Sessão de Encerramento do «Seminário Internacional Europa-1996»

Fundação Calouste Gulbenkian
08 de Maio de 1996


Quero, em primeiro lugar, agradecer ao Presidente da Fundação Calouste Gulbenkian, Prof. Ferrer Correia, o convite que amavelmente me dirigiu para encerrar este seminário internacional sobre a Europa, e cumprimentá-lo por esta iniciativa, tão oportuna e tão importante para a discussão de um tema crucial para Portugal.
O programa e os temas deste seminário têm, entre muitos outros o mérito de procurar enquadrar os problemas europeus numa perspectiva global que ultrapassa a habitual visão circunscrita aos desenvolvimentos internos da União Europeia e da revisão do Tratado de Maastricht. Esta perspectiva que procura pensar na Europa, na sua dimensão histórica e cultural e na sua relação com o Mundo, é indispensável para organizar uma resposta realista e positiva aos novos problemas suscitados pelo «fim do pós-guerra». Esta resposta não terá eficácia e consistência se procurar circunscrever-se aos limites da actual União e à especificidade das suas exigências institucionais, políticas e económicas.

O desmoronamento da União Soviética, a unificação da Alemanha, as revoluções e os processos de secessão nacionalista na Europa Central e Oriental puseram em causa as fronteiras políticas na Europa e o modelo bipolar da guerra fria, anulando os pressupostos que sustentaram o quadro geoestratégico internacional nos últimos 40 anos. A Europa, como epicentro dessa mudança, é o lugar essencial onde se joga a definição de um novo modelo de equilíbrio multipolar.

A construção desse modelo não pode ter uma via única, nem regras excessivamente rígidas e deve fazer-se através do aproveitamento das virtualidades próprias do conjunto de instituições multilaterais europeias e ocidentais, da União Europeia, seguramente, mas também a NATO, a UEO, o Conselho da Europa e a OSCE. A organização da Europa, respeitando as condições específicas, os constrangimentos e as aspirações dos seus Estados, recomenda, nas circunstâncias actuais, a articulação das funções e da acção desse conjunto de instituições, para criar formas, ritmos e modos de integração diferenciados, através de aproximações progressivas sem excluir ninguém. Esta deve ser, creio bem, a matriz essencial de um quadro estável de segurança que possa envolver a Europa no seu todo.

A organização desta nova ordem seria em quaisquer circunstâncias um processo complexo, contraditório, marcado pela incerteza. Torna-se contudo particularmente difícil no contexto presente em que a crise do sistema de seguranças que sustentou a guerra fria coincide com o desenvolvimento convergente da crise do próprio modelo de regulação económica, social e política que garantiu a consolidação das democracias da Europa Ocidental, num quadro de progresso, de estabilidade e de integração regional.

É verdade que esta crise múltipla não é, em muitos dos seus aspectos, exclusivamente europeia. Mas é na Europa que se exprime em termos mais profundos e são as sociedades europeias que apresentam maiores dificuldades estruturais de adaptação às novas exigências da globalização económica.

Nenhum Estado europeu está em condições de conduzir eficazmente essa tarefa em condições razoáveis de eficiência e estabilidade. Isso reforça a razão de ser do projecto da União Europeia e o seu poder de atracção, apesar de todas as vicissitudes dos últimos anos. Devemos ter consciência, porém, de que o tempo histórico deste projecto não é eterno. A complexidade da tarefa pode explicar, mas não justifica, o adiamento das respostas necessárias. Aproxima-se o momento de tomar decisões: sobre a União Económica e Monetária, agora que a convergência nominal começa a transformar-se numa realidade concreta; sobre o alargamento, indispensável e consensual; mas também sobre as consequências destes processos, quer no plano institucional e político quer no plano dos meios e recursos, sem os quais nada se poderá concretizar.

A União Europeia precisa de um desígnio e de uma dimensão política. Esta exigência é-lhe imposta pela actual debilidade das suas condições de afirmação externa; pelas exigências do processo de integração e democratização da Europa Central e Oriental; e finalmente pela conveniência de evitar que o aprofundamento da integração económica e financeira, com a criação de novas instituições e o considerável aumento do poder de outras, se faça sem controlo dos poderes políticos nacionais, sem legitimação democrática, e sem intervenção dos cidadãos. Ignorar tal perspectiva corresponde a reduzir o projecto europeu a uma visão tecnocrática, empobrecedora e, acima de tudo, inviável.

Esta dimensão política, seja qual for o modelo que venha a adoptar, tem de ser concebida em termos que permitam preservar a natureza essencial da União como uma associação de Estados soberanos, vinculados a interesses europeus comuns. A futura União alargada deve continuar a ser, como hoje, uma Comunidade de Iguais, onde a capacidade de participação de cada Estado não é uma simples proporção do seu poder relativo, onde a solidariedade constitui o valor primordial e a cooperação não se resume ao objectivo de abrir as fronteiras para instituir as liberdades de circulação fundamentais e homogeneizar os mercados.

O reforço da dimensão política da União é importante para assegurar o desenvolvimento da convergência económica real, através das chamadas políticas de coesão, indissociáveis da realização da União Económica e Monetária e essenciais para a governabilidade e estabilidade do projecto europeu.

É indispensável sublinhar que a União Económica e Monetária e a Reforma Política e Institucional não podem ser exclusivamente discutidas pelos seus méritos próprios. Têm de ser avaliadas num quadro mais geral que inclui a concepção e organização das políticas comunitárias, o ritmo e a forma dos sucessivos alargamentos e as perspectivas orçamentais que deverão acompanhá-los. Sem esta visão de conjunto, qualquer negociação corre o risco de se perder em políticas de pequenos passos, sem rasgo nem coerência estratégica.

O projecto da União Europeia, na sua forma actual, não é um capricho de visionários É uma resposta estratégica a problemas fundamentais deste fim de século: como por exemplo o da organização de um novo modelo multipolar, a reconstrução e democratização da Europa Central e Oriental, a contenção dos nacionalismos violentos, o enquadramento da globalização económica; a preservação das condições essenciais da paz. Os Estados europeus, incluindo, naturalmente, Portugal, têm interesses essenciais associados à viabilização de uma Europa mais forte e coesa,
capaz de se constituir numa unidade estratégica autónoma, estável e agregadora.

A participação empenhada de Portugal na primeira linha da União Europeia é vital para a inserção sustentada do País no movimento de internacionalização da economia mundial, constituindo simultaneamente um estímulo e um enquadramento indispensável para o seu próprio processo de modernização. Desligado da União, Portugal perderia condições únicas de recuperar o atraso histórico que o separa dos países mais desenvolvidos; correria um sério risco de estagnação e empobrecimento, agravando as condições da sua periferização; perderia condições de afirmação internacional e prejudicaria, por isso, a defesa dos seus interesses nacionais permanentes em regiões do Mundo com as quais deve manter uma especial proximidade, em particular a África e o Brasil.

Há dez anos, a adesão de Portugal às ComunidadesEuropeias foi essencialmente determinada por duas categorias de motivações: a primeira, mais imediata, reflectia a preocupação de definir um enquadramento favorável à consolidação e estabilização do regime democrático. A segunda, mais profunda, exprimia a necessidade de reorganizar a inserção internacional de Portugal e da economia portuguesa, cujos termos de referência haviam sido radicalmente alterados a partir do início da década de 70, com a progressiva concentração do comércio externo nos mercados comunitários, a adesão do Reino Unido à Comunidade Europeia, a descolonização africana e a tendência para o alargamento da Comunidade aos países do Sul da Europa, que iria mudar, inelutavelmente, as condições do relacionamento com Espanha.

Estes princípios continuam válidos: a integração europeia confere a Portugal uma capacidade de afirmação externa proporcionalmente superior à sua dimensão como potência e permite-lhe aceder a meios de desenvolvimento que dificilmente poderiam ser reunidos noutras condições, através de uma ligação directa aos centros da vida europeia, no plano económico, mas também cultural e científico. A integração europeia era — e continua a ser — a resposta que melhor garante a defesa dos nossos mercados externos, a protecção das comunidades emigrantes e as condições de um desenvolvimento sustentado, reforçando o nosso sistema político-constitucional, os nossos compromissos internacionais em matéria de segurança e os interesses autónomos de que não queremos abdicar, nomeadamente no âmbito da cooperação com os países de língua portuguesa.

A opção europeia deve pois manter-se como a prioridade das prioridades, não pela ausência de alternativas, mas como escolha positiva e convicta. A Europa tem de ser defendida porque representa a melhor garantia para o futuro de Portugal e não como o caminho resignado de quem não tem por onde ir.

É certo que a Europa tem custos, com expressiva incidência em alguns sectores. É inútil ignorá-los e necessário encará-los com realismo e determinação. Muitos desses custos são no entanto consequência de mudanças estruturais que a globalização económica acabaria por impor em piores circunstâncias. Para Portugal, e para a maioria dos seus parceiros comunitários, os custos da Europa são indiscutivelmente inferiores aos custos da não-
-Europa.

Portugal não pode adoptar uma posição passiva ou conformista no processo de construção europeia, definindo-se casuisticamente em função das estratégias de terceiros. Terminada a fase de transição e adaptação, Portugal tem de demonstrar a sua maturidade assumindo os desafios da União Económica e Monetária e do alargamento e protegendo com firmeza os seus interesses na definição da nova estrutura político-institucional que deverá resultar da revisão do Tratado de Maastricht.

Portugal tem de adoptar uma visão própria do processo de construção europeia, orientada pela natureza e especificidade dos seus interesses estratégicos. Tem de constituir-se como parceiro pleno, que aceita os desafiosmais complexos, mas que não abdica, em contrapartida, de exigir condições de ajustamento equilibradas e de rejeitar sacrifícios inúteis ou injustificados, que acabam por ter um contributo negativo para a convergência real e nominal.

Portugal tem de saber gerir um processo de negociação permanente, e de preparar-se para situações de tensão e de minoria. Não pode resignar-se a uma eventual redução dos fundos estruturais, a efeitos perversos da Política Agrícola Comum ou aos reflexos negativos dos acordos comunitários multilaterais. A reforma político-institucional, a aplicação das políticas sectoriais e o alargamento não podem fazer-se sobretudo à custa dos interesses dos actuais Estados membros. Têm de ser negociados, em função de objectivos precisos e de uma visão clara sobre a evolução futura da União Europeia.

Para ser um parceiro exigente, Portugal tem de ser também, na frente interna, um parceiro mais informado e melhor preparado. É fundamental, por isso, que a questão europeia ocupe um efectivo papel central na vida política nacional e venha a ser objecto de mais concertação, mais informação e mais debate em todas as instâncias de decisão, para que possa tornar-se também mais mobilizadora e menos atreita a apelos puramente emocionais.

A integração europeia e o projecto de modernização que lhe está associado exigem reformas profundas, com consequências complexas e nem sempre fáceis de aceitar no plano mais imediato.

A dificuldade da mudança não deve limitar o seu alcance, mas obriga-nos a exigir que seja organizada com equidade, justiça social e sentido nacional. Para cada problema raramente existe apenas uma solução. Por isso é preciso que as propostas sejam democraticamente analisadas e debatidas, no respeito pelas responsabilidades e poderes de cada instância de decisão; e é preciso que os esforços necessários sejam equilibradamente repartidos para que não se perca internamente a coesão social que justamente se reclama como objectivo primordial no plano europeu.