

Na abertura deste Fórum gostava de partilhar convosco, de forma sintética, algumas reflexões.

A era da globalização forçou-nos a questionar o conceito tradicional de cultura, herdado do Iluminismo, e a reflectir sobre o desenvolvimento de um novo estatuto para os produtos culturais.

A cultura surge-nos, cada vez mais, vinculada à vida social, económica e política. Perdeu o estatuto de esfera autónoma para aceitar integrar-se num quadro de múltiplas implicações, e ganhou corpo a associação do conceito de valor económico ao produto cultural.

Não se trata apenas da invasão da cultura pela lógica da produção e difusão das chamadas indústrias culturais. A economia pediu à cultura caução para a sua própria hegemonia, para, como Eduardo Lourenço afirmou, a «culturização de todos os objectos de consumo de que a edição, a rádio, a televisão, a civilização enquanto espectáculo planetário permanentemente exige».

Não ignoro, antes reitero, que o grande desafio da sociedade portuguesa actual se chama modernização, implicando profundas mutações económicas. Mas nem essas mutações se cingemao domínio estritamente económico, nem os mecanismos de ponderação dos efeitos dessas mutações dispensam a abordagem do tema cultural.

A nível internacional, por exemplo, não teria sido possível globalizar a economia, sem o notável acréscimo que se registou nas actividades ligadas à comunicação, ao conhecimento e à informação. De igual modo, em Portugal, não será possível preparar o País para enfrentar com êxito a integração numa economia globalizada sem um acréscimo dessas mesmas actividades.

A modernização sustentada de um país não se mede apenas pelos indicadores de desenvolvimento económico, que podem, conjunturalmente, apontar um caminho de prosperidade. Sem um aumento generalizado do acesso ao conhecimento e à informação a sustentabilidade do desenvolvimento é ilusória.

É que hoje, mais do que nunca, os instrumentos e os meios para compreender e fazer funcionar o mundo global são especializados, e por isso requerem um sistema de aprendizagem estruturado e dinâmico.

O reconhecimento da necessidade de um enorme esforço colectivo de aprendizagem é uma condição decisiva para o futuro de Portugal. Esse esforço, que requer em simultâneo um grande investimento dos domínios da formação e da comunicação, baseia--se na criação contínua de saberes disciplinares, interdisciplinares e transdisciplinares, e na sua divulgação.

O incentivo à inovação intelectual, seja ela de cariz científico ou artístico, amplia o património cultural disponível, e deverá estar ligado a um intuito de democratização cultural, tanto no sentido da garantia do pluralismo de expressão como na atenuação do fosso discriminatório entre grupos e camadas sociais.

Este é um tema da maior acuidade e a Universidade do Algarve mostra, com esta iniciativa, a sua particular atenção às necessidades do presente. A articulação entre recursos educativos e equipamentos culturais, nas suas actividades de formação, criação e comunicação deverá aliás constituir uma prioridade nacional, atendendo sobretudo às carências de uns e outros, sentidas no País.

Atrever-me-ia, a este propósito, a ir mais longe. Essa necessária articulação entre recursos educativos e equipamentos culturais não poderá deixar de considerar, igualmente, a resposta a dar ao problema colocado pela disfunção que representa, em muitas zonas do País, a existência de equipamentos culturais parcial ou totalmente desaproveitados.

Há aqui, claramente, um problema que exige respostas contratualizadas entre os diversos agentes e a necessidade de uma ponderação sobre a nacionalidade de critérios de planeamento em que a dimensão regional não é ainda determinante.

Minhas Senhoras e meus Senhores,

Se a ideia que pretende reduzir tudo, inclusivamente o conhecimento e a cultura, a um simples produto, é perigosa, não o é menos a ideia de que o penhor da nossa identidade, supostamente ameaçado pela modernização, reside exclusivamente no legado histórico-cultural.

Em primeiro lugar, o património histórico-cultural é por natureza diverso. Ele alimentou-se de uma tensão entre interno e externo, entre local e universal, entre elites e povo, entre exclusão e integração, entre uniformidade e alteridade. Em segundo lugar, a conservação do património não é uma actividade que se esgote numa pura preservação de objecto.

Conservar é promover uma reaproximação, é portanto reinterpretar, de acordo com os critérios e as expectativas do presente. Finalmente, porque a identidade de uma sociedade não é um dado imutável, é, isso sim, uma aquisição permanente, um processo contínuo entre o passado e o desejo de futuro.

É, aliás, por decidirmos o que nos interessa que somos humanos. A experiência histórica não basta, nunca bastou para garantir um adequado enquadramento das grandes questões.

Olho o futuro como uma construção, como uma corporização das percepções e decisões do presente e não como uma fatalidade ou uma conformação cega aos ditames do passado. Por isso, valorizo tanto o pluralismo, o valor da diversidade. A cultura não é apenas legado. Mas, também, não pode representar a sacralização das percepções majoritariamente reconhecidas na sociedade. O património cultural de uma sociedade só se defende se toda a sua diversidade e inovação for aceite como legítima e preservável como património.

É preciso avaliar o futuro. E na avaliação, nessa escolha, os condicionalismos, designadamente económicos, são apenas uma parte do problema. As nossas aspirações constituem a outra parte. Essa ideia do futuro, é também ela uma criação cultural, pela qual, todos os dias refazemos a liberdade.