Sessão de Encerramento do Seminário sobre as Relações Luso-Espanholas

Universidade Autónoma de Lisboa
29 de Novembro de 1996


As relações entre Estados vizinhos revestem aspectos particulares e impõem responsabilidades específicas na gestão dos interesses comuns, por forma a permitir fazer face, de modo eficaz, às questões e aos desafios que essa própria vizinhança convoca.
Mas impõem, sobretudo, um reforço do conhecimento mútuo, abertura aos diferentes modos de sentir e pensar, às perspectivas diferenciadas que uma mesma questão poderá suscitar, às diversas maneiras de encarar o futuro e de concretizar as aspirações legitimas de progresso e bem-estar das nossas sociedades. Impõem, em suma, diálogo franco, confiança recíproca, colaboração permanente.

Tenho sempre procurado contribuir para o aprofundamento constante do diálogo entre Espanha e Portugal; não apenas o aprofundamento do diálogo entre governantes de um e outro país, a concertarão indispensável de políticas, a colaboração efectiva entre os dois Estados. Mas também o reforço do diálogo entre representantes da sociedade civil dos dois países — investigadores, jornalistas, criadores culturais, cientistas — e entre estes e os responsáveis políticos. Trata-se, para mim, de uma convicção profunda, que tem orientado a minha acção como cidadão e como político.

Por estas razões, é com especial agrado que me associo a este seminário que, em boa hora, a Universidade Autónoma de Lisboa decidiu organizar e que contou com a participação de tantas personalidades de grande relevo, quer espanholas, quer portuguesas.

É minha convicção que iniciativas deste tipo representam um poderoso estímulo para se lograr uma maior convergência de percepções sobre grandes temas de actualidade que a todos dizem respeito. Tal não supõe, todavia, a anulação das diferenças existentes, alimentando falsos consensos de circunstância.

Se queremos efectivamente acreditar — e eu acredito sinceramente — que estamos a atravessar um novo ciclo nas relações luso-espanholas, teremos de adoptar um discurso franco, aberto, crítico e rigoroso. Só assim poderemos lançar bases sólidas sobre as quais cimentar um futuro de verdadeiro entendimento naquilo que é essencial. Neste sentido, esta Conferência terá constituído uma prova cabal de que estamos no bom caminho.

O longo ciclo histórico em que ambos os países estiveram submetidos a regimes ditatoriais correspondeu a um período de aparentes boas relações luso-espanholas, assente num entendimento mínimo, feito de certas afinidades ideológicas, algumas cumplicidades de conveniência e não poucos equívocos. Foi também um tempo de acentuado desconhecimento mútuo, compensado através da retórica que sobressaía dos discursos oficiais.

Todavia, não foi possível silenciar, sobretudo no plano da Cultura, aquilo que Natália Correia designava como o inalienável direito das profundidades. Miguel Torga foi disso um exemplo, mostrando de forma admirável que a afirmação de uma forte identidade nacional portuguesa não supõe a negação do que nela a aproxima de outras culturas e povos, nomeadamente da Espanha.

É por a cultura constituir, por definição, um espaço de diálogo e liberdade, de criação e imaginação, onde não cabem preconceitos, que aqui evoquei Miguel Torga; um escritor distinguido com o Prémio Camões cujo pseudónimo literário é, como o próprio explicou, uma homenagem a Miguel de Cervantes e a Miguel de Unamuno.

A institucionalização da democracia pluralista em Espanha e Portugal permitiu aos dois países romper o isolamento a que estiveram votados durante décadas e recuperar o seu lugar natural entre os Estados europeus. Ao mesmo tempo, imprimiu renovado fôlego às nossas relações bilaterais, que passaram a ser conduzidos de forma mais consistente, libertas dos preconceitos e das barreiras psicológicas que antes as entorpeciam. Não voltámos à Europa, como naquela altura se dizia, porque nela sempre nos inserimos geográfica e culturalmente; mas passámos a ter a possibilidade de participar de forma activa no processo de construção europeia, afirmando, em muitas matérias, uma sensibilidade própria. Exemplo disso tem sido a contribuição dos nossos dois países para a definição das políticas da União Europeia em relação ao Mediterrâneo, à América Latina e a África.

Na União Europeia, Espanha e Portugal têm partilhado perspectivas idênticas a respeito de muitas questões essenciais. Ambos os países têm sustentado que o aprofundamento e o alargamento constituem um duplo desafio que não podemos recusar. Para lhe responder de forma eficaz, a União Europeia deverá consolidar a sua capacidade de acção internacional, quer através da moeda única, quer mediante o desenvolvimento de uma efectiva política externa e de segurança comum, abrindo, ao mesmo tempo, as suas portas às jovens democracias da Europa Central e Oriental.

Entendemos ainda que o aprofundamento da construção europeia não poderá concretizar-se plenamente enquanto não forem atenuadas as assimetrias existentes em termos de desenvolvimento. Para o conseguir, importará manter vivo o espírito de solidariedade que está subjacente às políticas de coesão e desenvolvimento regional. Só assim poderá devolver-se aos cidadãos, que — não é de mais lembrá-lo — são a razão de ser do projecto de construção europeia como de qualquer política, a possibilidade de se reverem numa Europa mais próspera, mais forte e mais coesa.

O conjunto de interesses comuns que a nossa vizinhança suscita tem vindo a exigir esforços conjuntos para uma gestão mais equilibrada dos nossos recursos, procurando convergências, coordenando políticas e identificando áreas de cooperação na defesa de acções com incidência nos dois países, nomeadamente em sectores estratégicos para o desenvolvimento como são os transportes, as comunicações e a energia.

Muito foi feito já neste sentido, tendo o quadro comunitário em que nos inserimos facilitado um significativo aumento das nossas trocas comerciais, do investimento recíproco e da cooperação industrial. Mas persistem ainda obstáculos em alguns destes sectores. Tudo o que se fizer para os eliminar contribuirá certamente para a criação de um clima mais construtivo no nosso relacionamento económico, acentuando a igualdade de oportunidades e as vantagens comparativas dos nossos investidores num mercado comum que cobre toda a geografia peninsular.

O empenho conjunto na construção da Europa, a pertença de ambos os países à Aliança Atlântica, assentes na firme confiança na nossa capacidade de contribuir para forjar um futuro em que valores como a paz, solidariedade e desenvolvimento sejam realidades concretas, mudaram significativamente o quadro das relações entre Espanha e Portugal.

A exemplar participação conjunta de soldados portugueses e espanhóis na missão de paz na Bósnia, onde, de alguma maneira, está em causa o sentido da evolução da Europa, constitui um alto exemplo de um são relacionamento entre os nossos dois países, baseado na partilha de idênticos valores.

O clima de suspeição e desconfiança que existiu sob as ditaduras foi, assim, definitivamente superado, ao mesmo tempo que a tradicional indiferença recíproca deu lugar a um genuíno interesse mútuo, o que se traduziu, por exemplo, no aprofundamento das trocas culturais entre os dois países. Não só Fernando Pessoa, mas também Rafael Moneo, Siza Vieira, Santiago Calatrava, José Saramago, Pedro Almodóvar, Manoel de Oliveira, Torrente Ballester, Antonio Muñoz Molina e tantos outros são hoje nomes quase tão conhecidos num país quanto noutro, contribuindo para a imagem de modernidade que cada uma das nossas culturas tem projectado externamente.

A Cultura, tal como a política, não pode ser encarada como uma competição, mas sim como um espaço de liberdade aberto à capacidade criativa e ao engenho dos agentes que nela intervêm. É imbuídos desse espírito que, Espanhóis e Portugueses, deveremos continuar a trabalhar.

Hoje, poucos duvidam já de que o único caminho para estruturar as relações luso-espanholas numa base realista e profícua passa pelo aprofundamento contínuo do diálogo a todos os níveis. É isso que é normal acontecer entre dois países vizinhos que mantêm entre si importantes laços históricos e culturais, complementaridades evidentes, a necessidade de gerirem em comum matérias importantes, além de partilharem uma antiga experiência, de abertura e contactos com outros povos e culturas.

Estamos, de facto, a atravessar uma nova era nas relações entre os nossos dois países. A esta nova era corresponde uma nova geração de espanhóis e portugueses, formada em democracia, liberta de preconceitos e confiante na nossa capacidade para enfrentar em conjunto os desafios que impõe a modernidade. São esses que nos exigem uma relação normal e franca entre os nossos dois Estados, em que a defesa dos interesses recíprocos se realize num quadro de cooperação, sem tabus inúteis.

Minhas Senhoras e meus Senhores, aflorei, na minha intervenção, alguns dos temas que aqui foram discutidos com rigor e inteligência, permitindo um útil debate de ideias. A quantos participaram neste ciclo de conferências e à Universidade Autónoma de Lisboa, que o organizou, quero, por isso, dirigir as minhas sinceras felicitações.