Sessão de Encerramento do Seminário Internacional «O Futuro das Relações entre as Áreas de Integração Regional no Século XXI»

Universidade de Macau
19 de Fevereiro de 1997


Tive muito prazer em aceitar o amável convite que o director do Instituto de Estudos Estratégicos e Internacionais e o presidente da Fundação Macau me quiseram dirigir para encerrar o seminário internacional sobre «O futuro das relações entre as áreas de integração regional no século xxi».
Considero muito oportuna esta iniciativa, e tanto mais interessante pelas afinidades entre o tema, tão actual, das relações entre os espaços regionais emergentes e a vocação natural de Macau, verdadeiro paradigma do cruzamento entre civilizações. A Universidade de Macau no centro de tudo isto é importante. No relacionamento entre a Universidade, as empresas e os estudantes.

O fim da guerra fria abriu um período de transição e de mudança profunda na política internacional. Para trás, ficou um século de extremos, marcado por guerras e revoluções de uma violência inédita, bem como pela irradiação sem precedentes dos valores humanistas da liberdade e da democracia, por fluxos dinâmicos de desenvolvimento, que acentuaram as relações de interdependência económica, e pela difusão das comunicações, cujo resultado é uma interpenetração cultural, cada vez mais forte e sem fronteiras.

Para trás ficou também um regime bipolar, dominado pela oposição entre duas grandes potências internacionais, separadas tanto pelas paixões ideológicas como pela rivalidade dos interesses, tal como a diplomacia triangular, o jogo de equilíbrios entre os Estados Unidos, a União Soviética e a China, no qual a guerra fria se desdobrava para incluir o conflito entre as duas principais potências comunistas.

Durante 40 anos, a guerra fria determinou os equilíbrios estratégicos, designadamente na Europa e na Ásia, limitando severamente a autonomia política dos Estados europeus e asiáticos, e condicionando o seu estatuto internacional.

Entre a revolução na Europa de Leste, a unificação da Alemanha e o fim da União Soviética, tudo mudou. A estabilidade aparente da guerra fria deu lugar a um processo de transição, marcado, como é natural, por fortes incertezas, que está longe de terminar.

Em todo o caso, podem constatar-se, desde já, certas tendências de evolução no pós-guerra fria, que indicam caminhos futuros possíveis, na procura de uma fórmula de restruturação dos equilíbrios internacionais, ou de um modelo de ordem internacional.

As antigas clivagens bipolares e os afrontamentos ideológicos do passado parecem ter dado lugar, por um lado, a uma tendência para a descentralização do poder internacional e, por outro lado, a uma tensão entre dinâmicas de integração e de desintegração.

A descentralização do poder nas relações internacionais torna possível a transição para um regime multipolar, a par da emergência de entidades regionais autónomas na Europa, na América do Norte e do Sul, ou na Ásia Oriental. A tensão entre integração e desintegração é mais difusa, e não só caracteriza o processo de consolidação ou de constituição dos principais espaços regionais, como se reproduz dentro dos próprios Estados.

A multiplicação das entidades regionais é um fenómeno novo. No passado, só a Europa Ocidental pôde encontrar, nas ruínas da última grande guerra e na ameaça da sua repetição, a força indispensável para desenvolver uma dinâmica de integração regional, assente na reconciliação entre os antigos adversários, na determinação comum de criar um espaço de segurança, de paz e de democracia, e na cooperação entre os Estados.

No pós-guerra fria, a União Europeia, pelas condições de estabilidade política e de prosperidade económica, pela densidade das suas redes institucionais, e pela sua capacidade de regular as relações de interdependência entre os Estados, surge como um modelo inicial para outras entidades regionais. A sua estratégia de resposta à transição pós-guerra fria é clara, e orienta-se no sentido de intensificar e de alargar o processo de integração regional, para conter os riscos de desintegração e de fragmentação, que se exprimiram, tragicamente, nas guerras civis na antiga Jugoslávia.

Este ano e o próximo serão decisivos para completar essa estratégia, designadamente com a unificação económica e monetária, a reforma institucional e a extensão paralela das fronteiras da União Europeia, cruciais para realizar a unidade das democracias, consolidar a dinâmica de integração regional, e assegurar a projecção internacional da Europa.

As entidades regionais na América do Norte e do Sul, ou na Ásia Oriental, não têm nem a mesma experiência, nem um desenvolvimento institucional comparável, nem têm, bem entendido, de seguir os caminhos da Europa. Todavia, a crescente interacção estratégica entre os Estados em cada uma dessas regiões, bem como a importância das relações de interdependência económica regionais, demonstram, com grande nitidez, a força dessa dinâmica de descentralização na política internacional.

Nesse sentido, a formação de um regime multipolar inclui uma nova dimensão, que está a transformar as relações internacionais, pois estas passaram a ser também relações inter-regionais.

Essa mudança traz consigo novos problemas. O mais importante é, justamente, preencher a dimensão inter-regional. Não há, nem poderia haver neste momento, um consenso sobre o significado da emergência das entidades regionais, que aparece associado, em parte, à ressurgência de civilizações e de culturas históricas, nomeadamente na Ásia Oriental.

Os mais pessimistas antecipam riscos de guerra e de tensões prolongadas, resultantes dessas novas formas de divisão na política internacional. Os mais optimistas temperam essa visão, invocando a capacidade da economia, dos fluxos financeiros, ou da homogeneização cultural para esbater tanto as fronteiras entre os Estados, como as linhas de demarcação entre os espaços regionais.

Em todo o caso, o problema exige uma atenção prioritária dos responsáveis políticos, tanto como dos peritos ou dos analistas.

Pela sua parte, Portugal defende a importância decisiva da consolidação dos processos de integração regional e a necessidade de garantir a abertura política, económica e cultural nas relações entre as entidades regionais.

Parte integrante da União Europeia, Portugal está empenhado em garantir o seu lugar entre os Estados fundadores da moeda única europeia, e é favorável ao alargamento do espaço comunitário regional, indispensável para a segurança europeia, para estabilizar as democracias pós-comunistas na Europa Central e Oriental, e para reforçar a posição internacional da Europa unida. Só uma União Europeia mais forte terá condições para resistir às tentações proteccionistas e isolacionistas, e para se opor, decisivamente, à criação de novos muros na política internacional.

A história ensinou-nos que o futuro da Europa só se pode realizar pela sua abertura externa, cujo primeiro passo foram as expedições marítimas portuguesas. A nossa experiência mostrou--nos como o isolamento internacional é sinónimo de decadência política, económica e cultural. A nossa vocação leva-nos a reconhecer na troca de ideias, saberes e mercadorias com outras civilizações e outros continentes as condições do progresso.

Macau, último entreposto da aventura renascentista, durante séculos a porta aberta entre o Oriente e o Ocidente, é o paradigma do encontro de civilizações.

Para nós, esse valor é tanto mais actual, num momento em que as relações entre a Europa e a China se tornaram um factor crucial para a definição de um quadro multipolar estável dos equilíbrios internacionais. Pequena marca na periferia da China, Macau
— tal como Hong Kong — representa um singular elo de união entre os dois extremos do grande continente, e passou a ocupar uma posição central na política internacional, onde se revelará o futuro das relações entre as duas principais entidades regionais do pós-guerra fria.

É esse o desafio da transição, que queremos seja exemplar, no respeito pela autonomia de Macau, dentro da linha de continuidade essencial das instituições, das normas jurídicas e da especificidade cultural do Território definida pela Declaração Conjunta luso-chinesa, e num quadro de cooperação leal entre Portugal e a República Popular da China.

Pela nossa parte, tudo faremos para que a transferência de poderes fortaleça a identidade própria de Macau, e consolide o seu estatuto histórico como ponto de encontro entre a Europa e a Ásia Oriental.

No outro extremo, Timor-Leste representa um caso trágico de usurpação e repressão.

Até à data, o regime autoritário indonésio não mostrou compreender as profundas mudanças internacionais, e mantém-se numa posição de intransigência, procurando arrastar os seus parceiros asiáticos para a sua recusa de aceitar uma forma pacífica de resolver a questão de Timor-Leste, através do exercício livre e democrático do direito de autodeterminação.

Portugal, reconhecido pelas Nações Unidas como potência administrante de jure do Território, não tem outra exigência, senão a restauração do direito internacional e a defesa dos direitos humanos em Timor-Leste.

Seria prejudicial para a resolução da questão de Timor-Leste que a Indonésia pudesse associar à sua posição os seus parceiros regionais. Timor-Leste não é um conflito entre a Europa e a Ásia Oriental. É um conflito entre a Indonésia e a comunidade internacional, e entre o regime autoritário indonésio e a comunidade timorense, heróica na sua resistência e na rejeição da ocupação ilegal.

Pela sua parte, Portugal nunca desistirá de lutar para garantir o exercício válido do direito de autodeterminação no Território, em cooperação com o Secretário-Geral das Nações Unidas.
É esse o seu dever, perante a comunidade internacional e a comunidade timorense.

Minhas Senhoras e meus Senhores,

O momento presente na política internacional é, a todos os títulos, fascinante. Tudo está em mudança, num processo onde se vão formar os equilíbrios e as relações internacionais, no limiar de uma nova era.

A responsabilidade dos decisores políticos é tanto maior, nessas circunstâncias excepcionais. A sua visão e a sua capacidade de orientação estão postas à prova. Para lá das incertezas, a mudança significa uma oportunidade rara para ultrapassar o ciclo infernal das guerras e das revoluções, das tentações hegemónicas e dos afrontamentos ideológicos, que marcaram o século xx, e abrir caminho para a construção solidária de uma sociedade internacional, assente no direito, na paz e na cooperação.