Sessão Pública com os Tribunais e Organizações Judiciárias de Macau (Visita oficial ao Território)

Edifício dos Tribunais de Primeira Instância de Macau
21 de Fevereiro de 1997


A todas Vossas Excelências cumprimento e saúdo, também.
É a primeira vez que o Presidente da República se dirige, em solene sessão pública, aos tribunais da ordem judiciária de Macau.

Compreenderão, por isso, VV. Ex.as, que as minhas primeiras palavras sejam, também aqui, de homenagem à Justiça, de cuja aplicação VV. Ex.as, Senhores Juízes, Senhores Magistrados do Ministério Público, Senhores Advogados e Senhores Oficiais de Justiça, sois, cada um à sua medida, os agentes e os responsáveis directos.

Pesada responsabilidade, num tempo de acelerada mudança, em que iniciativas e reformas inadiáveis hão-de ser, todavia, tributárias da realização de um projecto de transcendente significado histórico para Macau e para as suas gentes.

Nesse projecto está integralmente comprometida a vontade de Portugal e da China, que, ao regularem na Declaração Conjunta a questão de Macau, estabeleceram a preservação da sua maneira de viver, servida por um largo grau de autonomia das suas instituições, nas quais se compreende o poder judicial independente, incluindo o de julgamento em última instância.

O remoto tribunal da comarca de Macau, integrado na ordem judiciária da República Portuguesa, tinha, assim, os dias contados; e ficava aberto o caminho para a atribuição ao Território deinteira autonomia judiciária, conseguida através de um prudente e gradual faseamento, que conduzisse os tribunais locais à plenitude e exclusividade da jurisdição.

Foi para dar início à execução desse objectivo que, logo em 1990, a Assembleia da República, por proposta da Assembleia Legislativa, consignou no Estatuto Orgânico de Macau a autonomia judiciária do Território; e pela Lei n.º 112/91, de 29 de Agosto, estabeleceu o conteúdo e limites dessa autonomia, em aplicação do princípio da atribuição faseada da plenitude e exclusividade da jurisdição.

As instituições judiciárias hoje vigentes são, por isso, filhas dessa lei e têm evidenciado, no uso da medida de jurisdição que lhes está atribuída, que há tribunais em Macau, e que os residentes nesta terra encontram neles adequada protecção para os seus direitos e permanente motivo para acreditar que é neles que sempre residirá a última garantia de que Macau é um território submetido ao Estado de Direito e aos inalienáveis princípios que o integram.

Contra o arbítrio de quem quer que seja, dos poderes públicos ou dos poderes de facto, sabem os residentes de Macau que os seus tribunais erguerão sempre o primado da lei, que a todos protege e a todos obriga, e constitui a inafastável garantia de que o caso se não sobreporá à norma, nem a vontade dos poderes ao império da lei.

É por isso que se é decisiva a integral adaptação das leis às realidades locais, operada pelos órgãos de governo próprio do Território; se não é possível, aí onde coexistirão como línguas oficiais o chinês e o português, deixar de ter todas as leis em versão bilingue; se urge continuar a dotar os tribunais dos meios adequados para que, também aí, o bilinguismo seja uma realidade integral, tão importante como tudo isso é manter instituído um estatuto dos magistrados judiciais e dos magistrados do Ministério Público e um regime de gestão de uma e outra magistratura que salvaguarde integralmente a independência dos juízes e a autonomia dos agentes do Ministério Público.

Sem juízes independentes, irresponsáveis e inamovíveis, e sem agentes do Ministério Público com estatuto de autonomia, não há poder judicial independente, nem em primeira, nem em última instância.

Como não há poder judicial independente sem advogados que gozem sempre de um estatuto de total independência e que, com base nesse estatuto, possam exercer o patrocínio judiciário sem sujeição a quaisquer instruções, directivas ou pressões dos poderes públicos.

Revela-se, por isso, de grande utilidade, que todos os agentes de Justiça dêem o contributo da sua reflexão na fase que se avizinha de ultimação do processo de autonomização da ordem judiciária de Macau, não só pela experiência concreta das realidades locais que vivem no quotidiano, como pela clara consciência que têm evidenciado dos princípios que se torna necessário respeitar para que os tribunais de Macau possam ser, agora e no futuro, os garantes da aplicação da Justiça e o lugar seguro em que sempre encontrarão protecção os direitos, liberdades e garantias dos residentes neste Território.

Caberá, naturalmente, aos órgãos de governo próprio de Macau, agora que a Assembleia da República lhes atribuiu competência para legislar em matéria de organização judiciária, estabelecer em definitivo, e obtidos os necessários consensos em sede própria, o regime dos tribunais do Território.

Mas a reflexão de todos permitirá, por certo, compreender melhor que se a lei terá de conter inequívoca consagração do estatuto de independência dos juízes e de autonomia do Ministério Público, é também essencial que o sistema de governo das magistraturas não se mostre permeável a ilegítimas interferências dos outros poderes públicos e a interferências, essas sempre ilegítimas, de quaisquer poderes de facto, sob pena de não deixarmos condições para que, tanto no futuro imediato, como na Região Administrativa Especial de Macau, o primado da lei esteja garantido por um poder judicial verdadeiramente independente.

Minhas Senhoras e meus Senhores,

A realização da Justiça pelos tribunais só se efectivará, todavia, de um modo adequado, se todos os seus agentes estiverem em perfeita sintonia com a comunidade que servem e sejam, no limite, emanação sua.

É, por isso, indispensável prosseguir no esforço que vem sendo feito de localização gradual das magistraturas, em termos tais que também na Justiça seja Macau governado pelas suas gentes.

E se nunca será de mais insistir na essencialidade deste ponto, importa, todavia, reter que as circunstâncias históricas concretas em que nasceu e se tem desenvolvido o direito de Macau, fazem dele, inapelavelmente, um direito de matriz portuguesa, que continuará a exigir, para a sua adequada interpretação e aplicação, frequente recurso à dogmática e à construção jurisprudencial portuguesas, pelo menos enquanto a experiência da autonomia, pelo curto período decorrido desde a sua instauração, não tenha ainda habilitado o universo local com um acervo doutrinário e jurisprudencial que excepcionalize, cada vez mais, o recurso a fontes externas.

Nesse esforço de autonomização, nenhuma objecção terá, por certo, a República Portuguesa, desde que salvaguardadas, como inequivocamente estarão, condições de efectiva independência das magistraturas, de continuar a cooperar com Macau, pelo tempo e na medida que sejam julgados necessários.

Passado, efectivamente, um período inicial de alguma instabilidade, os tribunais da organização judiciária do Território, instituídos na sequência da alteração operada em 1990 no Estatuto Orgânico de Macau, têm-se revelado um poderoso instrumento de estabilidade social, pesem embora críticas avulsas que resultam, quase sempre, de um entendimento insuficiente dos princípios e limites de actuação do poder judicial.

Nos últimos meses, a tranquilidade do Território tem sido, aqui e ali, perturbada por alguns casos de violência criminosa, que geram, naturalmente, inquietação e alarme social. Circunstâncias que têmcaracterizado tais casos continuarão a exigir adequada ponderação e organização de meios policiais, e o incremento de formas de cooperação regional, que permitam desencorajar os infractores e reconduzir a segurança de pessoas e bens ao que sempre foram os hábitos do Território.

Mas desengane-se quem pense que o combate à criminalidade passa pela instauração de penas cruéis ou pela aplicação judicial de medidas que o nosso sistema — e bem — não autoriza.

A severidade das penas introduzida na legislação penal do Território e os meios processuais para a sua aplicação são, no essencial, inteiramente adequados às circunstâncias de Macau e traduzem de forma realista o modo de viver da sua comunidade.

Mal estaríamos se sempre que se torna necessário combater as verdadeiras causas da criminalidade ou organizar e reformar meios policiais para a reprimir eficazmente, entrássemos, em vez ou a par disso, numa escalada de agravamento de penas ou de restrição de garantias, que acabariam, um e outra, por destruir os fundamentos pelos quais vale a pena, em última instância, haver segurança de pessoas e bens — a dignidade e a liberdade de todos os indivíduos, numa sociedade em que o Estado de Direito impere.

Minhas Senhoras e meus Senhores,

Bem mal ficariam os Portugueses com a sua consciência histórica e com o apreço que lhes merece a cultura que ao longo dos séculos construíram, se não tivessem contribuído, com elementos valiosos do seu património, para a maneira de viver que singulariza a identidade de Macau.

Se há sector em que tal contributo é mais pacificamente reconhecido e mais pacificamente partilhado, esse é, por certo, o do direito.

Saibamos ser fiéis a esse contributo e que o direito e o poder judicial de Macau sejam, agora e no futuro, um poderoso elemento de estabilidade e bem-estar desta comunidade e fecundo elemento de contacto entre duas civilizações, de quem, em larga medida, dependerá, no milénio que se avizinha, a prosperidade dos povos e a paz entre as nações.

Que os tribunais de Macau continuem a ser dignos do direito que aplicam.