A Humberto Delgado (Na inauguração da sua casa)

Boquilobo, Torres Novas
19 de Maio de 1996


A` figura de Humberto Delgado estão associadas uma primeira ruptura no Estado Novo, com extensas repercussões políticas, e as vicissitudes de um intenso combate pela Liberdade. Neste combate, um combate de coragem e de generosidade, mas também de romantismo e aventura, Delgado encontrou, como se sabe, a morte.
Seja-me neste momento permitido destacar sobretudo o significado daquela ruptura, onde se cruza não apenas a dissidência com o Estado Novo e o salazarismo como a refundação da Democracia em Portugal.

Não posso resistir a uma nota pessoal de evocação, num contexto justificado pelo teor das intervenções antecedentes e pela natureza memorialística do monumento cuja recuperação hoje registamos. Creio, aliás, que um dos traços da minha evocação de Humberto Delgado pode ser estendida a uma geração. Refiro-
-me à geração que de alguma forma despertou para a política com a campanha eleitoral de 1958. Como muitos outros, guardo do discurso e da movimentação popular que esteve associado à campanha de Delgado a lembrança de um acto que assinalou a chegada da política à minha vida.

Disso posso dar testemunho. A campanha de 1958 conteve para muitos de nós o apelo irrecusável a uma participação cívica em favor e em nome do valor da liberdade, com incidência em trajectórias pessoais. Quem duvida que o apego à liberdade se decide na experiência e no exemplo do gesto da liberdade?

Porque foi desse sentido da liberdade e do seu risco, do valor supremo em nome do qual tudo vale a pena, incluindo a vida, que se alimentou a decisão de Humberto Delgado em arrostar o autoritarismo de Salazar. Para a memória e para a história é esse o símbolo que encarnou e projectou, e portanto, o símbolo que verdadeiramente conta.

Ultrapassada a crise do pós-guerra, o salazarismo parecia ter retomado a condição de estabilidade, e ensaiava algumas modalidades de integração na Europa, perante uma oposição silenciada e perturbada estrategicamente. A candidatura de Humberto Delgado constituiu um detonador dos descontentamentos e um sincronizador de alternativas. Todos sentiram, incluindo os responsáveis do regime salazarista, que existiam em Portugal múltiplas vontades e expectativas apostadas no derrube do Autoritarismo e no advento da Democracia. Delgado fazia a prova de que um regime que se vangloriara da regeneração da pátria, e que há mais de 30 anos instalara e se instalara na repressão e no arbítrio, no obscurantismo e no medo, podia ser questionado e seriamente ameaçado pela vontade popular.

Humberto Delgado e a sua campanha eleitoral de 1958 encerra este tríplice significado: despertou para a vida política uma geração (ao mesmo tempo que oferecia a outra geração condições novas de afirmação política); fez uma profissão de fé na Liberdade como valor supremo do homem e da cidadania; apelou à participação popular (recordem-se as impressionantes manifestações populares da sua campanha eleitoral) como condição indispensável do combate pela Democracia.

Este aspecto merece ser sublinhado: o apelo directo ao povo, no sentido da mobilização para o voto, é um traço essencial da arquitectura da democracia. O princípio da representação tira a sua legitimidade do voto popular e foi isso que, contra tudo e contra todos, nesse contra tudo e contra todos incluindo a viciação do processo eleitoral e o do escrutínio, Humberto Delgado, em 1958, pôs em evidência.

As novas gerações actuais não valorizarão talvez essa atitude, e em certo sentido congratulamo-nos com isso, porque elas nasceram e cresceram com os procedimentos da Democracia aceites e praticados. Mas a memória aí está para reconstituir o percurso difícil que nos permitiu chegar aqui honradamente, e não por acaso, mas pelo cúmulo das lutas e dos exemplos, das vitórias e das derrotas, da resistência, das ousadias dos valores, da inteligência e das convicções.

Pouco tempo decorrido após a campanha eleitoral de 1958, Salazar impôs que o Presidente da República passasse a ser eleito por sufrágio restrito num colégio eleitoral dos líderes do regime. Com esta alteração da fórmula de eleição do Presidente, o ditador não pretendia eliminar os riscos de vitória de um candidato da Oposição, mas evitar a erosão do seu regime pela campanha popular que uma candidatura que se relaciona directamente com os eleitores poderia arrastar.

O regresso com a Constituição votada em 1976 ao princípio da eleição directa do Presidente da República encerra uma homenagem a Humberto Delgado, a respeito do qual a oposição nutria o sentimento de que poderia ter sido o Presidente de Portugal em 1958, se o regime em vigor permitisse a alternância pacífica.

Minhas Senhoras e meus Senhores,

A participação da Força Aérea nesta homenagem manifesta uma noção de reconhecimento que me apraz registar. O militar, que justamente o meu antecessor, Dr. Mário Soares, promoveu a marechal, teve uma carreira brilhante, com destaque para as missões que desempenhou no ramo da aeronáutica. Interveio nas negociações com vista à cedência da base das Lajes aos Aliados durante a Guerra, foi Adido Militar e Aeronáutico na Embaixada de Portugal em Washington, representou o País na Nato.

A partir de 1958 a vida de Humberto Delgado foi no entanto pautada inteiramente pela militância política contra o Estado Novo. Apostado em derrubar o regime, o Marechal concebeu, promoveu, e apoiou algumas acções de grande impacto dentro e fora do País.

O distintivo de «general sem medo» ganhou-o aí, nessa frente de batalha em que lutou com armas desiguais mas onde ganhou o direito a ser hoje lembrado como um dos grandes nomes da luta pela Liberdade em Portugal. A morte, em resultado de um assassinato premeditado e frio, perpetrado pelas autoridades do Estado Novo, e executado pela sua Polícia Política, não foi nesse aspecto mais do que uma consequência dessa recusa do conformismo, da trégua, da submissão, pelo contrário da afirmação da irreverência e da rebeldia, em nome da autonomia dos povos e dos cidadãos e, em suma, da aceitação heróica de um único destino, o destino da Liberdade.