Sessão Solene na Assembleia Legislativa (Visita oficial a Macau)

Macau
19 de Fevereiro de 1997


Compreenderá V. Ex.ª, compreenderão os Senhores Deputados com assento nesta Câmara, como é grato ao Presidente da República ser recebido em sessão solene, na Assembleia Legislativa, aqui onde reside a mais lídima e a mais alargada representação da comunidade de Macau.
E se é, por certo, uma honra para V. Ex.ª, Senhora Dr.ª Anabela Ritchie, presidir, agora em segunda legislatura, a um colégio de personalidades que, por se terem distinguido nesta comunidade, por ela foram justamente designados para dar voz e sentido ao seu projecto, não é menos certo que a Assembleia Legislativa,
ao eleger V. Ex.ª para sua Presidente, não ignorava que punha à frente dos destinos desta Câmara quem simboliza Macau de um modo tão excelente e quem tanto tem combatido pelos valores essenciais do modo de viver que singulariza o Território nesta parte do mundo.

Senhora Presidente da Assembleia Legislativa,

Senhores Deputados,

Quis a História, e quiseram os homens que, de algum modo, a conduzem e modelam, que fosse a nossa geração a protagonizar a mudança de destino de Macau, na passagem do milénio.

É essa tarefa que temos entre mãos, e é sobre ela que, nesta minha primeira visita ao Território, quero deixar uma mensagem de estímulo e de confiança, aqui onde todo o futuro é possível.

Antes de mais, porque falar hoje da questão de Macau é convocar a atenção e a memória de todos para um quadro institucional de promissor significado, em que está solenemente comprometida a honra de duas nações multicentenárias — Portugal e a China.

Depois, porque esse quadro institucional releva de um assinalável pragmatismo político, que procura combinar o respeito por uma identidade sócio-cultural forjada na História, com as exigências da permanente interacção entre espaços e entre comunidades diferenciadas, cujo sentido último raramente é possível determinar.

E, finalmente, porque a Declaração Conjunta, com a prudência de quem sabe não poder comandar todo o destino de toda a História, mas com o inequívoco apreço pelos valores essenciais desta comunidade, introduziu um primeiro limite temporal
— cinquenta anos — para o quadro institucional que ela revela, assim deixando caminho aberto, transcorrido tal período, para a vontade dos homens e para as oportunidades do Tempo.

Em que consiste, então, o núcleo desse quadro institucional?

Na contemplação da letra e do espírito da Declaração Conjunta, a ideia que melhor e mais perfeitamente o sintetiza é, porventura, a da maneira de viver, a preservação da maneira de viver de Macau.

Tudo o mais pode, sem violência, ser reconduzido a este paradigma essencial.

Eis, assim, a pedra-de-toque e o critério aferidor de toda a acção que se pretenda fundada na Declaração Conjunta — a preservação da maneira de viver de Macau.

Dela fazem parte instituições políticas próprias e leis específicas, línguas diferenciadas, com idêntico estatuto oficial, e costumes singulares, em pacífica convivência, práticas de comércio internacionalmente estabelecidas e formas ancestrais de contratar, deuses vários de todos os cultos e práticas religiosas em que cada um expressa a sua fé.

Daí que, volvidos cerca de dez anos sobre a assinatura, em Pequim, da Declaração Conjunta, e a menos de três da transferência do exercício da soberania para a República Popular da China, importe sublinhar os esforços consideráveis que têm sido feitos durante o período de transição para fixar e dar forma institucional ao modo de viver específico de Macau e trazer renovado alento para as tarefas que, neste domínio, ainda se torna necessário realizar.

Logo em 1990, quando já era bem patente que as instituições de poder já não correspondiam, de um modo inteiramente eficiente, às exigências políticas dos tempos novos, tomou esta Assembleia a iniciativa de promover a alteração do Estatuto Orgânico de Macau, sobretudo em dois segmentos da autonomia local que se revelavam indesejavelmente comprimidos — o legislativo e o judiciário.

Foi o tempo de transferir para os órgãos de governo próprio do Território — o Governador e a Assembleia Legislativa — grande parte do acervo de competências legislativas que ainda se mantinham na Assembleia da República; e de dotar Macau de uma largaautonomia judiciária, com a instituição do Tribunal Superior de Justiça, e a atribuição às instâncias locais de regras próprias de organização e funcionamento, e de apreciável reserva de jurisdição exclusiva em grande parte das matérias que eram chamadas a julgar.

Mas porque se tornava necessário prosseguir no esforço de instituir uma ordem judiciária autónoma, definida pelos órgãos de governo próprio do Território, de novo esta Assembleia tomou a iniciativa, uma vez mais perante a Assembleia da República, de propor que a Macau fosse atribuída competência em matéria de organização judiciária, assim abrindo caminho à plena autonomia dos tribunais locais e à total exclusividade da sua jurisdição, uma e outra aqui reguladas.

No entretempo, foram vertidas em direito local duas traves mestras do ordenamento jurídico de Macau — o Código Penal e o Código de Processo Penal.

E digo traves mestras, porque o apreço de uma comunidade pela liberdade e pela segurança dos seus membros, e a capacidade de combinar, com prudência e com equilíbrio, as exigências de uma e de outra, revelam-se, sempre, de um modo exemplar, na sua legislação penal e no processo que a serve.

E, todavia, decisivos que são o Código Penal e o Código de Processo Penal, não bastam, e não poderemos ficar por aí.

É que se será importante para Macau dispor de uma economia livre de mercado e de adequada protecção e garantia da propriedade privada; se será importante para os seus residentes poderem escolher livremente uma profissão e, por essa via, participarem da prosperidade do Território; se é decisivo que o produto interno cresça equilibradamente e a vida comunitária se desenvolva com estabilidade, tudo isto só adquirirá inteiro significado se estiver adequadamente garantido nas leis e definitivamente adquirido na consciência colectiva que essa é apenas uma parte da maneira de viver de Macau que a Declaração Conjunta garante.

A economia livre de mercado, a liberdade de trabalho e o bem--estar material, o crescimento do produto e a estabilidade da vida social, são, efectivamente, essenciais, e sem eles Macau sairia descaracterizado.

Mas tudo isso só adquire integral dimensão no que tem sido o modo de viver específico do Território se, à semelhança do que foi feito com o Código Penal e com o Código de Processo Penal, se souber ter a determinação e o engenho de traduzir e manter em leis locais, e por essa via garantir a sua permanência no futuro, aquilo que faz parte do património vital desta terra e que nela tem vivido, umas vezes por praxes, outras por leis insuficientemente adaptadas às especificidades locais — os Direitos, as Liberdades e as Garantias dos seus residentes.

Antes de mais, impõe-se fazer passar no escrutínio local o Código Civil vigente.

Trata-se, efectivamente, do grande compêndio de regulamentação da vida jurídico-privada, em que perpassam, sob a forma de lei e da disciplina que ela introduz, os momentos essenciais da vida de cada um e das relações das pessoas entre si — o nascimento ea morte, o casamento e a família, o comércio dos bens e dos serviços, pari passu com a propriedade e os seus títulos de legitimação, de modificação e de transferência.

No Código Civil, é toda uma filosofia da vida e da sociedade que ganha corpo e contorno específicos; e na medida em que ele exprima o projecto de vida jurídico-privada desta comunidade, é, exactamente por isso, um poderoso e privilegiado instrumento da sua identidade própria e da manutenção dessa identidade no percurso histórico que os novos tempos lhe reservaram.

No respeito pela maneira de viver de Macau, a Declaração Conjunta não se limitou, todavia, a garantir a disciplina da vida jurídico-privada dos residentes da futura Região Administrativa Especial de Macau. Foi bem mais longe: assegurou, expressamente, todos os direitos e liberdades dos seus habitantes e demais indivíduos, e teve mesmo o cuidado de inventariar alguns dos que poderiam revelar-se de maior significado. Com o que nada se quis restringir o âmbito de tais direitos, sublinhe-se, como bem evidencia, aliás, o art. 41.º da Lei Básica, que deixa a porta aberta a todas as legítimas iniciativas e a todos os indispensáveis consensos.

Impõe-se, por isso, verter em leis locais os direitos, as liberdades e as garantias reconhecidas no Estatuto Orgânico de Macau
— os quais, anote-se, em nada conflituam com a Declaração Conjunta — que ainda não tenham sido objecto de regulamentação pelos órgãos de governo próprio do Território; sem esquecer os Pactos Internacionais dos Direitos Civis e Políticos e dos Direitos Económicos, Sociais e Culturais, ambos já estendidos a Macau, aliás, e de parceria com as convenções internacionais de trabalho, alvo de assento expresso na Lei Básica.

Para tarefa tão instante, o Presidente da República manifesta perante VV. Ex.as a sua plena confiança na determinação e no sentido de serviço a esta comunidade dos órgãos de governo próprio do Território, que optaram pela fase final da transição para proceder à necessária regulamentação dos direitos, liberdades e garantias que dela ainda careçam e, em estreita e empenhada cooperação institucional, ultimarem assim, de forma exemplar, a meritória tarefa de preparar Macau e as suas gentes para os sucessos do próximo milénio.

Em tal tarefa, não lhes faltará o apoio dos órgãos de soberania da República, que se torne indispensável para os consensos que se revelem necessários, aqui e agora, no processo de regulamentação, assim se dando acolhimento à inafastável perspectiva de que será por tais consensos que Macau terá perene garantia de que os seus órgãos de governo próprio estão a legislar para o imediato e para o futuro.

Legislar para o imediato e para o futuro será, necessariamente, legislar para a realidade de Macau. E legislar para a realidade de Macau nunca poderá ser bandeira em que procurem glorificar-
-se, com o céu como limite, operários da última hora, que mais não fariam, afinal, sob a aparência de serviçoa esta comunidade, do que inviabilizar toda uma regulamentação prudente e adaptada às realidades locais, e de que o Território tanto carece. Com isto não se pretenda, todavia, coonestar omissões ou percursos enviesados — é que prudência e sentido da realidade local nunca poderão ser tais, que por via deles se descaracterize o núcleo essencial de cada direito, liberdade ou garantia, que os órgãos de governo próprio do Território sejam chamados a regulamentar.

Senhora Presidente da Assembleia Legislativa,

Senhores Deputados,

Leva esta Assembleia mais de vinte anos de trabalho parlamentar.

A sua estrutura e modo de funcionamento revelaram-se de tal modo adequados à realidade e aspirações locais, que uma e outro passarão, no essencial, para a RAEM, de harmonia com a Declaração Conjunta.

Estes vinte anos foram, por outro lado, bastantes para sedimentar uma cultura de cooperação entre o legislativo e o executivo e de acompanhamento por esta Câmara da actividade da Administração.

Mas também foi neste percurso que a Assembleia Legislativa nunca se demitiu da sua função de intérprete autorizado das aspirações e das críticas desta comunidade, como bem evidenciam os debates anuais que precedem a votação das Linhas de Acção Governativa, ou a recente reflexão sobre os caminhos mais adequados para restabelecer um estado de integral segurança no Território, aqui e ali perturbado por alguns acontecimentos, ocorridos nos últimos meses, cuja gravidade não pode ser negada e exige medidas adequadas de contenção.

O contributo desta Câmara para o acerto da acção governativa é, efectivamente,insubstituível.

São VV. Ex.as, Senhores Deputados, quem está em mais permanente e informado contacto com as várias gentes desta terra, e, por essa via, trazerem ao debate político o que melhor se poderá adequar ao aperfeiçoamento das condições de exercício da actividade económica, à mais proficiente definição de uma política de trabalho e de segurança social, à ultrapassagem dos bloqueios do comércio imobiliário e da atribuição a todos de habitação condigna, à redefinição da política industrial, à hierarquização das prioridades sectoriais de desenvolvimento e de iniciativa cultural, ao aperfeiçoamento da escolaridade e dos seus sistemas.

É, também, para que esta função política da Assembleia Legislativa possa ser adequadamente cumprida, que é necessário garantir aos residentes de Macau, por meio de leis claras e generosas, cabal exercício de direitos, liberdades e garantias.

É que só homens livres, e com correspondente estatuto, poderão ser representados e dar permanente cooperação a deputados igualmente livres, que sejam para os governos, quer quando louvam, quer quando criticam, elementos essenciais na prossecução do bem comum.

Senhora Presidente da Assembleia Legislativa,

Senhores Deputados,

A Declaração Conjunta fixou, em fórmulas de grande sensatez e equilíbrio, o acordo celebrado entre a República Portuguesa e a República Popular da China quanto ao futuro de Macau.

Desse acordo faz parte essencial o largo grau de autonomia de Macau, o governo pelas suas gentes, a preservação da identidade sócio-cultural desta comunidade e a protecção das suas tradições, a manutenção da estabilidade e da prosperidade de Macau.

Porque os pactos são para observar, e observar com escrúpulo e boa-fé, a busca dos caminhos para cumprir o quadro institucional da Declaração Conjunta tem sido, por isso, preocupação permanente dos órgãos de governo próprio do Território e, pesem embora ultrapassáveis dificuldades de ritmo, continuado compromisso dos Governos de Portugal e da República Popular da China.

O processo de transição vem sendo, aliás, ocasião de assinalável desenvolvimento das relações bilaterais e de significativo fortalecimento dos laços de amizade entre Portugal e a China.

É neste quadro que a transferência para a República Popular da China do exercício da soberania sobre Macau não pode significar que esta terra e estas gentes deixem de ser, como sempre foram, um meio privilegiado de relacionamento entre o Oriente e o Ocidente.

Oriente e Ocidente aqui protagonizados por dois povos que, em contacto por mais de quatrocentos anos, aprenderam o valor da diferença e o seu respeito, a fecundidade das trocas de cultura e de civilização e as exigências e limites que comportam, a relatividade de mútuos desentendimentos e de ultrapassados desencontros; e que, além do mais, souberam manter cristalizados na História sofrimentos e humilhações que, uma ou outra vez, se infligiram, e fazer de um projecto de crescente cooperação a carta magna do seu relacionamento presente e futuro.

Esta Assembleia Legislativa, com a sua diversidade de origens e de culturas, que, agora, como depois de 99, fala português e fala chinês, e pelas duas línguas e culturas — e por essa terceira que é a macaense — protagoniza, e protagonizará, os valores que integram a identidade de Macau, é, também ela, um magnífico exemplo de encontro e de convivência de civilizações e, à sua dimensão, paradigma do estilo de relações que poderão fazer a prosperidade dos povos e a paz entre as nações.

Que continue a ser assim, no imediato e no futuro, são os votos de Portugal.