Sessão Solene Que Assinalou os 500 Anos do Decreto de Expulsão dos Judeus de Portugal

Assembleia da República
05 de Dezembro de 1996


No dia exacto em que se cumprem 500 anos sobre o decreto que expulsou os Judeus de Portugal ou os obrigou à conversão, renegando a sua fé e as suas tradições, a Assembleia da República, sede da representação nacional, decidiu aprovar, por unanimidade, uma deliberação na qual se expressa um juízo moral claro sobre um facto da nossa História, ao mesmo tempo que são reiterados claramente os princípios da tolerância e do universalismo em que nos reconhecemos.
Esta decisão, tomada em nome do Povo Português, assume um alto significado simbólico e tem um excepcional valor pedagógico. É como se, hoje, restituíssemos uma parte do que, há 500 anos, fora negado.

É certo que o passado não se anula, nem se reescreve — assume--se, esclarece-se, interpreta-se, narra-se. Mas também se avalia e se julga criticamente. A História é isso mesmo: memória crítica, activa e vigilante. Uma atitude científica moderna não significa neutralismo ético ou demissionismo moral.

Menos ainda se pode aceitar o negacionismo ou a mistificação intencional.

A História de um Povo é memória viva e identidade consciencializada. Tem de ser assumida no que tem de melhor e de pior, de grandioso e de pequeno, no que representou de erro e de acerto. A História de Portugal tem períodos de glória e momentos condenáveis. Uns e outros a constituem, uns e outros formam aherança que recebemos, com a qual dialogamos criticamente e que nos identifica como Nação. O passado não prescreve e não há histórias isentas de erros graves ou funestos.

A expulsão dos judeus portugueses, quaisquer que sejam as razões que, na época, possam ter sido ou aparecido como motivação, foi um acto iníquo, com profundas e nefastas consequências na ordem moral e na ordem material.

Foi ainda injusta, pelo muito que devíamos a esses portugueses que também eram judeus. Iniciou um ciclo de violência e obscurantismo, cujas marcas perduraram. Provocou sofrimentos sem conta, perdas, humilhações, ofensas. Empobreceu-nos como povo, como país, como cultura, como vida colectiva. Essa noite da História constituiu um acto contra nós próprios, contra a nossa identidade, contra a presença do Outro nela, uma presença que sempre nos tornou maiores, nos acrescentou, nos abriu ao Mundo, nos fez ir ao encontro do desconhecido e do diferente.

Esse gesto representou uma cedência a pressões exteriores, o sacrifício de sentimentos e princípios fundamentais, a renúncia ao melhor que éramos e tínhamos, em favor do calculismo estreito e imediato.

Antero de Quental, na conferência tão bela e tão lúcida em que analisa as «Causas da Decadência dos Povos Peninsulares», diz
que a expulsão dos Judeus e Mouros teve proporções de «calamidade nacional».

E acrescenta, em terríveis palavras, que, desde então, «um terror invisível paira sobre a sociedade: a hipocrisia torna-se um vício nacional, a delação é uma virtude religiosa, a expulsão dos judeus e mouros empobrece as duas nações, paralisa o comércio e a indústria, e dá um golpe mortal na agricultura […]».

Quem não reconhece, ao longo da História e até em tempos recentes, a actualidade destas palavras, o eco destes avisos, os reflexos desta atitude mental?

É por isso que os actos com que lembramos esta data de trágica memória não se esgotam na pura evocação do que aconteceu. Olhamos o passado, mas como ensinamento para o presente e abertura para o futuro. O lema escolhido — «Memória e Reencontro» — significa que vivemos, hoje, num país livre e democrático, que respeita os direitos humanos e pratica a tolerância, o pluralismo e o respeito pelos outros. Significa ainda que queremos ser, cada vez mais, uma comunidade consciente de que a diversidade nos engrandece, projecta e enriquece.

Mas a lição que temos também de tirar para o nosso tempo é a de que nunca nada está definitivamente erradicado nem vencido,
de que, quando menos se espera, regressam os signos da intolerância, do fanatismo, do ódio ao diferente.

O século que se aproxima do ocaso viveu, de par com tantos progressos, os horrores da barbárie, numa escala nunca conhecida ou sequer imaginada. A democracia é uma obra em progresso, tem de ser pedagogia constante, prática quotidiana. A tolerância tem de ser exercício permanente, atitude mental interiorizada.

Num mundo que queremos melhor para todos, devemos, creio firmemente, valorizar os grandes gestos de entendimento e de reencontro, os símbolos da paz, da reconciliação, da concórdia. Devemos conferir-lhes um valor exemplar e pedagógico. Devemos não aceitar a fatalidade do mal. Devemos opor-nos a uma cultura de passividade perante a miséria do Mundo e de inelutabilidade e resignação perante a injustiça, a desigualdade, a opressão.

Onde quer que eles surjam, temos de combater, pela palavra e pela acção, o racismo, a xenofobia, os fanatismos agressivos
e violentos, os fundamentalismos nacionalistas, étnicos, religiosos, a discriminação e a exclusão de todos os géneros e tipos, a intolerância, a uniformização, o sectarismo.

Este é também o sentido mais profundo desta cerimónia: renovar o nosso empenhamento no combate pela tolerância e reafirmar a nossa vontade de fraternidade, de solidariedade e de paz.

Dirijamos, neste momento de tão grande significado, o nosso pensamento para todos aqueles que, nos nossos dias e onde quer que se encontrem, sofrem ameaças e exclusões porque pensam ou são diferentes, são perseguidos e humilhados porque recusam a tirania do medo e da iniquidade, são privados de liberdade porque agem pela liberdade, são julgados sem justiça porque lutam pela justiça. Como tantas vezes aconteceu, eles antecipam um tempo melhor e um mundo mais digno.

Senhor Presidente do Knesset,

A presença de Vossa Excelência entre nós, em representação do Estado de Israel e do seu Presidente, tem um significado excepcional e é-nos muito grata. Põe em evidência os laços tão antigos que unem os nossos Povos e que, apesar das vicissitudes, permaneceram vivos e fortes. Quer dizer, também, por isso, amizade renovada e retribuída.

Não há nada mais belo do que a vontade de concórdia que ousa vencer desencontros, ressentimentos ou desconfianças. É essa a grande prova que nos humaniza e nos torna fiéis ao melhor da nossa condição.

Israel vive actualmente um desses momentos que contam verdadeiramente na vida das Nações e em que tudo pode ser construído ou posto em causa.

O corajoso processo iniciado em Oslo permitiu, pela primeira vez em décadas, inverter a escalada da violência e da rejeição, reencontrar a esperança e construir a paz. Essa esperança não pode ser defraudada e exige, por parte de todos, um continuado empenho nos caminhos da reconciliação e da convivência entre os Povos da região onde a vossa bela Pátria encontrou lugar.

Senhores Presidentes,

Senhores Deputados,

Minhas Senhoras e meus Senhores,

O encontro que hoje realizamos com a nossa própria História não se completaria se não tivéssemos presente que, por todo o Mundo, há descendentes dos judeus portugueses que, há cinco séculos, saíram da terra que também era a sua.

Spinoza é o símbolo mais alto dessas gerações que se dispersaram para continuar a ser o que eram. Na nossa evocação, elas cruzam--se com aquelas outras que, permanecendo aqui, foram obrigadas a ocultar ou a ser o que não eram, dissolvendo com a passagem do tempo a própria memória da sua origem. Prestemos homenagem ao seu sofrimento, ao heroísmo, à coragem, à sua fortaleza de ânimo.

Spinoza é o símbolo de todos eles. Ele foi o homem livre, que tudo sofreu para ser livre e de tudo foi acusado por ser livre. Ele foi o heterodoxo ameaçado e castigado por todas as ortodoxias, mesmo as da sua família e da sua raça, aquele de quem já foi dito ser um dos homens mais dignos da história humana, aquele que fez da grande linguagem do sofrimento uma esplendorosa meditação sobre a vida que se afirma contra os simulacros em que é obrigada a negar-se.

Spinoza, o descendente de judeus portugueses, é uma referência universal e o seu pensamento de amor à vida e à liberdade continua a iluminar-nos, neste tempo tão intenso de dúvidas, conturbado de riscos e desejoso de esperanças.

O próximo século terá de ser, ao mesmo tempo, o século da universalização e da diferenciação, o tempo de todos e o de cada um. Portugal sabe bem, pela experiência histórica hoje relembrada, que este desafio só será vencido se a abertura ao Outro e ao seu apelo for a regra da convivência humana. Esse éo combate em que, como Povo, como País, como História, como Cultura, como Democracia, queremos estar presentes e activos.

Nada é mais imperioso, pois essa é a primeira condição para o reencontro dos seres humanos uns com os outros e com o sentido mais límpido e criador da nossa humanidade renovada.