Sessão Solene de Abertura do II Congresso Histórico de Guimarães

Universidade do Minho, Guimarães
24 de Outubro de 1996


Cumpre-se este ano o nono centenário da outorga do primeiro foral a Guimarães. Tratando-se, como se trata, de um aniversário invulgar, permitam-me que assinale em primeiro lugar esta circunstância de especial significado.
Na organização do espaço medieval, os concelhos, instituídos pelas cartas de foral, desempenharam um papel histórico decisivo. A historiografia liberal exaltou nos municípios a perspectiva de autonomia e de participação, perspectiva que veio a ser integrada no património do pensamento político democrático.

Orgulhamo-nos hoje justamente do poder local, instância de representação e de exercício de competências administrativas em grande proximidade com as pessoas. O poder local consagrado pela democracia acumulou um enorme capital de confiança, no combate a tantas dificuldades nacionais, a que o centralismo do Estado pós-medieval não permitia responder.

Sabendo embora que é largo o fosso que separa o municipalismo de hoje do municipalismo antigo, não podemos deixar de saudar na instituição primordial a referência fundadora, aquela que afinal ainda simboliza o princípio do autogoverno dos concelhos portugueses.

Mas a carga simbólica da terra vimaranense não se resume ao pioneirismo municipal. De facto, em Guimarães se cruzam alguns dos caminhos fundamentais que conduziram à afirmação de Portugal como Estado independente, e é também por isso que este Congresso tem aqui justificadamente lugar.

Gostaria de saudar a iniciativa, à qual correspondeu um tão expressivo número de investigadores de história de Portugal e de Espanha.

Não me passou despercebida a natureza da convergência de esforços que o tornou possível: a autarquia, a Universidade, a Clegiada de Guimarães, a Arquidiocese de Braga, a prestigiosa sociedade Martins Sarmento. Apraz-me registar que à sensibilidade de uma autarquia para a pertinência das questões histórico-culturais, correspondeu a Universidade e o corpo dos investigadores com os seus recursos da mais elevada qualificação, como não se pode deixar sem referência o mérito de instituições locais que promovem a abordagem da história e do património com exigências de rigor e preocupações de continuidade.

Honrado com o convite para presidir a esta sessão de abertura, faço votos para o êxito desta reunião científica, um marco também na vida cultural portuguesa.

Senhoras e Senhores Congressistas,

Afonso Henriques e a sua época vão merecer a vossa atenção nos próximos dias. Além da comunidade científica, muitos outros portugueses, creio, sentirão curiosidade pelos vossos debates e conclusões.

Compreende-se porquê. Afinal Afonso Henriques corporizou, num determinado momento, um desejo de autonomia e uma atitude de ruptura, um processo em que radicaria a futura independência de Portugal.

Não me cabe naturalmente a este propósito emitir qualquer hipótese, mas seja-me permitido discorrer brevemente sobre dois aspectos que ressaltam da intervenção deste primeiro monarca português.

A primeira nota respeita à determinação, à clareza de propósitos, à aceitação de que a acção, a acção político-militar neste caso, implica correr riscos.

Se me posso exprimir assim, entre analistas norteados pela objectividade, este aspecto da personalidade do jovem Afonso sempre me pareceu digno de destaque.

Na primeira e certamente crucial intervenção de Afonso Henriques, em 1128, em São Mamede, o enfrentamento das condições de uma tomada de iniciativa parecem decisivas, tendo em conta que as forças que combateu eram das mais poderosas na região.

Numa situação certamente complexa, o protagonismo assumido por Afonso Henriques surpreendeu pela ousadia e consolidou-se pelo sentido da responsabilidade. Nesse compromisso residiu provavelmente o efeito mobilizador e a coesão de grupo sem os quais a conquista da autonomia não teria sido possível.

Respeita a segunda nota a um aspecto que hoje porventura estamos em situação de valorar com mais intensidade: o do envolvimento da actividade política dos condes portucalenses num quadro pontuado não apenas pelos interesses de potências regionais próximas, como pelas teias de relações estabelecidas com diversas entidades do Ocidente.

Afonso Henriques tinha laços de parentesco estreitos, pelo lado paterno, com os duques e condes da Borgonha, e por essa via com o Mosteiro de Cluny, grandes potentados ocidentais em termos políticos e económico-sociais. Por outro lado, paralelamente à sua actividade no campo militar, conduziu uma política externa activa, através da qual procurou assegurar a independência política.
O seu caso ilustra bem como a autonomia não implica a solidão, mas a exploração sistemática das solidariedades externas.

Minhas Senhoras e meus Senhores.

O estatuto da história, no conjunto das Ciências Sociais, modificou-se largamente nas últimas décadas. Algumas dessas mudanças prendem-se, em estreita correlação, aliás, com as verificados noutras Ciências Sociais, com as novas condições, criadas pela Democracia, de liberdade de criação intelectual e de intercâmbio científico e cultural com o estrangeiro.

O confronto de quadros teóricos e de metodologias conferiu à historiografia portuguesa um novo vigor. Ampliou-se extraordinariamente o campo da investigação, com a integração de áreas até então excluídas e a adopção de perspectivas disciplinares inovadoras. Algumas reservas do conhecimento que pareciam inexpugnáveis foram postas em causa, e sujeitas a revisão.

Ciência da variação, da mudança, a história foi insistententemente convocada por uma sociedade e um tempo que se propunha recusar os amontoados de explicações fáceis, os determinismos de um destino intemporalmente definido, as visões da sociedade reduzidas ao prisma dos heróis e das épocas heróicas.

Se este movimento de renovação conferiu à investigação histórica um prestígio e até um fascínio inesperados — acentuado pela imprevista mediatização da análise histórica —, ele parece em contrapartida ter gerado algumas dificuldades no aparelho de transmissão escolar.

É certo que a História por vezes incomoda as consciências, uma vez que é da sua função colocar-nos perante a relatividade das acções e das convicções humanas.

Mas é igualmente aí, nessa capacidade insubstituível de nos armar criticamente, de nos confrontar com a escolha e a circunstância, o conflito, a diversidade, a ruptura e a continuidade, a oposição e
o consenso, que reside a pertinência do contributo da História para a inteligibilidade do presente.

Reconhecemos que é, por vezes, ingrata a tarefa dos professores, a quem compete assegurar uma mediação entre uma investigação que desconstrói mitos e clichés e rasga novos horizontes problemáticos, e a estabilização dos quadros de conhecimento indispensáveis à transmissão do saber.

Por isso julgo oportuno, num momento em que um tema histórico de grande ressonância nacional vai ser objecto de atenção dos estudiosos, ter uma palavra de compreensão e de estímulo para com os professores de História, a quem caberá, por último, subtrair a esses estudos novos conteúdos informativos e formativos destinados às mais jovens gerações.

Senhoras e Senhores Congressistas,

Afonso Henriques foi o elo de uma cadeia que viabilizou uma nação.

A experiência histórica portuguesa não se deixa aprisionar numa leitura única e linear. Pelo contrário, alimenta-se da diversidade e do contraste, alterna dinâmicas internas e externas, integração e exclusão, propensão conservadora e busca da inovação. Mas ilustra, exemplarmente, a viabilidade de um colectivo nacional, sentido e pensado como tal pelos Portugueses.

A experiência histórica da viabilidade não é tudo, mas é certamente uma poderosa vantagem e uma estimulante condição para olharmos o presente e o futuro com confiança.

A construção de um colectivo nacional implicou a criação de múltiplos instrumentos políticos e culturais para sedimentar a união apesar da dispersão, obter o consenso apesar da conflitualidade, fortalecer solidariedades apesar das disparidades, articular duradouramente interesses e vontades apesar da fragmentação do espaço social e local.

O processo conta já com uma longa duração, não constituiu um dado predeterminado mas sim o resultado de um grande e continuado esforço de gerações e gerações.

A percepção da identidade histórica como uma aquisição permanente é uma garantia para as escolhas a que devemos proceder. Podemos e devemos recusar o fatalismo e acreditar nas nossas próprias capacidades. Podemos e devemos acreditar num projecto de longo prazo, num desígnio que oriente o caminho, e recusar o pessimismo e a inércia. Podemos e devemos enfrentar os desafios da integração externa, acreditando que a participação em novos patamares de responsabilidade internacional fortalece uma visão mais optimista de nós próprios. Há lugar para nós, o nosso contributo é valorizado.

A experiência histórica da viabilidade mostrou que os Portugueses têm sentido prospectivo e a coragem de correr riscos. Deram provas desses atributos com desassombro e perspicácia para vencer dificuldades, curiosidade pelo novo, e capacidade de adaptação ao diferente, ao mutável, ao imprevisível.

Parafraseando Fernando Pessoa, a nossa pátria é a nossa história. As nossas aspirações também o são. O futuro colectivo decorre tanto do passado, como da esperança. O nosso passado aí está, oferecendo determinação e inteligência à «avaliação da esperança», no dizer do nosso Padre António Vieira.