Sessão de Abertura da mesa Redonda “Os Direitos do Homem em Portugal”

Fundação António José de Almeida, Porto
19 de Abril de 1997


Tive muito prazer em aceitar o honroso convite dos presidentes da Secção Portuguesa da Amnistia Internacional e da Associação Política Regional e de Intervenção Local para participar na mesa redonda sobre “Os Direitos Humanos em Portugal”.
O tema dos direitos, liberdades e garantias é sempre, por definição, um tema oportuno. Dito isto, tem um significado especial tratar esse tema em Portugal, no mês de Abril, que, para nós, será sempre sinónimo de liberdade em Abril de 1974, o movimento das Forças Armadas derrubou o regime autoritário; em Abril de 1975, realizaram-se as eleições gerais que determinaram a orientação democrática do processo de transição ; e, em Abril de 1976, passámos a ter uma Constituição democrática.
Vinte e um anos depois, com a maioridade cívica da democracia portuguesa, a cultura dos direitos, liberdades e garantias tornou-se parte integrante da nossa identidade nacional. É uma dimensão indiscutível da comunidade política portuguesa, cujas raízes partem dos municípios e cujo futuro se projecta na unificação de uma Europa democrática.
Essa democracia exige uma participação efectiva dos cidadãos na vida pública, no exercício de uma cidadania activa, para realizar o bem comum e o interesse geral.
Uma democracia moderna é um Estado de direito, que resulta de um contrato de igualdade jurídica entre todos os cidadãos, assente em duas traves mestras : a institucionalização dos direitos do homem e a separação de poderes.
Uma democracia moderna é também uma construção permanente. E, se o Estado nacional continua a ser o quadro essencial de garantia dos direitos e de formação da vontade democrática, o desenvolvimento de uma “ordem constitucional europeia” acrescenta uma nova dimensão à nossa procura de um direito comum, de vocação universal, para a defesa dos direitos do homem.
O cimento essencial da uma união europeia só pode ser o “património comum” dos direitos do homem, dos direitos cívicos e sociais que distinguem a tradição liberal da nossa civilização.
Esses “direitos históricos” nasceram nas encruzilhadas dos conflitos, por vezes em circunstâncias caracterizadas por lutas em defesa das novas liberdades contra velhos poderes, “muitas vezes de modo gradual, não todos de uma vez e, seguramente, nem de uma vez por todas”, como nos ensina Norberto Bobbio.
É disso exemplo, entre nós, a explosão da liberdade, com o fim do regime autoritário, e a consagração dos direitos na Constituição da República, com o advento da democracia.
A construção europeia, na sua próxima etapa, com a revisão do tratado da União Europeia, tem no respeito pela articulação entre os direitos cívicos e os direitos sociais um desafio crucial. Uma Europa “ao serviço da justiça e da dignidade das pessoas”, no pleno respeito pelos direitos cívicos e políticos fundamentais, onde se possa circular e viver em segurança, garantidas as condições de estabilidade social e de progresso económico, é um objectivo inerente à própria existência institucional da União Europeia.
Para realizar a ideia de um espaço de liberdade, de segurança e de justiça, a União Europeia tem de assentar na salvaguarda dos direitos civis e políticos, económicos e sociais, tal como estes resultam da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, bem como das tradições constitucionais dos Estados-membros e dos princípios gerais do direito comunitário.
O reforço da cidadania e da democracia na União Europeia pressupõe uma articulação dos direitos civis e sociais e a interdição de discriminações baseadas na diferença de “raça, cor, sexo, língua, religião, origem nacional ou social, pertença a uma minoria nacional, fortuna, nascimento, deficiência, ou qualquer outra circunstância”. E apela à “necessidade e emergência” de uma nova geração de direitos, tendo em conta, nomeadamente, as mudanças cientificas e técnicas, os progressos do conhecimento em matéria de ambiente e as alterações demográficas.
O percurso da construção europeia dos direitos do homem aponta, assim, para um “direito dos direitos”, para um direito comum de referência, que complemente e fortaleça os direitos internos dos Estados, e em que o Estado de direito assente na combinação de dois princípios interligados : o da legalidade e o da garantia judiciária. Esses princípios de legalidade e de justiça servem de referência a uma ordem jurídica pluralista, capaz de integrar as culturas e as tradições jurídicas nas nacionais e de dar um contributo efectivo à elaboração de um direito comum europeu.
Minhas senhores e meus senhores
A Constituição da República portuguesa é o referente maior de uma carta de direitos, liberdades e garantias, que antecipou as liberdades de todos, mas ficou, por vezes, à espera de se corresponder com a garantia de direitos para todos.
Nesse sentido, pode dizer-se que a proclamação dos direitos nem sempre tem correspondido à sua efectiva protecção e garantia.
A Constituição da República assinalou, em 1976, a fundação da democracia moderna, cujas novas fronteiras provocaram a conjugação simultânea de várias gerações de direitos que, noutros casos, foram evoluindo, diversamente, numa sucessão histórica própria.
Assim, ao lado dos “direitos da liberdade” - os direitos cívicos e políticos fundamentais, que correspondem a uma garantia da liberdade dos cidadãos perante o Estado - temos os direitos sociais de segunda geração, assentes na ideia de igualdade, a que se segue uma terceira categoria heterogénea de direitos colectivos, que exprimem o valor da solidariedade. E está em formação uma quarta geração de direitos, como os “direitos bio-éticos”, que incidem nas aplicações da biologia e da medicina.
A emergência de uma ampla consagração de direitos dos cidadãos correspondeu, naturalmente, a uma definição de deveres individuais e do Estado, num processo complexo, que está longe da sua efectividade garantistica.
O Estado democrático garante o essencial dos direitos civis e políticos. Todavia, há dimensões da sua concretização que ainda exigem aperfeiçoamento, menos por razões normativas do que na regulação dos procedimentos necessários para assegurar a sua efectividade e garantia judiciária. Tenho insistido nesse tema, ao chamar a atenção para uma certa insatisfação geral quanto à justiça e ao funcionamento das instituições judiciárias, que prejudicam a indispensável confiança na autoridade da lei.
De pouco valerá ter direitos proclamados e receber da sua correspondência judiciária um labirinto penoso de procedimentos obscuros, dilações injustificáveis e escapatórias frustrantes, que fazem da justiça um processo adiado e tardio.
As mudanças económicas, os problemas do desemprego e da exclusão social, o flagelo da droga, as novas condicionantes da vida urbana desencadearam uma crescente procura judicial, tanto ao nível criminal como civil, fazendo dos tribunais, em grande medida, instâncias de cobrança de dividas.
Os ajustamentos da organização judiciária que têm vindo a ser propostos esperam, ainda, a prova da sua eficácia na resposta às novas complexidades e aos novos fenómenos sociais.
Ora, o funcionamento da administração judiciária é tanto mais preocupante quanto os tribunais são um pilar do Estado de direito, uma última razão na resolução pacifica das conflitualidades, uma instância legitimadora dos equilíbrios sociais e das regras auto-consentidas. Tem que ser firmemente combatida a tendência perigosa para a “justiça popular”, que constitui um exercício ilegítimo e condenável da violência, e exprime reflexos de racismo, xenofobia e intolerância, inaceitáveis na nossa democracia.
O direito à segurança como condição da liberdade não deve diminuir o valor primeiro da liberdade, sem prejuízo da necessária intervenção dos poderes públicos na garantia das condições do exercício dos “direitos da liberdade”.
Os novos fenómenos da “criminalidade de rua”, tantas vezes originados pela tragédia da droga, com traços cada vez mais preocupantes de envolvimento de jovens, exigem não só acções repressivas, mas também outras respostas, que devemos equacionar com abertura. Como tenho referido, o combate necessário contra o tráfico de droga e a dura punição dos traficantes não resolverá, por si só, o problema. É preciso, sobretudo, evitar que a nossa luta contra a droga se transforme numa guerra fácil aos consumidores, que são as suas maiores e mais vulneráveis vitimas.
Num momento em que crimes brutais, cuja violência mórbida é revelada pelos meios de comunicação social, acentuam os sinais de insegurança na sociedade portuguesa, creio indispensável que as forças de segurança se afirmem, cada vez mais, como garantes legítimos da protecção das pessoas e fortaleçam a sua credibilidade cívica.
O rigor no recurso aos meios de coacção, quando necessário e sempre que necessário, deve estar enquadrado nas exigências legais do cumprimento da missão das forças de segurança, que é exercida em nome da tranquilidade e da ordem públicas, da segurança de pessoas e bens, e da defesa dos direitos dos cidadãos. Não há autoridade sem lei, nem lei sem autoridade.
Face à crescente sofisticação dos meios da alta criminalidade, perante a extensão do tráfico de droga, dos delitos financeiros e da criminalidade organizada é urgente criar as condições para um aumento de confiança nas forças de segurança, melhorar os seus meios preventivos e repressivos, e consolidar o seu espirito cívico e de responsabilidade.
Minhas senhoras e meus senhores
Estamos a viver um período de desenvolvimento de novos direitos, cuja emergência recebe um consenso cada vez mais alargado na sociedade portuguesa, empenhada no fortalecimento das condições do exercício da cidadania.
É o caso, designadamente, da evolução dos direitos de defesa e do aperfeiçoamento do processo criminal, do quadro jurídico de protecção dos dados pessoais e da utilização informática, das regras do exercício da liberdade de informação, e do vasto campo da investigação bio-ética
e médica, incluindo a defesa da integridade, identidade e dignidade da pessoa humana.
Por sua vez, a integração europeia apela para novas regras, decorrentes da liberdade de circulação, e para a necessidade de reunir, no espaço judiciário europeu, os meios indispensáveis para o combate ao terrorismo e à criminalidade organizada.
Sem deixar de considerar que os direitos cívicos e políticos são a essência da liberdade, creio que, cada vez mais, esses direitos fundamentais formam um todo com os direitos económicos e sociais.
É nessa perspectiva que devemos reflectir sobre as reformas necessárias do Estado-Providência, de modo a garantir que a resposta aos imperativos da competitividade, da produtividade e do emprego se possa realizar sem ruptura do contrato social e com o fortalecimento das condições essenciais de uma vida digna e do respeito que são direitos dos cidadãos numa sociedade moderna.
Nesse quadro, o direito à educação e à qualificação profissional é cada vez mais importante numa sociedade avançada, tal como a consolidação de um modelo de protecção social e de saúde pública se tornou ainda mais urgente para limitar os piores efeitos da exclusão, da pobreza ou da marginalidade. Sem uma garantia mínima efectiva da dignidade humana nunca será possível fazer recuar os fenómenos de violência e de desintegração que ameaçam a coesão das sociedades modernas contemporâneas.
Tenho plena consciência do custo material desses direitos de solidariedade, mas creio que esse valor é o preço irrecusável de uma sociedade civilizada, que é a raiz da liberdade e o outro nome da democracia e do Estado de direito.
A democracia portuguesa foi fundada em nome dessa liberdade, e deve realizar-se na concretização dessa ambição de justiça.

Muito obrigado.