Sessão Solene de Abertura da Cimeira Constitutiva da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa

Centro Cultural de Belém
17 de Julho de 1996


Este dia, em que se institucionaliza a Comunidade dos Países de Língua Portuguesa, ficará nas nossas histórias como um marco fundamental nos caminhos que percorremos e que desejamos projectar no futuro, conscientes do que queremos ser e fazer em conjunto.
Actualizamos uma convivência secular, que teve luzes e sombras, mas que hoje podemos assumir integralmente e sem complexos. Ficou-nos desse longo convívio a língua comum, o entendimento mútuo e o afecto que une e torna tão fácil a compreensão.

Reencontramo-nos, hoje, solenemente porque queremos assumir, em termos modernos, o dever e a responsabilidade de valorizarmos o que temos em comum e nos pode acrescentar. Este acto traduz, aliás, no plano jurídico-formal, uma vontade permanente manifestada, sob diversas formas, pelos nossos povos.

O mundo multipolar do nosso tempo vive da afirmação dos grandes conjuntos — não apenas económicos e militares, mas também linguísticos e culturais. As prodigiosas tecnologias de comunicação vencem as descontinuidades geográficas e tornam esses conjuntos cada vez mais sólidos, coesos e operativos.

Os países impõem-se hoje pelo peso da língua, pela riqueza cultural, pela capacidade de investigar e criar ciência, de realizar obra, de inovar, de aprender e de divulgar.

A esta luz, a Comunidade que hoje se constitui apresenta imensas potencialidades e múltiplos desafios. Somos 200 milhões de seres humanos, dispersos pelos vários continentes. Falamos uma língua na qual se expressam culturas tão ricas e tão variadas experiências do Mundo. Inserimo-nos, cada um de nós, em organizações supranacionais e regionais, poderosas e diversificadas. Tudo isto será, a partir de agora e porque constituímos a Comunidade, potenciado, enriquecido, valorizado. O nosso peso nas organizações que já integramos só sairá reforçado. A experiência mostra-nos isso mesmo.

Não queremos, porém, fundar a Comunidade em ilusões que o tempo desfaz, sobreavaliando as nossas possibilidades. Sabemos que, num passado recente, houve dificuldades, que a cooperação não foi tão longe quanto devia. Não ignoramos que os meios e os recursos que possuímos são limitados. Temos consciência de que, apesar da boa vontade e trabalho de muitos, ainda não foi possível avançarmos decisivamente numa estratégia comum, activa, eficaz e global, de defesa e projecção da língua.

Mas sabemos também que, face aos obstáculos, a única alternativa digna de nós é resolvê-los e ultrapassá-los, com persistência, flexibilidade, lucidez, ousadia. É por isso e para isso que nasce a Comunidade dos Países de Língua Portuguesa.

Só ela poderá criar uma dinâmica própria e fazer-nos avançar, vencendo as dificuldades, enfrentando-as sem preconceitos, sem modelos preconcebidos ou sem tentações hegemónicas. O património que temos pertence a todos e todos o devemos enriquecer. As regras são claras: igualdade, solidariedade, respeito mútuo. Não esquecendo que esta Comunidade é marcada pelo nosso modo de concebermos o universalismo.

O colapso do sistema bipolar, que conhecemos durante décadas, foi acompanhado de extensas e rápidas mudanças, entre as quais o aumento da competitividade sem limites. Tudo isto teve reflexos muito negativos para o diálogo Norte-Sul e o esforço de ajuda pública ao desenvolvimento, que não tem sido feito, como devia, com consequências muito preocupantes para o futuro dos países mais carecidos.

Esta Comunidade assenta numa lógica que contraria essa escalada de egoísmos sem princípios. Funda-se na solidariedade, no humanismo universalista e na defesa dos grandes princípios da Democracia e do Estado de Direito, do Desenvolvimento e
da Justiça Social, dos Direitos Humanos, da Tolerância, do Pluralismo, da Paz e da Defesa dos Recursos Naturais da Humanidade. O futuro que queremos melhor para todos não pode construir-se segundo os critérios estreitos do imediatismo interesseiro e calculista. Precisa de valores e de ideais.

Com esta convicção profunda e com a vontade que lhe dá força e consequência, temos de saber afirmar a Comunidade no Mundo. Ela constituirá, se quisermos, um meio importante de projecção da língua, um factor de valorização dos nossos recursos económicos e estratégicos e de captação de interesses e iniciativas. Constituirá certamente também um instrumento de concertação político-diplomático, designadamente em questões face às quais existem diversas sensibilidades dos nossos países. Quanto mais coesos mais fortes, mas sabendo que a coesão se constrói na diversidade.

Esta cimeira representa, por isso, uma manifestação da confiança em nós próprios e de uns nos outros. A circunstância de, paralelamente, ter dado ocasião a uma série de tão valiosos acontecimentos é também um motivo de esperança. Significa que as iniciativas surgem e desenvolvem-se quando há um clima de expectativa e mobilização. É esse o caminho que temos de prosseguir, incentivando a cooperação em todos os domínios, nomeadamente nos da modernidade económica, cultural e científica.

Senhores Presidentes,

Ilustres Autoridades,

A construção de uma Comunidade não se confina à sua institucionalização e ao funcionamento dos seus órgãos. Representa um acto de afirmação diária de pertença e partilha de benefícios e responsabilidades.

Significa que qualquer de nós se sente em casa, qualquer que seja o país da Comunidade onde se encontre. Quer dizer que estabelecemos um compromisso de fraternidade. É preciso, para tanto, que os nossos Povos e Países sintam este projecto como de cada um e de todos. É indispensável que os jovens o façam seu, lhe dêem a sua energia e a sua insatisfação. É imprescindível que as mulheres e homens de cultura dos nossos países lhe dêem o seu contributo insubstituível de criatividade. A língua que falamos é a língua de Carlos Drumond de Andrade, de Fernando Pessoa, de Baltasar Lopes. São os escritores que a recriam, alargam e voltam para a frente.

No momento em que nos assumimos como Comunidade e em que saúdo os digníssimos representantes dos países que a integram, quero dirigir-me ao Povo de Timor-Leste, ausente deste acto fundador, mas presente pela nossa atitude de permanente solidariedade.

Portugal não tem quaisquer objectivos egoístas em Timor-Leste. Temos um único propósito: pôr fim à violação dos direitos dos Timorenses e garantir o livre exercício do seu direito à autodeterminação e à sua identidade cultural e religiosa.

Pela nossa parte, continuaremos a defender o respeito pelos direitos da comunidade timorense à sua autodeterminação, designadamente através do cumprimento do mandato do Secretário-Geral das Nações Unidas para garantir uma solução justa e internacionalmente aceite para Timor-Leste.

O que está em jogo em Timor-Leste são os valores da democracia e da paz, valores essenciais proclamados na carta fundadora da Comunidade dos Países de Língua Oficial Portuguesa. Por tudo isso, e mais, ainda, pelos vínculos estreitos e particulares que unem todos os Povos de Língua Portuguesa, quero apelar, neste momento solene, à vossa solidariedade activa para com esta causa.

Lembramos também as nossas Comunidades que vivem noutros Países e aqueles que estudam a nossa língua e as nossas culturas. Todos eles pertencem também à Comunidade dos Países de Lingua Portuguesa.

Meus Amigos,

Uma língua não é apenas um meio de comunicação ou um instrumento de política externa. Uma língua forma-nos a visão do Mundo e é nela que expressamos a dor, o protesto, a esperança, a amizade, o amor. A língua une e identifica.

Vergílio Ferreira, Prémio Camões, disse: «Da nossa Língua vê-se o mar e ouve-se o seu rumor.» Esse mar que nos fez encontrar um dia e que alarga o horizonte à medida da esperança que aqui nos reúne e do afecto que liga os nossos Povos.