Cerimónia de Apresentação pelo Corpo Diplomático de Votos de Ano Novo

Palácio Nacional de Queluz
07 de Janeiro de 1997


Desejo agradecer-lhe, antes de mais, Senhor Núncio Apostólico, os amáveis votos que, em nome do Corpo Diplomático acreditado em Lisboa, teve a gentileza de me endereçar e, por meu intermédio, ao Povo e ao Governo portugueses.
São votos que muito me penhoram e que retribuo com todo o gosto, pedindo a todos os Chefes de Missão aqui presentes que transmitam aos seus Chefes de Estado, aos seus Governos e ao Povos que tão dignamente representam, os meus sinceros votos de paz, de prosperidade e de bem-estar pessoal neste novo Ano.

O ano que se encerra foi fértil em acontecimentos internacionais, muitos deles acalentadores das esperanças que todos legitimamente depositam num futuro mais fraterno, mais justo e mais próspero, outros infelizmente marcados pela dor, pela miséria, pelo ódio e pela injustiça que continuam a estigmatizar a Humanidade.

Para além da guerra, dos conflitos étnicos que ameaçam submergir regiões inteiras do Globo, continuamos a deparar, como tão bem o disse o Santo Padre na sua inspiradora mensagem para o Dia Mundial da Paz que celebrámos há poucos dias, «com tantas pessoas (cito) confinadas na sua solidão interior», enquanto «outras continuam a ser voluntariamente discriminadas por causa da raça, da nacionalidade ou do sexo, enquanto a pobreza lança multidões inteiras para as margens da sociedade, ou mesmo para o aniquilamento» (fim de citação).

A Humanidade continua a debater-se com o aprofundamento intolerável do fosso entre os ricos e os pobres, com a miséria, com o ódio, com a discriminação e com a guerra. Mesmo dentro das sociedades consideradas desenvolvidas assistimos a terríveis fenómenos de exclusão social que ameaçam a coesão interna dessas mesmas sociedades e os fundamentos democráticos em que assenta a sua organização política.

Aproximamo-nos, a grandes passos, do terceiro milénio. A última década foi marcada por profundas alterações dos equilíbrios internacionais e os novos contornos da arquitectura mundial são ainda difíceis de discernir, quando não mesmo marcados por profundas contradições.

Dir-se-ia que nos procuramos enquanto Humanidade; procuramos a estabilidade e a paz, o verdadeiro concerto entre a família das Nações baseado na justiça e na solidariedade; procuramos as formas de pôr fim à fome e à doença; procuramos acabar com conflitos que duram há décadas, suster as intermináveis linhas de refugiados; procuramos acorrer àqueles que, mesmo a nosso lado, sofrem na carne o flagelo da droga, a miséria e a exclusão; queremos dizer basta às opressões antigas e brutais, assim como pôr cobro às suas novas formas, porventura mais subtis mas, de igual modo, destruidoras da liberdade e da criatividade humana; queremos avançar decididamente na defesa do património cultural e dos recursos ecológicos, garantir uma melhor partilha da riqueza e o acesso ao progresso económico e social, proteger garantias que têm de se adaptar ao novo contexto de globalização económica e de perda de competitividade, promover o emprego, abordar com rigor o novo papel da Ciência, combater eficazmente o crime que se organiza à escala mundial, tal como reagir sem concessões à intolerância, ao fanatismo, à xenofobia e à violência.

Excelências,

Para a Europa, 1997 será um ano em que deverão ser tomadas decisões particularmente importantes no que toca o aprofundamento do projecto europeu a que estamos indissociavelmente ligados e no qual Portugal está empenhado sem reservas.

São decisões que têm a ver com o alargamento da União Europeia e da Nato, com as reformas indispensáveis para assegurar a eficácia dos mecanismos previstos nos Tratados, com a credibilidade das instituições europeias, com a União Económica e Monetária, com a presença da Europa no Mundo, com o reforço das dimensões de solidariedade e de coesão inerentes ao projecto europeu, um projecto que terá de continuar a ser aberto, democrático e crescentemente participado; um projecto político, social e cultural em que todos os europeus se reconheçam e a que todos adiram.

A resposta a estes desafios terá de se basear, necessariamente, nos valores da liberdade, da tolerância, do diálogo, da justiça, do respeito pelos direitos humanos, da solidariedade entre os indivíduos e os povos. Na base destes princípios saberemos, estou certo, encontrar as respostas adequadas.

Senhor Núncio Apostólico,

Senhores Embaixadores e Chefes de Missão,

O ano que findou, apesar dos aspectos negativos que comportou — a persistência de antigos conflitos, o ressurgimento de novas tensões e de novas guerras, manifestações de violência de toda a ordem, epidemias e misérias — ficou também assinalado, em Portugal e no Mundo, por aspectos positivos que gostaria aqui de sublinhar.

É encorajador ver, permitam-me que o diga, a determinação com que, quer os povos da Europa Central e de Leste, quer os povos da América Latina, prosseguem as grandes reformas das suas sociedades, possibilitadas pelo fim dos regimes ditatoriais, ancorando-as definitivamente em modelos de progresso assentes na democracia e no Estado de Direito. Mau grado todas as dificuldades compreensíveis, também a Rússia continua a levar a cabo uma gigantesca obra de reforma das suas instituições e da sua organização económica.

As aspirações legítimas dos países da Europa Central e Oriental de participarem plenamente nas diversas estruturas de integração europeia, de disfrutarem de um maior progresso e estabilidade, não poderão ser defraudadas. Sem pretender diminuir as dificuldades nem negar a complexidade destes processos, está em causa a nossa capacidade para realizar a unidade das democracias europeias, cuja consolidação é a trave da paz, da segurança e do progresso do nosso continente.

De igual modo, a oportunidade única aberta pelo fim da divisão da Europa ficaria comprometida se não forem instituídas as medidas indispensáveis à associação plena da Rússia e da Ucrânia a um quadro de segurança europeia que respeite os seus interesses legítimos; não será por de mais sublinhar a importância desta questão e a necessidade de encontrar, para ela, uma resposta adequada.

Na Bósnia, assistimos à primeira fase de implementação dos acordos negociados em Dayton e formalizados em Paris; o balanço que fazemos desta experiência é, sem dúvida, positivo; foi nomeadamente possível levar a cabo eleições para as instituições federadas e comuns e abrir caminho para a criação do quadro institucional previsto nos acordos de paz. Mas não desapareceram, ainda, os espectros latentes do conflito, tal como não houve ainda uma clara demonstração da vontade das partes de conviverem pacificamente, fazendo desaparecer as sequelas da guerra, permitindo reconstruir o país e facilitando o regresso dos refugiados.

Na África Austral, assistimos igualmente à consolidação dos processos de transição democrática e de pacificação interna; é nomeadamente este o caso em Moçambique e na República da África do Sul. Também em Angola existem sinais de que as partes respeitarão o espírito e a letra dos acordos de paz, pondo assim, finalmente, termo a um longo conflito fratricida; Portugal não deixará de continuar a empenhar-se para que a paz e a concórdia sejam uma realidade neste martirizado país a que tanto nos une. Infelizmente, estes passos positivos foram ensombrados pela tragédia que presentemente se vive na região dos Grandes Lagos, que ameaça a estabilidade do subcontinente e que preocupa, legitimamente, a comunidade internacional. Faço sinceros votos para que esta dramática situação possa encontrar, com toda a brevidade, a solução política indispensável à resolução deste conflito e ao regresso aos seus países de tantos milhares de vítimas inocentes.

O processo de paz no Médio Oriente encontra-se, aparentemente, num impasse, o que justifica a preocupação legítima de quantos defendem o direito à paz de todos os povos daquela região.

Mas creio firmemente que o processo iniciado em Oslo é irreversível e confio que as vias da reconciliação e da convivência pacífica se imporão aos responsáveis políticos israelitas e palestinianos, invertendo definitivamente a escalada da violência e da rejeição, permitindo reencontrar a esperança e construir a paz.

A Bacia Mediterrânica é um todo cuja estabilidade afecta a própria estabilidade da Europa; a geografia e a História criaram laços indissolúveis entre as duas margens deste mar comum, que desenvolvem, entre si, formas originais de cooperação demonstrativas da solidariedade que entre elas não poderá deixar de existir. Regozijo-me pelo dinamismo do processo de Barcelona e faço votos de que o próximo ano conheça um novo reforço do diá logo e da concertação entre os países que nele participam, por forma a consolidar um vasto espaço de estabilidade, de paz e de solidariedade, aberto ao progresso e ao bem-estar de todos.

Registamos, também com especial agrado, o extraordinário desenvolvimento económico que continua a verificar-se no Extremo Oriente, garantia de um acesso crescente de uma parte significativa da população mundial ao progresso económico e social, condição indispensável para a paz, para a estabilidade e para a consolidação dos princípios democráticos nesta tão importante e vasta região do globo. Farei, já no próximo mês, uma visita de Estado à República Popular da China e é com toda a sinceridade que refiro o meu grande prazer em poder inteirar-
-me, pessoalmente, dos assinaláveis progressos que esta grande potência mundial registou nos últimos anos, bem como avistar--me com os seus dirigentes e discutir com eles um vasto leque de interesses e preocupações comuns.

O ano de 1996 ficou assinalado, para a política externa portuguesa, por alguns factos particularmente significativos, de que legitimamente nos orgulhamos.

Antes de mais, gostaria de mencionar a eleição de Portugal para o Conselho de Segurança; uma eleição que, se reitera a confiança em nós depositada pela Comunidade Internacional, exigirá de Portugal uma responsabilidade e um rigor acrescidos na sua acção internacional; estou certo de que a nossa acção nessa instância será pautada por estes princípios e que saberemos, assim, corresponder a esta nova prova de confiança.

Correspondendo ao desejo livremente expresso dos seus países fundadores, foi institucionalizada, no ano transacto, em Lisboa, a Comunidade dos Países de Língua Portuguesa. Os países que se expressam em português dispõem, doravante, de um instrumento original e flexível de concertação entre si, de defesa mais eficaz dos seus interesses nas instâncias internacionais, de maximização das oportunidades de desenvolvimento e de progresso. Tratava-se de um sonho antigo, a que todos os seus membros terão de dar a dinâmica que o desafio exige; mas os primeiros resultados são já palpáveis e, estou convicto, encontraremos nesta sede mais uma instância de reforço permanente da nossa cooperação.

Lisboa foi também palco da Cimeira da Organização para a Segurança e a Cooperação na Europa, um evento particularmente importante, não valerá a pena sublinhá-lo, para o reforço das condições de confiança mútua, de estabilidade e de paz no velho continente. A OSCE continua a constituir um quadro único para desenvolver uma segurança cooperativa entre todos os Estados europeus, os Estados Unidos e o Canadá, onde todos podem tratar, em pé de igualdade, dos problemas que afectam a segurança e a estabilidade comuns.

Espero que se possa dar, desde já, um impulso decisivo aos trabalhos destinados a adaptar o Tratado sobre as Forças Armadas Convencionais na Europa e que a Organização encontre novas formas que lhe permitam aumentar a sua eficácia face às múltiplas e crescentes responsabilidades que lhe são confiadas.

No quadro multilateral, tive igualmente a ocasião de participar, com o Senhor Primeiro-Ministro, na VI Cimeira Ibero-Americana que decorreu em Santiago do Chile, e de constatar pessoalmente a vitalidade deste quadro de concertação euro-americano que é chamado a assumir um papel crescente no estreitamento de uma cooperação profícua entre os dois continentes.

Em termos bilaterais, permitam-me que recorde a visita de Estado que efectuei a Espanha, logo após a minha entrada em funções, e de que guardo uma emocionada e viva recordação; sem falsas modéstias, creio que esta visita contribuiu para reforçar conhecimentos pessoais, para permitir uma maior convergência de percepções sobre problemas de interesse comum, para aprofundar constantemente o diálogo a todos os níveis entre os dois países e a concertação das nossas políticas, por forma a consolidar uma colaboração cada vez mais efectiva entre os dois Estados vizinhos.

Também tive a grata oportunidade de visitar Cabo Verde, país irmão a quem nos une uma História multissecular comum e interesses mútuos muito concretos; esta visita ilustrou, escassas semanas depois de ter tomado posse, a prioridade intransponível que para nós assume o relacionamento solidário com os países de língua oficial portuguesa. Neste sentido, saliento igualmente a visita de Estado que Sua Excelência o Presidente da República da Guiné-Bissau efectuou a Portugal e que permitiu, igualmente, reforçar o entendimento estreito e a cooperação entre os nossos dois países.

Visitarei, ainda neste primeiro semestre, a República de Moçambique, a que me ligam, pessoalmente, recordações muito específicas; antevejo com particular agrado a oportunidade que me será dada de rever o país, de contactar com a sua população, de discutir com o Presidente Chissano e com outros responsáveis políticos moçambicanos uma vasta gama de interesses comuns, de procurar formas acrescidas de aprofundarmos a nossa cooperação.

Pelo seu significado simbólico gostaria de referir ainda a minha deslocação a Estrasburgo, por ocasião do 20.º aniversário da adesão de Portugal ao Conselho da Europa. O apoio que recebemos do Conselho, logo após a revolução de 25 de Abril de 1974, foi decisivo numa época em que se construía a democracia portuguesa e prefigurou a cooperação tão profícua que o Conselho tem vindo a estabelecer com as novas democracias do Centro e do Leste europeus. Hoje, como então, o Conselho da Europa continua a ser a instituição que melhor simboliza a Europa dos princípios e dos valores e a referência emblemática da vivência democrática europeia.

Mas o ano que passou ficará, sobretudo, assinalado pela atribuição do Prémio Nobel da Paz a Dom Ximenes Belo, Bispo de Díli, e a Ramos Horta, dirigente da resistência timorense. Culminando com a emocionante cerimónia em Oslo, esta atribuição demonstra, de um modo particularmente eloquente, que a perseverança na defesa do que é justo acaba sempre por ter frutos, apesar de todas as pressões e dificuldades.

Conheceis, Excelências, a nossa posição nesta matéria; apenas nos move a defesa do direito do Povo de Timor-Leste à autodeterminação, tal como a denúncia das intoleráveis e permanentes violações dos direitos humanos a que a Indonésia o submete. Trata-se de uma posição de princípio e de rigor. Continuaremos, assim, a não poupar esforços para que o Povo de Timor-
-Leste possa exercer, livre e democraticamente, o seu direito à autodeterminação, permitindo, deste modo, avançar na procura de uma solução política justa e internacionalmente reconhecida para esta dramática questão.

Excelência Reverendíssima,

Senhores Embaixadores e Chefes de Missão,

Aproximamo-nos a passos rápidos, como há pouco dizia, do terceiro milénio. Os próximos anos surgem-nos como plenos de incertezas e de dúvidas. Procuramos novas formas de organizar o Mundo em termos que garantam a paz, a estabilidade e o progresso. Não nego o gigantismo da tarefa, mas estou confiante de que conseguiremos levar o barco a bom porto.

Estou confiante porque sempre o Homem demonstrou dispor de uma ilimitada capacidade para progredir, para encontrar soluções para os velhos e novos problemas. E estou confiante por que não duvido da força da razão e da justiça. Será no aprofundamento dos valores humanistas, na liberdade e na tolerância, no diálogo entre povos e culturas, no respeito pela diferença, que encontraremos as vias seguras para fazer face aos desafios que se nos colocam.

As nossas sociedades terão de ser mais abertas e participadas, mais fraternas e politicamente enriquecidas pelo contributo de todos; não poderemos ficar indiferentes à exclusão e à marginalização, às crescentes assimetrias e desigualdades entre países e no seio de cada país; a solidariedade não poderá permanecer uma palavra vã; o progresso e o bem-estar não poderão continuar a ser o apanágio de uns tantos enquanto a fome e a doença, a miséria física e psíquica, continuam a ser o dia-a-dia da maioria.

Como tão bem disse o Santo Padre, «é tempo de nos decidirmos a empreender, juntos e de ânimo firme, uma verdadeira peregrinação da paz, cada qual a partir da situação concreta em que se encontra».

É com esta esperança e esta certeza que vos renovo, Excelências, os votos de um bom Ano Novo, um ano de paz e de progresso para os vossos povos e de bem-estar pessoal para os Chefes de Estado que representais.