Sessão Solene Comemorativa do Dia e Portugal, de Camões e das Comunidades Portuguesas

Chaves
10 de Junho de 1997


Portugueses,

Celebramos, neste dia, a Pátria, o Poeta genial que a simboliza, a comunidade que a constitui, tendo presentes sobretudo aqueles que vivem e trabalham longe da terra, mas que a ela se mantêm ligados como se aqui estivessem.
Desejaria muito que a solenidade natural da data não significasse distância, formalidade ritual, frieza cerimoniosa ou rotina. Gostaria antes que este dia fosse ocasião para renovar o orgulho de sermos portugueses, cidadãos livres de um país livre. Gostaria que fosse motivo para nos aproximarmos uns dos outros, reforçando os laços que nos unem, e para reafirmarmos os sentimentos de pertença e de partilha, conscientes de que só se pertence verdadeiramente quando se partilha.
Sentimento de pertença a uma comunidade viva, dinâmica, em movimento e em transformação, que é, ao mesmo tempo, herdeira e criadora de história e de cultura. Sentimento de partilha da responsabilidade colectiva, do sentido comunitário, do destino nacional.
Pertença a uma comunidade firmada nas suas raízes, forte na sua identidade e fortalecida na sua vontade, segura do que é e do que quer ser, aberta, por isso, ao tempo e ao Mundo. Partilha que é solidariedade, cooperação, convivência, integração, ajuda, interdependência, cidadania, esteio da coesão social e da coesão nacional.
Pertença a uma comunidade de valores, de símbolos, de imagens, de memórias, de interesses, de dificuldades, de aspirações, de esperanças. Partilha que é atenção aos outros, preocupações com as injustiças, combate às desigualdades fundamentais e à exclusão, generosidade, dedicação ao bem comum e ao interesse público.
Pertença a uma comunidade que faz do sentido do passado impulso para o futuro e que retém da história a lição válida para os nossos dias, considerando-a com espírito crítico e ânimo prospectivo. Partilha do desejo de modernizar, de inovar, de aperfeiçoar, de desenvolver, de fazer obra, de produzir riqueza, de criar saber e beleza.
Pertença a uma comunidade de mulheres e homens livres, que sabem que a liberdade é o fundamento da dignidade de um povo e a condição do seu progresso. Partilha que é participação, diálogo, tolerância, civismo, respeito pelos outros e pelas suas diferenças.
Uma Pátria é isso - um lugar físico e, ao mesmo tempo, imaterial de pertença e de partilha. Uma Pátria é uma história, uma cultura, uma geografia, um povo, uma identidade, uma língua, uma comunidade. Uma Pátria é uma tradição, um sentimento, uma herança, uma responsabilidade, uma vontade, uma soberania. Uma Pátria é um devir, uma evolução, uma ambição, um projecto, um futuro. É essa a Pátria viva que, neste dia, evocamos, sob a égide do Poeta que a cantou em versos de lucidíssima beleza.
Camões, como já foi dito, fez de Portugal uma obra de arte sublime e dos portugueses - dos lusíadas - o herói colectivo de epopeia. Ele cantou as nossas glórias, mas não se cansou de aconselhar e de advertir. Cantou os feitos, mas apontou os perigos e os erros. Cantou as realizações, mas lamentou o que foi mal feito. Camões disse “Vereis amor da pátria não movido.e prémio vil, mas alto e quase eterno”, mas avisou também que “o favor com que mais se acende o engenho.ão no dá a pátria não, que está metida.o gosto da cobiça e na rudeza.uma austera, apagada e vil tristeza”.
Singular e grandioso destino o deste homem que tão intensamente viveu, escrevendo o vivido e vivendo o escrito, mas de cuja vida temos poucas notícias seguras. Dessa sua existência tão intensa e febril, sabemos quase só isso, que foi aventurosa e ardente. Conhecemos apenas o sentido essencial do seu fado. Desconhecemos os acontecimentos, as minúcias, os pormenores, os dias, os trabalhos. Ou só conhecemos obliquamente esses acontecimentos pelo que deles comparece, refractado, na sua obra. Temos pouco do Camões homem. Ficou-nos o Camões poeta, como se a ausência dos dados da sua vida fosse, afinal, uma vontade do destino para que essa vida mais facilmente se pudesse confundir com a vida de todos nós. Como se fosse assim para que ele pudesse ser o mito em que se tornou, poeta de um tempo e do Tempo, mas autor de um poema que desafia e resiste ao tempo. Como se fosse assim para que ele pudesse ser o símbolo de uma pátria que fez do universal a sua vocação. Poeta de um povo e da humanidade inteira, no seu poema exprimiu a grandeza da nossa condição, mas também as angústias, as perplexidades, as dúvidas e as crises do homem, de todos os seres humanos:
“No mar, tanta tormenta e tanto dano,
Tantas vezes a morte apercebida;
Na terra, tanta guerra, tanto engano,
Tanta necessidade aborrecida!
Onde pode acolher-se um fraco humano,
Onde terá segura a curta vida,
Que não se arme e se indigne o Ceú sereno
Contra um bicho de terra tão pequeno?”
Neste nosso tempo tão imprevisível, como não reconhecer a terrível actualidade desta pergunta, a sua força de inquietação, o seu sentido espiritual profundo?
Com o seu génio, Luís de Camões soube captar, nos versos que nos legou, as mais altas interrogações humanas, as mais complexas questões, as mais contraditórias situações, ideias, sentimentos, e estados de alma. Viajante e poeta do mundo exterior e dos mundos interiores, falou da glória e do fracasso, do amor e do ódio, da grandeza e da pequenez, do visível e do oculto, do real e do sonhado, do histórico e do mitológico, do antigo e do moderno. Mas disse mais: disse como os próprios sentimentos e as próprias realidades são instáveis e se mudam no seu contrário. Disse que a mudança é a substância do tempo, da vida e do Mundo. A sua mensagem é, por isso, de uma actualidade siderante e de uma universalidade ímpar.
A homenagem nacional que lhe prestamos, renovadamente, assume, pois, este sentido fundamental: Luís de Camões não nos representa porque e na medida em que representa a humanidade. Antes representa a humanidade porque representa o que em nós, portugueses, há de mais humanamente universal. É a isso que temos o dever de ser fiéis. A fidelidade a nós-mesmos e a abertura aos outros são, no mundo tão próximo do século XXI, exigências para uma era de paz e de progresso, ao serviço de todos os povos.
Essa fidelidade não de confunde, todavia, com auto-satisfação ou complacência. Não! - não devemos nem queremos ser indulgentes com as nossos falhas.
Fidelidade a nós mesmos significa fidelidade ao que temos de melhor, vontade de aperfeiçoamento, desejo de corrigir o que está mal. Quer dizer exigência, rigor, diligência. E também brio, disciplina, trabalho, zelo.
Precisamos destas qualidades na hora europeia que vivemos, cheia de desafios inadiáveis para Portugal, que nos responsabilizam perante as gerações futuras. São elas que dão sentido ao esforço do presente e às dificuldades experimentadas por tantos - mulheres e homens, grupos profissionais, sociais e etários, regiões.
É nosso dever, em qualquer caso, face a essas dificuldades, não nos resignarmos, aceitando-as, com indiferença ou frieza, como inevitáveis ou normais. É verdade que muitas delas a exemplo, aliás, do que acontece em outros países europeus, são o preço que temos de pagar para nos modernizarmos e desenvolvermos, numa economia e numa sociedade que estão em transformação acelerada.
Essa transformação é tanto mais complexa quanto é feita sob pressão de fenómenos tão incontroláveis, importantes e interligados, como a mundialização dos mercados, das técnicas, da informação e a automatização proveniente da revolução técnica-científica em curso. Ou como a precarização do emprego e da validade dos conhecimentos e das aptidões profissionais, a crise do sistema educativo, a prevalência do capital financeiro sobre o capital produtivo e a fragilização, por efeito da evolução demográfica, dos sistemas de protecção social. Ou ainda como a insustentabilidade do desenvolvimento sem preocupação social e ecológica e a instabilidade dos modelos sociais tradicionais postos em causa por flagelos tão graves como a droga e o crime organizado.
Há, porém, muitas dificuldades que podem ser atenuadas e vencidas. E, sobretudo, é nosso dever, perante as situações sociais mais graves, afirmar a solidariedade e garantir a coesão nacional. É esse o propósito fundamental da jornada que estou a realizar na região interior do País - dizer que não esquecemos essas terras e as populações que nelas vivem e trabalham com tanto sacrifício e esforço.
Portugueses e europeus - europeus porque portugueses -,queremos que a Europa seja uma construção vasta, de largo alcance e grande ambição, um espaço de cidadania e de solidariedade, um projecto de civilização que se funda em princípios e valores.
No momento crucial em que nos encontramos, o aprofundamento do projecto europeu exige, mais do que nunca, visão política, sentido estratégico, clareza de propósitos, mobilização dos cidadãos. Exige também fidelidade às convicções e esperanças que levaram à criação da própria ideia moderna de Europa e nas quais, sempre que houve dificuldades, se encontrou inspiração, coragem e energia para avançar.
Essa ideia - que é também uma grande causa e um belo ideal - acentua a dimensão humana do projecto europeu, que não se esgota nos seus objectivos económicos, por mais importantes que sejam. Como acontece com o que é duradouro e vale verdadeiramente a pena, a construção europeia não será realizada na facilidade ou no simplismo.
Será sempre uma obra de esforço, participação, ousadia e persistência. Também aqui a lição de Camões é actual: ele ensina-nos que toda a grande aventura humana se cumpre tendo a vontade como fundamento. Diz-nos ainda que essa vontade se activa e supera com o que, nessa aventura, é contrariedade, obstáculo, desafio.
A Europa constrói a sua unidade no respeito pela diversidade cultural, sabendo que essa é uma fonte do seu enriquecimento. A afirmação da identidade cultural de cada membro é condição de uma contribuição original, autêntica e empenhada nessa construção.
Devemos, assim, desenvolver e valorizar a nossa cultura e os que a fazem, entendendo a cultura no sentido mais amplo e consequente - da criação artística à educação, da investigação científica à preservação do património natural e construído, da inovação estética e técnica à promoção de novas formas de intervenção cultural. Ou da reflexão filosófica e do debate de ideias ao ensaio de soluções novas e diferentes para os problemas, da exigência de qualidade às expressões tradicionais da cultura popular.
Um dos modos mais valiosos e activos de praticar um patriotismo moderno é empenharmo-nos na valorização dos portugueses e na afirmação da nossa cultura, da língua, do património, dos nossos recursos naturais. Esse é o mais benéfico contributo que podemos dar para a civilização do universal e para aquela necessidade que tanto se faz sentir na conquista de um novo e mais autêntico acordo de cada ser humano e de cada povo consigo próprio, com os outros e com a natureza.
Trabalhar para que tal aconteça é talvez a melhor forma de entrarmos no novo século com a esperança de que não se repetirão acontecimentos do tipo e da dimensão daqueles que o nosso século viveu tragicamente.
Portugueses,
Olhemos o futuro com confiança e com vontade de vencer, conscientes do muito trabalho que temos de realizar para alcançar os grandes objectivos que são os nossos neste tempo. Sei que não nos falta determinação e coragem. Sei que temos energia, iniciativa, criatividade, imaginação, ousadia. Sei que estamos convictos de que não nos podemos refugiar nas águas paradas de um qualquer porto só aparentemente seguro. Temos de navegar no alto mar, com rumo e destino, mas capazes de enfrentar o que é imprevisível e de nos adaptarmos ao que muda. Temos de ver longe e visar alto.
Nesta Festa Nacional, quero, como representante de Portugal por vontade vossa, saudar todos os portugueses, sem distinções, sejam o que forem, estejam onde estiverem. Digo-vos que sois vós os destinatários da minha acção e da minha constante atenção.
Dirijo um aceno fraternal àqueles portugueses que estão noutros países, as comunidades portuguesas espalhadas pelo Mundo, que tanto nos prestigiam. Em particular, lembro os que vivem em países que foram recentemente sujeitos a convulsões e que passaram ou passam momentos difíceis.
Saúdo os militares portugueses que cumprem abnegadamente, no estrangeiro, missões de paz, prestigiando o nosso país.
Renovo solenemente, neste dia, o nosso compromisso de lutarmos até ao fim pelo reconhecimento do direito à auto-determinação do Povo de Timor-Leste.
Quero ainda dirigir-me a todos aqueles que, não sendo portugueses, vivem entre nós, respeitando as nossas leis e dando um contributo que nos enriquece, semelhante ao que é prestado pelos nossos emigrantes nos países onde trabalham.
Das terras do interior, desta cidade de Chaves, cuja história e cultura tão intimamente se ligam ao destino de Portugal, digamos o orgulho de pertencermos à nossa Pátria e de partilharmos a vontade firme de a tornar numa terra de maior liberdade e justiça, de mais solidariedade e cultura, de maior desenvolvimento e progresso para todos os portugueses.

Viva Portugal!